Coca-cola ou metanol: O que tira o sono do governador?
Um ensaio sobre falsificações no mercado de bebidas. Tarcísio tripudiou sobre as mortes por intoxicação em SP, ao dizer se preocupar mais com o refrigerante. Mas essa corporação frauda, se omite e mata também – mais e há muito tempo
Publicado 10/10/2025 às 19:07 - Atualizado 10/10/2025 às 19:08

Por Henrique Selmo Rael, na Le Monde Diplomatique Brasil
Em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, Philip K. Dick constrói um mundo distópico em que humanos e androides coexistem em cidades iluminadas por neon, onde a linha entre o real e o artificial se desfaz. Animais de estimação elétricos substituem os vivos, e a autenticidade passou a ser um luxo. A tragédia recente – embora nem tão recente assim – das intoxicações por metanol é um reflexo desse simulacro de mercado, uma circunstância em que um produto é legítimo em aparência e preço, mas falso em todos os outros aspectos.
O Brasil já contabiliza 17 casos confirmados de intoxicação por metanol, segundo os dados divulgados pelo Ministério da Saúde. O país, no entanto, já atingiu mais de duzentas notificações relacionadas ao consumo de bebidas adulteradas. Casos suspeitos já foram identificados em 12 estados da Federação, e duas mortes decorrentes da substância foram confirmadas.
Se o mercado que permitiu essas intoxicações fosse submetido a um teste Voight-Kampff – como os androides do romance do sr. Dick –, ele falharia de forma inequívoca. Os androides, quando sujeitos ao teste, são identificados como tais por sua aparente incapacidade em demonstrar empatia. Esta, infelizmente, parece ser a regra regente das nossas práticas comerciais. O episódio brasileiro, nesse sentido, é apenas mais um capítulo de uma longa história de negligência ou até de fraude, marcada por indivíduos e empresas que, guiados pela matemática do lucro, definiram prioridades em que a vida humana foi um custo a ser reduzido. Em cada um desses casos, os consumidores foram deliberadamente expostos a riscos que poderiam, e por certo deveriam, ter sido evitados.
Segundo estimativas do Médicos Sem Fronteiras, cerca de 40 mil pessoas em todo o mundo já foram intoxicadas por metanol desde 1998, o que resultou em aproximadamente 14,4 mil mortes. A maior incidência das intoxicações encontra-se em países como o Camboja, Filipinas, Indonésia e Índia, muito embora casos recentes tenham se apresentado em lugares como a Rússia e, infelizmente, o Brasil.
Androides não respeitam fronteiras
Até o presente momento, não é possível determinar se o motivo da contaminação foi decorrente de alguma falha no processo de produção (como a higienização das garrafas com metanol), ou se houve a atitude deliberada, particularmente por parte de fábricas clandestinas, de baratear o custo das bebidas utilizando a substância. De toda forma, a Associação de Bares e Restaurantes de São Paulo afirma que houve um impacto substancial no setor. Afinal, mais de 80% dos casos diagnosticados no país estão concentrados em solo paulista, entre eles os dois óbitos identificados.
Conforme o Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Campinas, os episódios de intoxicação normalmente eram ligados à ingestão deliberada em contextos de abuso de substâncias, frequentemente envolvendo pessoas em situação de rua. Recentemente os casos passaram a ocorrer em grande número, em um curto espaço de tempo e, sobretudo, em bares. Segundo o governador Tarcísio, as grandes distribuidoras e produtoras do segmento afetado pelas falsificações estão colaborando com as investigações. O governador ainda destaca que “As pessoas estão com medo. E precisamos restabelecer a confiança com ações integradas entre estado e iniciativa privada.”. Embora, até o momento, os casos pareçam relacionados a falsificações e não a grandes produtores, não seria a primeira vez que uma grande empresa agiu com negligência ou até de maneira fraudulenta.
A gigante Johnson & Johnson concordou, em 2024, a pagar US$700 milhões para encerrar processos movidos por 42 estados estadunidenses, acusando-a de propaganda enganosa sobre produtos de talco para bebês. A empresa vendeu pó corporal infantil com amianto sem alertar o público, e a investigação revelou que a companhia sabia dos riscos, mas seguiu anunciando seus produtos. Além da multa, a Johnson & Johnson foi obrigada a cessar permanentemente a venda e fabricação dos produtos nos Estados Unidos.
Em linhas semelhantes, a Volkswagen admitiu instalar softwares fraudulentos em 11 milhões de veículos, enviados para várias partes do globo, com o fim expresso de burlar testes de emissão de poluentes. O programa reduziu artificialmente os gases tóxicos somente durante as inspeções, enquanto os carros eram poluentes até 40 vezes acima do limite legal. A fraude envolveu subsidiárias como a Audi, Porsche e Skoda, e as consequências das investigações incluem multas e indenizações de mais de US$30 bilhões, bem como a prisão de executivos nos Estados Unidos e na Alemanha.
Ironicamente, a Volkswagen redirecionou seu marketing para carros elétricos logo após o escândalo de 2015. Parece que as ovelhas elétricas triunfaram. Ou foi o triunfo da Coca-Cola falsificada do senhor governador. A Johnson & Johnson, por sua vez, foi devidamente proibida de atuar, mas pôde vender o talco com amianto por literalmente um século.
Esses episódios estão longe de ser exceções isoladas e lembram o mundo de Philip K. Dick, onde aparência e autenticidade se separam, e a humanidade é frequentemente subordinada à lógica de mercado. Tanto os casos internacionais, quanto a trágica situação do metanol refletem disposições aparentemente toleradas nas relações comerciais: assim como uma empresa pode atuar por mais de cem anos vendendo produtos com substâncias cancerígenas, uma série de indivíduos, seja por negligência ou intenção, vende bebidas intoxicadas para o público desavisado.
A ficção científica raramente fala do futuro. Suas alegorias iluminam tragédias anunciadas, sucessos efêmeros e conquistas que podem ser perdidas. Quando o caçador de recompensas Rick Deckard se pergunta o que faz de um humano, humano – e de um androide apenas uma coisa –, percebe que mesmo sua experiência pode traí-lo. Correndo o risco de soar moralista, talvez devêssemos perguntar o mesmo sobre nós. O que leva alguém a adulterar bebidas com substâncias que causam cegueira e morte? O que leva uma corporação a vender produtos com amianto, ou a fraudar inspeções ambientais? É perturbador imaginar que, se nossa sociedade fosse submetida ao teste Voight-Kampff, talvez o ponteiro determinasse que somos androides. Somos?
Henrique Selmo Rael é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bacharel em Relações Internacionais pela UFRGS e especialista em Ciência Política pela UFRGS. Assistente de editoração no periódico científico Debates e membro do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas e Opinião (NEPPU).
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