Dia do Cerrado: o berço das águas está em chamas

No bioma que ultrapassou a taxa de desmatamento da Amazônia, o fogo é usado como arma do agro. Comunidades são a trincheira contra a devastação, que avança com a falta de proteção. Entidades lutam para incluí-lo na lista de patrimônio nacional

A brigada de incêndio da Prevfogo composta com membros da comunidade quilombola Kalunga, durante simulação de combate ao fogo no cerrado no Engenho II (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)
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Por Ludmila Pereira, na Le Monde Diplomatique Brasil

No dia do Cerrado, é importante compreendermos que a destruição dessa Terra-Território[1] é a destruição da sociobiodiversidade do lugar mais antigo da história recente. Como afirma o arqueólogo Altair Sales, o Cerrado começou a se formar há pelo menos 65 milhões de anos e a se consolidar há 40 milhões de anos. Estamos falando, ao mesmo tempo, da savana mais biodiversa do planeta e da caixa d’água do país – abrange oito das suas doze bacias hidrográficas – e é onde nascem as bacias Amazônica, São Francisco, Araguaia/Tocantins, Parnaíba, Paraná e Paraguai.

No entanto, o ano de 2024 escancarou o resultado histórico de ataques e negligência dos quais os povos do Cerrado enfrentam cotidianamente ao serem impactados pelas queimadas criminosas[2], pelo desmatamento, pela seca e pelos conflitos por terra. Ainda ausente dos grandes debates nacionais e internacionais sobre meio ambiente e recursos públicos, o Cerrado, além de ser uma Terra-Território com poucas áreas protegidas por leis de conservação, é onde o agronegócio atua com pouca regulação.

“Já estão falando que não tem volta mais. Já mexeram tanto, já bagunçaram, já desmataram, já queimaram, que não tem mais volta. A gente corre o risco de desertificação. As florestas acabaram, as águas estão sumindo”, conta com preocupação a liderança do povo Apinajé, António Veríssimo, que vive na região do Bico do Papagaio (TO), aldeia Cocalinho.

Nos últimos dias, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Brasil teve uma extensão de quase 5 milhões de quilômetros quadrados cobertos por fumaça, o que equivale a cerca de 60% do território nacional. Ação motivada pelas queimadas recordes na Amazônia e no Cerrado. Um efeito sentido por toda a população que não só apenas viu o céu acinzentado quanto também teve dificuldades para respirar, ocasionando problemas de saúde.

“Hoje, os incêndios estão mais violentos, estão mais frequentes e eles abarcam um período maior do ano, o período seco está maior. As comunidades urbanas também sofrem em razão da fuligem, da poluição, do resultado dos incêndios florestais. Mas as comunidades indígenas, porque nós vivemos na área de floresta, de Cerrado, o fogo queima a floresta, trazendo muito problema, prejuízo à lavoura, devastando a floresta, devastando as frutas, acabando com as frutas, expulsando os animais, matando os animais, acabando com as nascentes, destruindo as nascentes de água, e isso é um prejuízo incalculável”, relata a liderança do povo Apinajé, António Veríssimo.

Brasília amanhece encoberta por fumaça causada por incêndios florestais dos últimos dias (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Enquanto o desmatamento na Amazônia diminuiu (62,2%) em 2023, no Cerrado aumentou (67,7%). Em 2023, pela primeira vez, o Cerrado ultrapassou a Amazônia, com 1,11 milhão de hectares desmatados, conforme dados do MapBiomas. O alerta sobre a catástrofe intensificada em 2024, vem sendo anunciada há anos, principalmente, pelos povos e comunidades tradicionais em suas intervenções políticas.

Um dos documentos que sistematizou a necessidade de resposta rápida e contínua do Estado ao uso criminoso do fogo no país desde o chamado Dia do Fogo, em 2019, foi o Dossiê Agro é Fogo, que relacionou em seu relatório, os problemas, no campo e na cidade, sobre como a devastação dos territórios atua retirando os direitos dos povos e comunidades tradicionais, que estão na linha de frente na conservação da sociobiodiversidade.

