Como extremos climáticos já castigam a África

Cientista de Gana compõe equipe de um dos estudos climáticos mais avançados do planeta. Reporta a crise no continente que pouco emite poluentes, mas paga caro: secas, fome, ondas de calor, aumento de doenças e guerras. Na COP, luta por um acordo justo

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Nana Ama Browne Klutse em entrevista à Ricardo Zorzetto, na Pesquisa FAPESP

Desde pequena Nana Ama Browne Klutse ouvia que deveria se dedicar a alguma área da ciência porque seu interesse pela natureza a levava a “fazer perguntas demais”. Como a biologia não era seu forte e a química lhe parecia difícil, escolheu a física. Nascida em Gana, na África Ocidental, ela graduou-se na Universidade da Costa do Cabo, em seu país, e planejava se dedicar à astronomia. As oportunidades, no entanto, sopraram em outra direção e a levaram a se tornar uma climatologista de reconhecimento internacional.

Especialista em fenômenos dinâmicos do clima, em particular as monções africanas, Klutse foi pesquisadora do Instituto de Ciência Espacial e Tecnologia de Gana e já gerenciou o Centro de Sensoriamento Remoto e Clima do país. Professora da Universidade de Gana, ela foi uma das principais autoras do capítulo de ciências físicas do sexto relatório de avaliação, o AR6, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC). Publicado em 2021, o documento confirmou que as alterações recentes no clima do planeta são decorrentes da atividade humana. Hoje, aos 44 anos, ela é vice-presidente do grupo de trabalho 1, que vai analisar as bases científicas do próximo relatório, o sétimo, previsto para sair em 2029. Desde janeiro, ela dirige a Agência de Proteção Ambiental de Gana.

Klutse esteve pela primeira vez no Brasil em setembro, quando participou da 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências (TWAS), realizada no Rio de Janeiro em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC). No evento, falou sobre o impacto das mudanças climáticas. “Estamos nos aproximando de um ponto crítico no qual podemos não ter mais reversibilidade das condições do sistema climático”, afirmou.

Klutse conversou com Pesquisa FAPESP sobre os efeitos das alterações climáticas já observados na África, sobre o que aguardar do próximo relatório do IPCC e sobre suas expectativas para a COP30. Leia, a seguir, os principais trechos.

Klutse em praia na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, após sua participação na conferência da TWAS
Ana Carolina Fernandes

Como vê o clima do planeta hoje e o que espera para os próximos anos?

Observamos o aumento contínuo da temperatura, associado às emissões de gases de efeito estufa, que continuam sendo lançados na atmosfera. Defendemos uma redução global nas emissões, mas ainda não atingimos a meta proposta. Há episódios frequentes de altas temperaturas, inundações, secas e, por causa da elevação do nível do mar, erosão costeira em algumas regiões. Muitos países já estão vulneráveis, especialmente aqueles em desenvolvimento, porque não têm capacidade de adaptação para responder ao impacto do clima. A infraestrutura em vários países não consegue proteger contra as inundações. Nas regiões mais internas dos continentes, as secas colocam a segurança alimentar em risco, porque algumas áreas não têm como armazenar alimentos por muito tempo e praticam da agricultura de sequeiro [que depende da chuva para a irrigação]. Tudo isso afeta a migração e causa violência e guerras. A situação é pior nos países pobres.

Para conter o aumento da temperatura em 1,5 grau Celsius (°C) acima dos níveis pré-industriais, as emissões de gases de efeito estufa precisariam cair. Como estamos?

Após o Acordo de Paris, o IPCC publicou um relatório sobre o impacto do aumento de 1,5 °C em todas as regiões do mundo. Ficou claro que, ao permitir esse nível de aquecimento, haverá consequências sérias na segurança alimentar, nos padrões de precipitação e de ondas de calor, de ocorrência de pragas e doenças. Por isso, defendemos um corte nas emissões. Temos de reduzi-las pela metade até 2030. Alguns países estão se esforçando, mas não todos. A Organização das Nações Unidas [ONU] e em especial os Estados Unidos retiraram o apoio a atividades relacionadas ao controle de mudanças climáticas, como as estratégias de mitigação. Isso impacta a forma como as pessoas vão enfrentar as mudanças climáticas e como os países vão tentar atingir suas metas de redução das emissões. Muitos países se esforçaram na preparação de suas contribuições nacionalmente determinadas, as NDC, que submeteram à UNFCCC [Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima]. No entanto, muitos governos podem não ter os meios financeiros ou tecnológicos para implementar suas NDC.

