Declínio e retomada do financismo nos EUA

Livro oferece inspirado resumo das profundas transformações no sistema financeiro norte-americano. Explica, desde a crise de 2008, o poder total às “três grandes” gestoras de ativos, que fundem controle financeiro e industrial. E como a esquerda pode reagir

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Por Spencer Brown, no blog Economia e Complexidade

Em The Fall and Rise of American Finance, Stephen Maher e Scott Aquanno argumentam que a crise financeira global de 2008 (doravante: CFG), e a subsequente reestruturação do setor financeiro dos EUA, ultimaram uma mudança fundamental no capitalismo americano. O que antes era um sistema financeiro centrado nos bancos agora se transformou – por meio da própria crise e da resposta regulatória do Estado dos EUA – em um sistema dominado por grandes empresas de gestão de ativos, como as “três grandes”: Blackrock, State Street e Vanguard.

 Essas grandes empresas, com trilhões de dólares em ativos sob gestão, possuem agora imensas quantidades de patrimônio corporativo dos EUA e exercem um excessivo poder de investidor nas cúpulas corporativas. De acordo com os autores, essa mudança que põe as empresas gestoras de ativos como “proprietárias universais” do capital social total dos Estados Unidos é uma nova forma de “capital financeiro” tal como conceituado por Rudolf Hilferding.

Em outras palavras, trata-se de uma fusão de finanças e indústria que rompeu de modo fundamental com a estrutura institucional do New Deal para gerenciar o relacionamento entre corporações financeiras e não financeiras. Esta é uma tese provocativa, com sérias implicações não apenas para a compreensão da trajetória do capitalismo americano, mas também sobre a estratégia que a esquerda deve adotar na formação de uma política da classe trabalhadora na era dos grandes gestores de ativos.

Para Maher e Aquanno, o surgimento pós-2008 das gestoras de ativos como um novo capital financeiro deve ser apresentado num contexto histórico adequado. Para esse fim, eles separam o capitalismo americano dos séculos XX e XXI em quatro fases distintas: capital financeiro clássico (1880-1929), gerencialismo (1929-1979), neoliberalismo (1980-2008) e novo capital financeiro (2008-presente). De acordo com os autores, cada um desses períodos forma um ciclo distinto de declínio e crescimento, com cada fase correspondendo a uma forma organizada específica de poder corporativo, estatal e de classe.

Eles usam essa periodização para combater vários argumentos políticos da esquerda que acreditam serem baseados em raciocínios históricos defeituosos. Significativamente, os autores criticam a alegação comum de que a “financeirização” capitalista começou durante a era neoliberal. Em vez disso, eles colocam suas origens diretamente na era do gerencialismo imediatamente pós-Segunda Guerra Mundial. Eles argumentam que já nesse período as corporações não financeiras começaram a financeirizar internamente suas operações, desenvolvendo assim mercados de capitais internos dentro da própria corporação industrial.

Essa atenção histórica aos detalhes surge como um dos pontos fortes do livro. Maher e Aquanno oferecem um poderoso resumo das profundas mudanças e continuidade dentro do sistema financeiro americano ao longo do século XX. Trata-se de um relato que também pode ser contado através das lentes do que Hyman Minsky chamou de “estrutura de passivos” do capitalismo avançado (Minsky, 1992). Essa estrutura pode assumir a forma de dívidas ou ações – um complexo de compromissos financeiros que são simultaneamente mantidos como ativos nos balanços de diferentes unidades econômicas.

O conceito de Minsky de uma estrutura de passivos fornece uma maneira útil de complementar e expandir a periodização histórica de Maher e Aquanno, que começa com a era do capital financeiro clássico de Hilferding (1880-1929). Nesse período de formação, a economia dos Estados Unidos se consolidou e começou a ser cada vez mais definida por uma fusão estrutural de instituições financeiras e grandes corporações industriais, tudo sob o olhar auspicioso do estado burocrático emergente.

O que Maher e Aquanno querem mostrar – de fato mostram – é que as finanças foram fundamentais para o desenvolvimento econômico americano do século XX. Os autores procuram aproveitar as lições livro III de O Capital e do Capital Financeiro de Hilferding na análise das finanças para investigar como essa fusão americana de finanças e indústria foi organizada em torno de uma rede de acumulação centrada em bancos. Essa fusão se refletiu na estrutura de passivos do período, já que o capital financeiro clássico envolvia a transformação contínua do capital bancário em capital industrial, especificamente por meio de bancos de investimento que detinham grandes quantidades de ações corporativas em seus próprios balanços.

