Colômbia: O esforço para uma reforma agrária inédita

Gustavo Petro criou figuras jurídicas de proteção ao campesinato e acesso progressivo à terra. Enfrentar concentração de latifúndios é passo importante para sua política de “paz total” – mas enfrenta resistência do agronegócio, milícias e sabotagens no Congresso

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Por Rodrigo Chagas, no Brasil de Fato

A eleição de Gustavo Petro à Presidência da Colômbia, após dois séculos de alternância liberal-conservadora, abriu um ciclo inédito de expectativas por justiça social e territorial. Depois de mais de dois séculos de alternância entre elites liberais e conservadoras, a chegada do ex-guerrilheiro e ex-prefeito de Bogotá ao poder simbolizou uma resposta política ao levante popular de 2021. Dentre as reformas prometidas por ele, a agrária era uma das mais aguardadas.

Em 5 de julho de 2023, o governo celebrou uma de suas principais vitórias políticas com a aprovação do Ato Legislativo 01/2023, que alterou o artigo 64 da Constituição. A emenda reconheceu o campesinato como sujeito de direitos e de especial proteção, vinculando o Estado à promoção do acesso progressivo à terra, à garantia da soberania alimentar e ao reconhecimento das territorialidades camponesas.

“Vocês resistiram. Resistiram apesar dos governos. Hoje queremos que vocês resistam com o governo, ao lado do governo, com um governo em apoio a vocês”, disse Petro à época da aprovação da mudança constitucional, celebrando o reconhecimento dos camponeses como “sujeitos de direito.”

O tema da terra é central para entender a história da Colômbia e seus conflitos armados internos: 81% das áreas produtivas estão nas mãos de 1% dos proprietários, em um cenário de alta concentração e desigualdade. Em 2025, o governo reconheceu, por meio de um Registro Único de Vítimas do conflito interno, que 8,5 milhões de pessoas foram deslocadas forçadamente de seus territórios. Camponeses, na sua maioria.

A maioria dos massacres também ocorreu no campo. De acordo com a Comissão da Verdade colombiana, mais de 4 mil ataques ocorreram no país entre 1958 e 2019, matando mais de 24 mil pessoas. A reforma agrária, portanto, é considerada um passo importante para a “paz total” no horizonte de Gustavo Petro.

A mudança constitucional capitaneada pelo presidente foi seguida por novos marcos legais e administrativos que compõem o que movimentos populares e analistas chamam de “avanço inédito” da reforma agrária no país.

Sob Petro, uma nova figura jurídica para proteção dos territórios camponeses foi criada: os Territórios Camponeses Agroalimentares (Tecam). Já as Zonas de Reserva Camponesas (ZRC), existentes juridicamente desde 1994, também deram um salto importante. Antes da atual presidência, apenas 7 eram oficializadas; hoje já são 14. O governo também leva a cabo uma política de devolução de terras para vítimas do conflito: 60 mil hectares foram entregues a camponeses expulsos de seus territórios.

No entanto, esse impulso encontra obstáculos na permanência da violência rural, a atuação de grupos armados e o peso político do agronegócio e do extrativismo no Congresso e nas finanças públicas.

Reconhecimento constitucional e novas figuras de ordenamento

A reforma do artigo 64 da Constituição conferiu status jurídico inédito ao campesinato colombiano. Desde 2023, o texto constitucional reconhece expressamente as formas de territorialidade camponesas, vinculadas à proteção de dimensões econômicas, sociais, culturais, políticas e ambientais, além de considerar as condições organizativas e geográficas específicas dessas populações.

No plano infraconstitucional, a Lei 2294/2023 – que instituiu o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) – abriu espaço para a consolidação dos Tecam como figura jurídica de ordenamento territorial voltado à reforma agrária e ao desenvolvimento rural. Essa política foi regulamentada pelo Decreto 780/2024, que estabelece as etapas para o reconhecimento dos Tecam pela Agência Nacional de Terras (ANT).

Paralelamente, o governo atualizou o marco legal das Zonas de Reserva Camponesa (ZRC), figura já existente desde 1994, por meio do Decreto 1147/2024, reforçando a obrigatoriedade de Planos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) e a possibilidade de constituí-las em áreas de reservas florestais previstas na Lei 2/1959.