O uso criminoso do fogo como arma contra os povos do Cerrado

As queimadas criminosas, além de serem uma forma de expulsar os povos de seus territórios, ocasionam também problemas de subsistência de quem depende da produção que vem, por exemplo, das palmeiras de coco babaçu, como destaca a coordenadora executiva do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), regional Piaui, Marinalda Rodrigues.

“Porque uma vez que a gente preserva a natureza, a gente preserva as palmeiras de Coco Babaçu em pé, a gente também tá preservando a água. A nossa fonte de sobrevivência maior é do coco babaçu e quando eles [os fazendeiros] colocam o fogo no mato que queima as palmeiras, a palmeira demora muito para produzir de novo. Às vezes tem palmeiras que nem produz mais”, diz a coordenadora.

Quebradeiras de coco babaçu quebrando o coco para gerar outras produções (Foto: Acervo MIQCB)

Entre 2019 e 2022, houve um crescimento de 90% no número de conflitos no campo envolvendo o uso do fogo. Foram afetadas 121 mil famílias. Os dados são da Articulação Agro é Fogo e da Comissão Pastoral da Terra. O principal alvo do uso criminoso do fogo foram os povos indígenas, que sofreram 39% dos ataques registrados.

De acordo com levantamento histórico do fogo no país, realizado pelo MapBiomas Fogo, entre 1985 e 2023, o Cerrado foi o mais afetado, com 88,5 milhões de hectares destruídos, seguido pela Amazônia com 82,6 milhões de hectares. Ao todo, em 39 anos, no Brasil, foram quase 200 milhões de hectares queimados.

“Para resistir dentro desses territórios cercados por agronegócio é um desafio que você não tem ideia do tamanho, e a nossa resistência é dentro, porque, além do fogo, tem os venenos”, conta Maria Moreira, do Acampamento Dom Tomás Balduíno Formosa – Goiás, onde atua no estado pelo setor de produção do Movimento Sem Terra (MST), no reflorestamento e recuperação de nascentes na região.

“Com o fogo, o nosso reflorestamento está sendo muito atingido. Fazemos o reflorestamento e quando vem o fogo, se for um plantio muito recente, queima muito. O agronegócio e os pecuaristas vão se expandindo. Eles queimam e vêm aquela desculpa ‘ah, o fogo veio e queimou’. Aí logo você vê, depois daquele fogo, que dizem que é ‘acidental’, logo vê as máquinas dentro”, relata Maria ao afirmar que o fogo nos territórios não é acidental e sim criminoso, e serve para abrir espaço para o agronegócio e suas máquinas atuarem.

Produção de hortaliças no Acampamento Dom Tomás Balduíno (Foto: Quentin Haoyis/ Entraide et Fraternité)

As cicatrizes do fogo são geradas pelo avanço da agropecuária, que é o principal vetor responsável por mais de 97% da perda de vegetação nativa nos últimos cinco anos. O Cerrado, ainda conforme relatório, já teve, em 39 anos, cerca de 44% do território queimado. Além disso, o Cerrado tem a maior quantidade de área queimada recorrente, sendo 66% da área afetada pelo fogo mais de uma vez em tal período.

No rastro do fogo, a ganância do agronegócio

“O agronegócio tem uma relação muito próxima com o crescimento dos incêndios criminosos no Brasil”, avalia Valéria Pereira, da Comissão Pastoral da Terra e da Articulação Agro é Fogo.

Ela ainda destaca que o fogo é usado pelo agronegócio para realizar o desmatamento, abrir novas áreas e encobrir o crime praticado. Também atua como forma de limpeza de pastagem e até para realizar grilagem de terras, quando se usa a queima como “argumento” de que uma área está ocupada pelo fazendeiro e assim poder comprovar posse.

A pesquisadora ainda ressalta que a produção da diversidade de alimentos no Brasil é realizada, sobretudo, pela agricultura familiar, pois os produtos do agronegócio, que se limitam a cerca de dez itens específicos, são destinados ao mercado externo. No entanto, ainda é recorrente na mídia a ideia de que o “agro é tudo”, mas na mesa do povo isso não se consolida.