Em 2024, o aumento da temperatura média do planeta ultrapassou, em alguns meses, 1,5 °C. O que pode acontecer em diferentes regiões do mundo no curto prazo?

Estamos nos aproximando de um ponto crítico no qual podemos não ter mais reversibilidade das condições do sistema climático. Precisamos entender que o aquecimento médio de 1,5 °C significa uma elevação maior em algumas regiões. Na África, corresponde a cerca de 2,4 °C. Nas regiões tropicais, a elevação pode ser ainda maior. A cada ano há um aumento de temperatura maior do que nos anos anteriores. A partir do ponto crítico, podemos ter dificuldade para entender como o padrão de chuvas, as temperaturas e a circulação oceânica passarão a se comportar.

Quais são os impactos esperados das mudanças climáticas na África?

Como disse, um aumento de 1,5 °C significa muito mais calor para a África. A maioria dos países africanos já enfrenta os impactos disso. Temos problemas de inundações, secas e, nas áreas costeiras, elevação do nível do mar. O aumento de temperatura também se traduz em doenças para populações humanas e pragas agrícolas. Os agricultores estão tendo dificuldade para entender quando começa a chover para que possam plantar e quando precisam aplicar insumos agrícolas em seus campos. A maioria dos agricultores na África depende da chuva. A disponibilidade de irrigação é limitada, assim como o apoio financeiro para a agricultura irrigada e os recursos hídricos. Vários países africanos já sofrem com insegurança alimentar e problemas de saúde. As ondas de calor aumentam a incidência de doenças de pele e de malária.

Alguma região é mais afetada?

Todo o continente. As regiões de terras altas e montanhas sofrem com as secas. As terras baixas, com as inundações. No litoral, já se observa erosão costeira. Os países que mais sofrem são os mais pobres e aqueles em guerra, como o Sudão e o Sudão do Sul, onde a disponibilidade de comida é limitada.

A África sempre emitiu pouco gás de efeito estufa, mas deve ser um dos continentes mais afetados. Como os países africanos podem se desenvolver sem repetir os padrões de emissão de outros continentes?

Chamamos isso de dilema ético. O continente africano emite menos, mas sofre mais com o aquecimento global e seus impactos. Os países africanos devem se unir e se posicionar para, não quero usar a palavra “lutar”, mas buscar o que lhes é devido. Precisamos lidar com esse dilema. A razão pela qual participamos das conferências das partes, as COP, é que esperamos chegar a um acordo para que os países desenvolvidos, que emitem mais gases, apoiem os países que não emitem muito, mas têm florestas que ajudam a retirar dióxido de carbono da atmosfera. A maioria dos países africanos possui cobertura florestal, que gera créditos de carbono. É preciso criar um padrão para que, na comercialização desses créditos, os países desenvolvidos não enganem aqueles em desenvolvimento. Precisamos nos sentar à mesa de discussão usando linguagem simples e atitudes transparentes para discutir como os países africanos sobreviverão ao impacto das mudanças climáticas, para que tanto os países desenvolvidos quanto os em desenvolvimento fiquem em uma situação confortável.

O que espera da próxima COP?

Muitas pessoas perderam a esperança e o interesse na COP. Todos os anos nos reunimos para discutir compromissos dos países desenvolvidos com os países em desenvolvimento e os compromissos não estão sendo cumpridos como o esperado. Para a COP30, no Brasil, espero que comecem a ser cumpridos e que se aprove um roteiro claro para implementar os acordos já assumidos de financiamento climático, de transferência de tecnologias para apoiar a adaptação e de implementação de medidas de mitigação e do fundo de perdas e danos.

Na COP anterior, aprovou-se um apoio anual de US$ 300 bilhões, bem abaixo do esperado US$ 1,3 trilhão. Isso pode mudar agora?

É uma luta, mas acredito que algo pode ser feito. Precisamos colocar as pessoas certas à mesa de negociação para contar nossas histórias [dos países em desenvolvimento] da maneira certa e definir claramente nossas necessidades. Tenho alguma esperança na COP30.

Gana não fica longe da floresta tropical do Congo, a segunda maior do mundo. Qual é o estado de preservação dessa floresta e quais as principais ameaças?