De acordo com dados do Ministério da Agricultura, a Colômbia conta atualmente com 14 ZRCs formalmente constituídas, somando 702.399 hectares de territórios camponeses reconhecidos até julho de 2025. O dado representa um salto em relação aos anos anteriores, impulsionado por sete novas zonas reconhecidas em 2024, incluindo Tuluá, Pradera, San José de Apartadó, Tarazá, Santa Isabel–Anzoátegui, Alto Sinú e Santuario del Rabanal.

Já os Tecam encontram-se em fase mais incipiente de implementação. Segundo o balanço oficial mais recente, a ANT recebeu 23 solicitações formais e iniciou cinco trâmites administrativos– três no departamento de Arauca (Arauquita, Saravena e Fortul) e dois no Cesar (Chimichagua-Astrea e Chimichagua).

Apesar disso, representantes do movimento camponês reivindicam um número superior. “Temos cerca de 120 solicitações e oito envios de oficialização junto à ANT”, afirmou ao Brasil de Fato a vice-presidenta da organização camponesa Coordinador Nacional Agrario (CNA), Leonor Yonda.

A distinção entre as figuras também é central. As ZRCs, reguladas pela Lei 160/1994, envolvem delimitação territorial, ordenamento fundiário e exigência de Planos de Desenvolvimento Sustentável. Já os Tecam, conforme o Decreto 780/2024, não alteram a propriedade, mas reconhecem territorialidades historicamente ocupadas por comunidades camponesas e priorizam sua inclusão em programas de reforma agrária, agroecologia e soberania alimentar.

“Estes territórios camponeses agroalimentares envolvem planos de vida, governo próprio e enfrentamento ao extrativismo”, explicou Yonda, destacando que “se trata de uma aposta de poder popular nos territórios”.

O presidente Gustavo Petro durante a Convenção Nacional Camponesa, realizada na Universidade Nacional (Foto: Presidencia Colombia)

Outro marco institucional importante foi a criação da Jurisdição Agrária, incorporada à Constituição pelo Ato Legislativo 03/2023. Um projeto de lei complementar atualmente em tramitação busca definir competências e atribuições dos futuros juízes agrários, que terão o papel de resolver disputas de posse e uso da terra.

“É fundamental que haja juízes especializados na Colômbia para resolver os conflitos e a posse das terras, que lidem com isso, que historicamente não foi resolvido”, argumenta Yonda, que reconhece os avanços legais obtidos com Petro, mas entende como necessária a pressão dos movimentos para que as medidas de fato saiam do papel.

Além dos avanços normativos, o governo apoiou a instalação da Convenção Nacional Camponesa, realizada em dezembro de 2022, na Universidade Nacional da Colômbia, que reuniu mais de mil propostas e deu origem à Comissão Mista Nacional de acompanhamento à política agrária. O evento marcou uma rearticulação do campo popular e camponês em torno de uma agenda comum.

A vice-presidenta da CNA destaca que, da convenção, saíram propostas que foram incorporadas na reforma constitucional, e foi lançada uma instância permanente de negociação e cobranças ao governo.

Ela, entretanto, ressalta que, apesar do apoio governamental, as coisas precisam andar separadas. “Apesar das tentativas do governo de instrumentalizar a Convenção Nacional Camponesa para que se mobilizasse a seu favor, o movimento deixou claro que manteria sua autonomia e independência”, diz Leonor Yonda.

Violência e bloqueios estruturais no campo

A execução da política agrária, assim como foi com todas as outras reformas propostas por Petro, enfrenta um quadro territorial adverso. Relatórios da Organização das Nações Unidas e da Human Rights Watch apontam para a persistência de assassinatos, ameaças, deslocamentos forçados e confinamentos em regiões camponesas, especialmente em departamentos como Catatumbo, Cauca e Magdalena Medio.

Mesmo com a proposta de “paz total” do presidente Gustavo Petro, os assassinatos de lideranças sociais, indígenas, camponesas e de ex-combatentes guerrilheiros seguem em níveis alarmantes.