Bancos de investimento como o J.P Morgan & Co. assumiram esse papel hegemônico alavancando sua posição única como geradores de dinheiro de crédito e subscritores nos mercados de capitais. Crucialmente, os autores argumentam que esse entrelaçamento de bancos e propriedade acionária leva a “uma interconexão distintamente de longo prazo entre o capital bancário e industrial que constituía o capital financeiro. […] A fusão industrial-financeira e a visão de longo prazo eram, em outras palavras, dois lados da mesma moeda” (Maher e Aquanno, 2024, 41).

Os autores mapeiam como essa fusão industrial-financeira, que acabou com a mudança regulatória da Grande Depressão, renasceu posteriormente após a CFG na forma das grandes gestoras de ativos. Eles destacam as principais transformações na estrutura de comando do capitalismo americano ao longo dos períodos gerencial (1930-1979) e neoliberal (1979-2008) que levaram a esse momento crucial. As imensas mudanças provocadas pela Grande Depressão deram a sentença de morte do capital financeiro clássico, à medida que o estado regulador do New Deal afastou os bancos da governança das corporações industriais.

O principal exemplo desse novo marco regulatório foram as leis bancárias de 1933 e 1935, que separaram as funções dos bancos comerciais e de investimento, limitando assim a conversibilidade do capital bancário em ações. Os bancos comerciais não podiam mais subscrever ou ser formadores de mercado nos mercados de capitais privados; os bancos de investimento, por sua vez, não podiam mais atuar como instituições de recebimento de depósitos. Os autores argumentam que tais mudanças regulatórias ao longo do que eles chamam de período gerencialista levaram a uma “fragmentação das participações acionárias”, concedendo assim aos gerentes industriais autonomia dos ditames do sistema bancário (2024, 71).

Essa autonomia, contudo, chegou também ao fim com a transição para o período neoliberal, quando o capitalismo americano adotou o que os autores chamam de estratégia de “acumulação baseada em ativos”. Essa mudança estava ligada ao surgimento de grandes investidores institucionais e à integração de fundos de pensão no ecossistema financeiro maior de bancos comerciais e de investimento. Sob a acumulação baseada em ativos, a propriedade de ativos financeiros como tal torna-se o objetivo; assim, o sistema financeiro é reorganizado em torno da negociação contínua de ativos no mercado.

Os autores argumentam que essa estratégia de acumulação produziu uma característica fundamental do período neoliberal, qual seja ela, a concentração simultânea da participação acionária nos balanços patrimoniais dos investidores institucionais, juntamente com a fragmentação do sistema financeiro geral em diferentes mercados especializados. Além disso, o processo de “securitização” transformou cada etapa do processo de concessão de empréstimos em uma atividade de mercado distinta realizada por empresas financeiras com fins lucrativos. Essa foi a nova estrutura de responsabilidade do capitalismo neoliberal que evoluiria até a crise financeira de 2008.

Tudo isso leva à tese principal do livro de Maher e Aquanno: a resposta gerencial dada à crise de 2008 produziu a CFG, o que redundou na ascensão das três grandes gestoras de ativos já citadas, inaugurando assim a era do Novo Capital Financeiro (2008-Presente). Os autores mostram como as intervenções estatais durante a crise não apenas estabilizaram o sistema financeiro, mas também o consolidaram em torno de um novo “estado de risco” – uma extensão do poder do Estado que sustenta certas classes de ativos específicas e as põem à prova de risco. Isso sustenta uma infraestrutura abrangente das finanças baseadas no mercado.

Como escrevem os autores, “o novo ‘estado de risco’ formado neste período criou uma capacidade do Estado de mitigar e absorver o risco financeiro para manter as taxas de juros baixas; ora, isso também levou a um período prolongado de inflação dos preços dos ativos e alimentou a virada para fundos de investimento ‘passivos’ administrados pelos “três grandes”. Isso, concluem, equivaleu a uma “reestruturação histórica do poder corporativo” (2024, 147).

 Assim, a concentração sem precedentes de patrimônio nos balanços patrimoniais da Vanguard, BlackRock e State Street constitui a estrutura de passivos do novo capital financeiro. Assim como na época de Hilferding, instituições financeiras imensamente poderosas detêm diretamente o patrimônio das corporações industriais, uma fusão nova de finanças e indústria para o século XXI.

Maher e Aquanno fazem várias afirmações importantes sobre esses novos gestores de ativos, algumas mais controversas do que outras. Primeiro, os autores argumentam que os gestores de ativos organizam dois circuitos de capital-dinheiro, um que conecta as famílias às corporações e outro que conecta as corporações a outros atores do sistema financeiro, como fundos de cobertura (hedge funds). No circuito das empresas familiares, os gestores de ativos compram ações/obrigações e gerem ativos em nome de grandes investidores institucionais, direcionando assim o capital para as empresas e os retornos para as famílias.