“O setor do agronegócio é, na verdade, um setor grande, produtor de commodity. E esse setor tem tomado muito espaço na dinâmica do país, não somente na dinâmica de expansão das fronteiras agrícolas, mas também na relação política, na disputa de poder e de espaços políticos no Brasil. Hoje o setor do agronegócio controla a frente parlamentar da agropecuária. Um quarto do Legislativo Brasileiro hoje é ocupado por parlamentares que são ruralistas ou têm alguma relação, ou são financiados por setores do agronegócio”, diz Valéria.

O Agronegócio no Cerrado avança também no âmbito político (Foto: Ministério das Comunicações)

Para tentar barrar o avanço do rastro de destruição no país, a Articulação Agro é Fogo propôs ao Ministério do Meio Ambiente, durante o governo de transição, algumas recomendações urgentes a serem tratadas pelo governo como políticas de enfrentamento e prevenção às queimadas criminosas. Isso reconhecendo o cuidado empregado pelos povos e comunidades tradicionais ao proteger seus territórios cotidianamente.

Alguns dos pontos foram: fortalecer a demarcação dos territórios originários e quilombolas, como forma de conservar a sociobiodiversidade e garantir os direitos territoriais-ambientais; a criação de um Programa Nacional de Prevenção, Monitoramento e Combate aos Incêndios Criminosos com recursos destinados aos estados e municípios para o enfrentamento às queimadas; apoio para restauração e reflorestamento de áreas degradadas (queimadas) com árvores nativas das localidades, com foco para Áreas de Preservação Permanente e de Reserva Legal previstas na Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, e para áreas de recarga de mananciais hídricos.

Fortalecimento e implementação de programas de brigadas florestais permanentes (incluindo brigadistas dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais). Assim consideradas as ações necessárias à formação de recursos humanos capacitados, equipados e organizados para a implementação dos planos de manejo integrado do fogo e dos planos operativos para o combate aos incêndios e para a execução de atividades operacionais de proteção ambiental, inclusive de educação ambiental.

Queimadas criminosas e desmatamento no Cerrado, acionadas pelo agronegócio como projeto de morte, também foram temas do veredito final do Tribunal Permanente dos Povos, em sua 49ª Sessão em defesa dos territórios do Cerrado (2019-2022), no qual afirma que o Cerrado e seus povos estão lançados a uma “zona de sacrifício”, onde o “ecocídio” ocorre sem pressão e fiscalização do Estado.

Além das ações recorrentes dos povos e das comunidades tradicionais do Cerrado em conservar os seus territórios, que são suas casas, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado junto com a Articulação do Semiárido Brasileiro também recolhe assinaturas para a petição da PEC 504/2010 que altera o § 4º do art. 225 da Constituição Federal, para incluir o Cerrado e a Caatinga entre os biomas considerados patrimônio nacional. Uma luta há mais de 14 anos junto ao poder público e que, se aprovada, poderá barrar muitos dos crimes socioambientais no Cerrado.

Esse artigo é resultado da série “No rastro do fogo: agronegócio e a destruição do Cerrado”, uma parceria do Guilhotina com a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese), e a Articulação Agro é Fogo. Apoio: HEKS-EPER e Instituto Ibirapitanga.

Ludmila Pereira é coordenadora de comunicação na Articulação Agro é Fogo, integrante da Articulação de Mulheres do Cerrado e Coletivo de Comunicadoras e Comunicadores do Cerrado.

[1] Conforme o Dicionário Político da Articulação Agro é Fogo, o uso do termo “bioma” não consegue contemplar a multiplicidade da vida humana e comunitária que compõe a sociobiodiversidade desses lugares e que contribuem para que a fauna e a flora estivessem vivas. Por isso, o uso de  “terras-territórios” que aponta a conexão entre Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa, que não existem de forma independente, mas se conectam, seja pelas pessoas, seja pelas águas, seja pela flora e pela fauna, por meio de suas áreas de transição.

[2] Conforme o Dicionário Político da Articulação Agro é Fogo, há algumas reflexões sobre os termos usados para se referir a esse tipo de fogo. Para diferenciar das queimadas naturais ou dos usos tradicionais do fogo, preferimos usar os termos “incêndios”, “incêndios florestais” ou “queimadas criminosas” para o fogo capitalista do agronegócio. Isso porque, na mídia, as “queimadas” costumam aparecer sem ter um causador definido, como se fossem naturais.

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