Atualmente, a ameaça vem do crescimento populacional, da urbanização e do impacto da mineração de ouro. Nas florestas de Gana, também há a instalação de novas fábricas, estradas e a expansão das terras agrícolas.

Quanto da floresta já foi derrubado?

Não sei dizer. Uma parte foi afetada pela mineração e pela expansão urbana, mas temos algumas reservas nas quais a floresta está bem preservada.

No Brasil, a floresta amazônica é importante para o clima no país. Como a floresta do Congo influencia o clima na África e em outras regiões?

A floresta amazônica também influencia o clima da África, assim como a floresta do Congo. Em Gana, também temos uma floresta enorme que contribui para a distribuição de chuva e umidade no país.

O que o próximo relatório do IPCC deve mostrar?

Avançamos um pouco a cada relatório. A partir dos comentários das partes interessadas, ficou claro que as pessoas querem relatórios práticos, não apenas retóricos. Uma questão é que o relatório do IPCC não é prescritivo. Ele fornece diretrizes nas quais cada governo deve se basear para formular as suas políticas. Estamos ouvindo os stakeholders e esperamos que o próximo relatório seja mais prático e conciso. O anterior era volumoso.

Você integra um experimento chamado Cordex. O que é?

É um experimento global no qual usamos modelos para entender o comportamento do clima. Acreditamos que um único modelo não tem a resolução necessária para a previsão desejada. Por isso usamos cerca de 25 modelos climáticos desenvolvidos por instituições de todo o mundo para entender o clima e fazer projeções para o futuro. Esse experimento nos ajudou a entender o sistema climático na África. Fiz muitas pesquisas com esses modelos para fornecer uma visão geral de muitas variáveis na África, como temperatura, volume de precipitação, sistemas de vento, número de dias secos e chuvosos consecutivos. O sexto relatório do IPCC cita muitas publicações que fizemos sobre o Cordex [Coordinated Regional Climate Downscaling Experiment, dividido em 14 regiões do globo].

Por que os modelos regionais são importantes?

Porque precisamos entender o clima das diferentes regiões para compreender o clima global. No Cordex África, analisamos as mesmas variáveis, por exemplo variabilidade na precipitação em cada sub-região da África. Fizemos o mesmo com o sistema eólico, a temperatura, a disponibilidade hídrica e para variáveis agrícolas. Queríamos entender todo o sistema climático da África.

Como o clima na África afeta o de outras regiões do mundo?

Posso citar um exemplo. Um tsunami que se desenvolveu na costa leste dos Estados Unidos anos atrás teve origem na costa do Senegal. Começou no Senegal, cresceu lentamente e amadureceu perto dos Estados Unidos. Por isso, o governo norte-americano estabeleceu uma instituição oceânica na costa de Dacar, no Senegal, para estudar ciclones e furacões que podem se originar ali. Os diferentes sistemas que compõem o clima são globais e podem afetar diferentes regiões do planeta. Pense no El Niño e no La Niña. Eles ocorrem no Pacífico e impactam o clima na África, inclusive em Gana.

O que a levou a se dedicar à física e aos estudos climáticos?

A física surgiu naturalmente para mim enquanto eu crescia. Eu fazia perguntas sobre a natureza, desde cedo. Me disseram “Você está fazendo perguntas demais. Quando for para a escola, estude ciências”. Na universidade, tive de escolher uma área específica. Biologia era interessante, mas eu não tinha notas boas, e química era difícil para mim. Fiz matemática com especialização em física. Meu primeiro interesse foi em astronomia, mas não tive a oportunidade de fazer mestrado na área. No doutorado, consegui financiamento para pesquisa em climatologia e fui para a Cidade do Cabo, na África do Sul. Fiz um programa sanduíche com o Centro Internacional de Física Teórica [ICTP] Abdus Salam, em Trieste, na Itália. Meus orientadores me conectaram com diferentes programas, como o Cordex, o que me abriu outras oportunidades. Trabalhei no Cordex; no Programa Mundial de Pesquisa Climática, o WCRP; no IPCC.

Como mulher, quais desafios enfrentou no seu país para se tornar pesquisadora? Houve preconceito?