No circuito de financiamento corporativo, as gestoras de ativos ajudam a redistribuir dinheiro dentro do sistema financeiro por meio de fundos mútuos do mercado monetário e seu papel de fornecimento de liquidez nos mercados de recompra tripartites. Para os autores, ambos os circuitos destacam o papel funcional que as grandes gestoras de ativos desempenham nesta era, o que significa que não podem ser descartados como meros apêndices parasitários de setores mais produtivos.

Mais controverso, os autores argumentam que a ascensão de grandes gestores de ativos aumentou a competitividade geral do capitalismo. Eles afirmam que “a competitividade está embutida na estrutura da forma atual de capital financeiro”. Argumentam que as empresas de gestão de ativos intervêm na governança das empresas mantidas em seu portfólio com o objetivo de aumentar a competitividade no nível da empresa. Isso contrasta fortemente com os escritos de Benjamin Braun sobre o “capitalismo de gestão de ativos”, onde se argumenta que a concentração da propriedade de ativos suprimiu a competição capitalista (Braun, 2021).

Maher e Aquanno criticam ainda Braun por argumentar que os gestores de ativos não têm interesse direto no desempenho das empresas individuais em seu portfólio. No entanto, essas duas críticas a Braun, embora importantes para enquadrar futuros debates sobre a economia política das finanças, permanecem inconclusivas. As evidências fornecidas por Maher e Aquanno (a hipótese de que divergências nas carteiras das gestoras de ativos incentivam a intervenção para aumentar os retornos competitivos) não refutam definitivamente o argumento de Braun, o que significa que pesquisas futuras serão necessárias para esclarecer a relação precisa entre os gestores de ativos e a concorrência corporativa.

A partir da tese de que surgiu um novo capital financeiro, os autores tiram várias conclusões políticas sobre o futuro da política da classe trabalhadora. Mais importante ainda, os autores argumentam que o novo capital financeiro não constitui um “bloco financeiro liberal” que permite um compromisso de classe com os interesses políticos da classe trabalhadora. Maher e Aquanno estão convencidos de que os trabalhadores não podem se aliar à alta finança para atingir metas como expansão fiscal, programas sociais robustos e atenção às questões ecológicas.

Ao mesmo tempo, os autores também argumentam que os trabalhadores não podem se aliar ao capital industrial contra um setor financeiro supostamente “parasitário”. Isso ocorre porque a globalização capitalista entrelaçou profundamente os interesses das finanças e da indústria. Ora, isso significa que uma parte da classe capitalista não pode ser jogada contra um outra parte. Em vez disso, os autores postulam a necessidade de controles de capital para disciplinar o capital como um todo e criar espaço para ganhos políticos da classe trabalhadora.

A mensagem final do livro de Maher e Aquanno é que a esquerda não deve apenas entender as finanças, mas também democratizá-las. Este slogan de uma “democratização das finanças” é sua visão política para a política socialista dentro do atual período do Novo Capital Financeiro. Com esse slogan, Maher e Aquanno não querem dizer que a esquerda deva simplesmente pedir que as três grandes gestoras de ativos sejam nacionalizadas e colocadas sob propriedade pública.

Em vez disso, eles argumentam que a democratização das finanças requer que o controle social seja estabelecido sobre um conjunto maior de instituições, incluindo essas gestoras e o sistema bancário tradicional. Além disso, a democratização das finanças requer uma transformação maior do próprio Estado, uma vez que Maher e Aquanno acreditam que esta é a única instituição capaz de realizar uma transição para uma economia democraticamente planejada. O fato de que a democratização das finanças permanece inseparável das lutas pelas instituições estatais serve como um poderoso lembrete de que o sistema financeiro pós-2008 não pode ser analisado isoladamente dos órgãos reguladores do governo dos EUA.

No geral, A queda e ascensão das finanças americanas é uma intervenção muito necessária nos debates sobre a estrutura das finanças contemporâneas. A combinação de amplitude histórica e atenção cuidadosa à conjuntura atual constante do livro o torna uma adição bem-vinda aos campos da crítica da macro finança e da economia política marxista. Em suas páginas, os leitores encontrarão uma narrativa envolvente que esclarece onde o capitalismo americano esteve e para onde está indo atualmente. Maher e Aquanno escreveram um livro sofisticado sobre finanças para um público popular, um feito raro e que merece ser lido e discutido por economistas e ativistas de esquerda.

Spencer Brown é doutorando no Departamento de Economia da New School for Social Research

Referências

Braun, Benjamin. 2021. “Asset Manager Capitalism as a Corporate Governance Regime.” In The American Political Economy: Politics, Markets, and Power, ed. Jacob Hacker, Alex Hertel-Fernandez, Paul Pierson and Kathleen Thelen. Cambridge University Press.

Maher, Stephen, and Scott Aquanno.2024. The Fall and Rise of American Finance. Verso.

Minsky, Hyman.1992. “The Financial Instability Hypothesis.” Levy Economics Institute Working Paper No.74.

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