Como Brasil inovou para a proteção das florestas

Das pastorais da terra à luta de Chico Mendes na Amazônia, passando pela cooperação entre cientistas e o MST na Mata Atlântica. Nos anos 90, país criou projetos de conservação comunitária que desafiaram o agro e que, hoje, servem de referência para 40% das áreas protegidas no mundo

Chico Mendes, líder seringueiro assassinado em 1988: modelo de conservação desenvolvido a partir do seu trabalho ao lado da antropóloga Mari Allegretti é reproduzido hoje em cerca de 40% das áreas preservadas do mundo.
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Por Rafael Morais Chiaravalloti e Thais Morcatty, no The Conversation

Proteger a natureza não é uma coisa nova. Há evidências de que, desde os primeiros grupos humanos há milhares de anos, pessoas tentam preservar aquilo que garante abrigo, comida, energia, saúde, e tantos outros recursos essenciais para a própria sobrevivência e existência.

No entanto, a ciência dedicada a entender como fazer isso – estudando, testando e replicando ferramentas eficazes de proteção da natureza – só surgiu nos anos 1980, passando a ser chamada de biologia da conservação.

Inicialmente, essa nova disciplina foi concebida como uma ciência de crise. Assim como a medicina ou a epidemiologia lidam com emergências, a biologia da conservação nasceu para enfrentar a perda acelerada da biodiversidade. Em outras palavras, seu objetivo era desenvolver estratégias baseadas em evidências para salvar da extinção as espécies que existem no nosso planeta.

Mas, como toda grande ideia, ela também trouxe alguns problemas. A biologia da conservação se baseava no valor intrínseco da natureza. Por isso, defendia salvar as espécies e paisagens a qualquer custo, o que, quase sempre, significava a expulsão de comunidades tradicionais e povos indígenas dos seus territórios.

Comunidades eclesiais de base na Amazônia

A principal maneira de colocar essa ideia em ação era através dos chamados Parques Nacionais. Um modelo criado no final do século XIX nos Estados Unidos da América e exportado para diferentes partes do mundo. Por muitos anos, a biologia da conservação incorporou essa ideia e modelo de ação como a sua mais importante ferramenta. No entanto, a partir de meados dos anos 1980, essa lógica começou a ser questionada. E o Brasil desempenhou um papel fundamental nessa grande virada de chave.

Nos anos 1970 e 1980, com o avanço das obras de infraestrutura no interior da Amazônia, movimentos sociais começaram a se organizar para proteger os seus meios de vida. As comunidades eclesiais de base, por exemplo, tiveram papel fundamental no apoio a comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas na defesa de seus direitos e na proteção de seus territórios.

Outro exemplo são os seringueiros, trabalhadores da floresta Amazônica que extraem o látex da seringueira (Hevea brasiliensis) para produzir borracha. Eles se organizaram com o objetivo de impedir o desmatamento das áreas de coleta de borracha. O que começou como um movimento social, se tornou um movimento socioambientalista.

A luta de Chico Mendes

O principal símbolo dessa luta foi Chico Mendes, que junto com a antropóloga Mari Allegretti, levou os conflitos da Amazônia para uma agenda global. Após o assassinato de Chico, em 1988, a comoção internacional – envolvendo ONGs ambientais, imprensa estrangeira e pressão diplomática – levou o governo brasileiro a criar uma área de uso exclusivo para os seringueiros.

A proposta inicial era uma área de reforma agrária. No entanto, para se adequar às características da Amazônia e a crescente preocupação com a sustentabilidade, surgiu um novo modelo de conservação: uma área protegida voltada ao uso sustentável. Semelhante ao Parque Nacional do modelo estadunidense, mas que permitia que os grupos locais pudessem continuar suas práticas tradicionais de uso de recursos.

A primeira foi criada em 1990, a Reserva Extrativista Alto Juruá (RESEX). Em seguida, outros modelos inovadores nasceram, como a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Em uma co-criação entre comunidades locais e o Instituto Mamirauá, desenvolveu-se, por exemplo, o manejo participativo do pirarucu (Arapaima gigas), reconhecido como um dos casos mais bem-sucedidos de manejo comunitário sustentável no mundo.

A luta de Chico Mendes virou um modelo de conservação para o Brasil e para o mundo. Hoje, cerca de 40% das áreas protegidas do mundo seguem esse modelo originalmente inspirado no movimento dos seringueiros.

Também na década de 1990, na Mata Atlântica surgia outro modelo inovador. O IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, fundado em 1992, instalou-se no Pontal do Paranapanema, oeste do estado de São Paulo, para salvar uma espécie de mico-leão-preto ameaçada de extinção. Paralelamente, também começava na região um grande Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Brasil, referência mundial

O que poderia ter sido uma disputa de agendas, virou cooperação: juntos, construíram um dos maiores programas de restauração da biodiversidade do mundo. Já foram recuperados mais de 5,1 mil hectares – cerca de 10 milhões de árvores plantadas – e, hoje, centenas de famílias vivem da restauração florestal, por meio de viveiros comunitários e empreendimentos locais de plantios de florestas. O mico-leão-preto teve sua condição de ameaça reduzida, saindo de “criticamente ameaçado” para “em perigo” na lista vermelha de espécies ameaçadas de extinção brasileira. Este modelo também se encontra replicado em diferentes locais do país.

Esses são apenas alguns exemplos de um movimento mais amplo, iniciado em diferentes partes do Brasil na década de 1990, que buscava unir a conservação da biodiversidade e a participação social. Hoje, dezenas projetos se espalharam por todo mundo, fazendo com que esse “novo” modelo de conservação também trouxesse justiça social e desenvolvimento local.

Foi para reforçar essa importância brasileira que nós organizamos um volume especial da revista científica Conservation Biology, intitulado “The Evolution of People Centred Conservation in Brazil” (A Evolução da Conservação Centrada nas Pessoas no Brasil). A revista é pioneira e o mais influente periódico científico dedicado à biologia da conservação. Este volume reúne 13 artigos mostrando por meio de evidências científicas estudos de casos que mostram como o Brasil é referência mundial em soluções em conservação da natureza com foco nas pessoas.

Assim, nos enche de orgulho contar que o Brasil, que criou e compartilhou com o mundo o samba e a bossa nova, também deu uma contribuição igualmente valiosa: os programas de conservação de base comunitária.

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