Infelizmente, é normal. Em muitas áreas ou reuniões, sou a única mulher. Dá uma sensação de solidão. Busquei mulheres para orientar para que fizessem parte da área. Infelizmente, só consegui uma para orientar no doutorado. Há outra na graduação. Espero que ela se forme em breve, aí terei duas. Procurei mais mulheres, mas elas não estão disponíveis para treinamento.

Isso não a desanimou?

O que me desanimaria talvez fosse a família. Culturalmente, em Gana, a sociedade espera que, a partir de certa idade, a mulher case e tenha filhos. Isso faz muitas mulheres interromperem suas carreiras para se dedicar à família. Não fui afetada dessa forma porque estava focada na carreira, apesar de ter família.

Como é o acesso à educação e ao ensino superior em Gana, especialmente para mulheres?

É gratuito para todos. As alunas recebem algumas prioridades em termos de admissão. Em algumas universidades, a nota necessária para aprovação é um ponto mais baixo para as mulheres, para tentar despertar o interesse delas. Temos bolsas de estudo de algumas empresas para mulheres estudantes de ciência.

Você tem um trabalho para incentivar meninas e mulheres a seguirem carreiras na ciência. O que faz?

Administro um programa de mentoria para meninas. Visito escolas e dou palestras para todos os alunos, mas especialmente para as alunas. Converso com elas sobre as vantagens de cursar uma faculdade e escolher a carreira científica. Eu me uso como exemplo, descrevo as oportunidades que tive por seguir a carreira científica. Isso ajudou muitas mulheres a escolherem essa área. Também faço aconselhamento individual e incentivo as alunas, mesmo as que já têm uma vida profissional definida.

Em quais áreas a pesquisa científica é mais desenvolvida em Gana?

Nas ciências biológicas. A pesquisa em alimentos e em saúde é um pouco mais desenvolvida do que a em clima, mas essa área está em ascensão.

Quais são os principais centros de pesquisa?

Temos algumas instituições de pesquisa como o Centro de Pesquisa Científica e Industrial e a Comissão de Energia Atômica de Gana, que abriga o Instituto de Ciência e Tecnologia Espacial. A maioria das universidades também faz pesquisa, assim como minha instituição, a Autoridade de Proteção Ambiental.

Os países ricos investem 2% do PIB ou mais em pesquisa. Os em desenvolvimento, cerca de 1%. E Gana?

Estamos longe disso. Os pesquisadores recebem uma bolsa para fazer pesquisa em suas instituições. Ainda não temos um fundo nacional de pesquisa, mas há fundos menores, para a área de clima, de lixo eletrônico. Recebemos também apoio do exterior. Por exemplo, tenho uma pesquisa sobre modificação da radiação solar apoiada pela iniciativa Degrees, uma ONG internacional que apoia pesquisas no hemisfério Sul sobre modificação da radiação solar como uma intervenção para reduzir o aquecimento global.

Por que anos atrás decidiu ter um papel ativo na política do seu país?

Estive na área de pesquisa a vida toda. Produzo resultados que espero que embasem políticas públicas. Mas não vejo isso ocorrer. As pessoas em quem votamos para assumir cargos na política, em altos escalões, não valorizam os resultados da pesquisa. Então, pensei: “Por que não ir lá eu mesma para fazer algo?”. Tentei duas vezes uma vaga no Parlamento, mas perdi a eleição. É um mundo completamente diferente do da ciência. Depois da segunda tentativa, decidi apoiar um candidato a presidente. Ele venceu as eleições, mas depois decepcionou. Agora sou diretora-executiva da Autoridade de Proteção Ambiental de Gana. Lá, consigo implementar algumas ideias a partir de resultados de pesquisas. Ainda estou no meu espaço, mas voltada para a implementação.

O que mais gostaria de dizer?

É preciso informar as pessoas sobre a necessidade de os países colaborarem uns com os outros. Os desenvolvidos devem apoiar financeira e tecnologicamente os países em desenvolvimento. Temos um único planeta e a atividade de cada país afeta os demais. Quando falamos sobre fundos de adaptação, queremos apenas nos adaptar ao impacto das mudanças climáticas. Não é receber dinheiro externo para ficarmos ricos. O mundo desenvolvido precisa entender a situação.

O mundo desenvolvido tem sido míope em relação a isso?

Não diria míope, mas muitos deles não se importam com os países em desenvolvimento. E os países em desenvolvimento os apoiam ao oferecer seus recursos naturais.

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