O Indepaz mantém um painel atualizado com os últimos casos de violência, gráficos e balanços da última década. Segundo esses dados, 270 líderes camponeses, 104 líderes negros, 356 indígenas, 94 sindicalistas, 28 ambientalistas e 144 políticos foram mortos desde 2016. Os níveis mais altos da série foram registrados entre 2018 e 2020, com picos de mais de 250 assassinatos por ano, durante o governo de extrema-direita de Iván Duque. As números reduziram sob Petro, mas a violência persiste.

“Hoje estamos com índices altíssimos de violência, deslocamentos e assassinatos, como nos piores momentos do governo [do ex-presidente de direita Álvaro] Uribe”, alerta Luís Alfredo Burbano, da Corporación para la Educación e Investigación Popular (Cedins) e do Instituto Nacional Sindical, acrescentando que “agora isso ocorre por meio de bandos armados que operam nos territórios”.

“A militarização dos territórios, sob o pretexto de combater o crime, tem servido para ampliar a atuação do paramilitarismo e do extrativismo”, denuncia Sonia Milena Lopez, da equipe de direitos humanos do Congreso de los Pueblos e presidenta da Fundação Joel Sierra, que atua na região de Arauca, na fronteira com a Venezuela, um dos locais mais afetados pela violência dos conflitos armados no país. “O campesinato continua sendo removido de seus territórios”.

O avanço das políticas camponesas também encontra resistência no Congresso e nas estruturas orçamentárias do Estado. Embora o governo tenha iniciado seu mandato com forte apoio popular, a governabilidade se mostrou instável diante da pressão de setores econômicos concentrados.

“A direita se aproveitou da força que tem dentro do governo para renegociar permanentemente as reformas”, argumenta Burbano, mencionando os setores exportadores de matérias-primas e os monopólios da saúde como principais focos de poder.

Cortes orçamentários e bloqueios legislativos atingiram diretamente a implementação da reforma agrária. As compras de terra – feitas por meio de oferta voluntária e valores de mercado, conforme o acordo com a Federação Nacional de Pecuaristas (Fedegán) – foram afetadas por limitações fiscais, disputas fundiárias e insegurança territorial.

Na visão do movimento popular, os ruralistas boicotam um acordo extremamente benéfico à sua lógica, uma vez que, segundo denúncias, boa parte das terras dos latifúndios são fruto de violência e grilagem.

“Dizer que o governo vai comprar terras que foram usurpadas a bala e premiar os despojadores é inaceitável”, criticou Leonor Yonda, da CNA, em referência ao modelo adotado pelo governo.

Entre avanços institucionais e incertezas no campo

A consolidação de uma arquitetura agrária com base nas ZRC e Tecam, somada à criação da jurisdição agrária, representa um marco sem precedentes na história institucional da Colômbia. No entanto, sua eficácia depende da capacidade do Estado de atuar nos territórios, garantir segurança e manter canais de escuta com as comunidades camponesas.

Segundo o Departamento Administrativo Nacional de Estadística (Dane), a Colômbia tem 16 milhões de camponeses, ou seja, cerca de 30% da população total do país (52,7 milhões de pessoas). Yonda explica que a simples contagem dessa população também foi um vitória do movimento popular. Ainda de acordo com o Dane, no meio rural 42,5% dos colombianos são pobres, contra 28,6% no meio urbano.

Para o CNA, a pobreza está diretamente ligada ao modelo de desenvolvimento do agronegócio exportador e extrativista. “É o nosso inimigo. São eles que se opõem a tudo. Por isso nós mantemos nossa estratégia de ocupação de terra. É parte da luta histórica pela reforma agrária, porque o institucional não vai resolver tudo”, explica Leonor Yonda.

No horizonte imediato, os movimentos populares organizam uma nova jornada de mobilizações em outubro, exigindo o cumprimento dos acordos firmados e a continuidade das políticas iniciadas.

“Nós dissemos para o governo federal que vamos seguir na mobilização ocupando terras. Nós sabemos quais são os usurpadores da Nação, as terras que estão nas mãos de criminosos e sem função social. Já dissemos ao governo que recuperamos as terras para a soberania alimentar, a serviço do campesinato, para produzir alimentos”, arremata Yonda.

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