Choro: Cultura popular e negritude apagada

A partir do resgate histórico, musicista analisa a cena atual do gênero no Brasil, que nasceu das diásporas africanas, mas foi embranquecido pela pela indústria fonográfica. Trajetória de Pixinguinha e Chiquinha Gonzaga contam sobre este apagamento

Pixinguinha, em gravação para disco de Elizeth Cardoso (Foto: Arquivo do Estado de São Paulo/reprodução)
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Por Beatriz Oliveira, no Nonada

Com influência de musicalidades africanas e europeias, o choro se desenvolveu em solo brasileiro e se tornou um dos gêneros mais característicos do país. A música instrumental de ritmo pulsante, melodia cativante e carregada de improvisação tem origem popular. No entanto, passou por um processo de embranquecimento e distanciamento dessa origem no imaginário comum. 

É na Pequena África, região central do Rio de Janeiro e reduto dos negros vindos da Bahia, que nasce o choro, em meados de 1870. Antes de se estabelecer como gênero musical, no  início do século XX, o termo ‘choro’ era usado para definir uma forma de tocar alguns gêneros musicais, um grupo musical ou uma ocasião festiva com música, dança e comida em bairros mais pobres. 

O repertório do choro unia diferentes influências: gêneros ligados às diásporas africanas no eixo Brasil-Portugal, como fados, lundus e modinhas; danças de salão europeias, como polcas, valsas, schottisches, quadrilhas; e gêneros relacionados às diásporas africanas no eixo América Espanhola e Europa, como a habanera, o tango e a contradança. Por essa variedade de ritmos, o choro é conhecido como um gênero musical “guarda-chuva”. 

Os Batutas: Sebastião Cirino (trompete), Euclides Virgolino (bateria), Pixinguinha (saxofone), Fausto Mozart Corrêa (piano), José Monteiro (banjo), J. B. Paraíso (saxofone) e Esmerino Cardoso (trombone de vara), c. 1923. Acervo Pixinguinha/IMS

“No século XIX, a gente tinha um trânsito de músicas que vinham da Europa que eram para serem dançadas nos salões. E uma classe operária, que não tinha acesso ao contexto mais nobre de músicos de orquestra, criou as chamadas orquestras de pau e corda, com instrumentos de madeira. Era a flauta, o violão e o cavaquinho, o trio básico do choro”, conta Anna Paes de Carvalho, cantora, compositora, pesquisadora de choro e que trabalhou no reconhecimento do choro como patrimônio cultural junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

No dia 29 de fevereiro de 2024, o choro foi Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Iphan. O pedido foi apresentado pelo Clube do Choro de Brasília, Instituto Casa do Choro do Rio de Janeiro e Clube do Choro de Santos; além de uma série de abaixo-assinados de amantes do gênero. 

“O reconhecimento do choro veio para consolidar um processo que já estava em curso, pois o choro já era nosso patrimônio há muito tempo, pois foi o primeiro gênero de música urbana que surgiu no Brasil. O choro é a base para toda a nossa música”, afirma Luciana Fernandes Rosa, professora na Faculdade de Música do Espírito Santo, violoncelista e também integrante da equipe de pesquisadores junto ao Iphan. 

A pesquisadora pontua ainda que processo de instrução técnica e levantamento de dados, que levaram ao reconhecimento como patrimônio cultural, foram fundamentais para sistematizar e tornar acessíveis as ações e práticas de choro em todo o país. 

“A própria comunidade de chorões se fortaleceu nas reuniões de mobilização, colocando  músicos de distintas partes do país em contato uns com os outros, o que gerou ações posteriores de parcerias. Com o levantamento de dados, foi possível  identificar práticas, locais e acervos em situação de vulnerabilidade ou invisibilidade, e traçar políticas de salvaguarda do bem em parcerias com estados e municípios”, afirma. 

A negritude apagada do choro 

Ao frequentar rodas e eventos de choro e perceber a ausência de pessoas negras tanto performando quando consumindo o gênero, a cantora e compositora Glaw Nader decidiu pesquisar o assunto e escreveu o artigo “Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha: o embranquecimento do Choro e a negritude apagada”. 

Além da ausência de pessoas negras, o embranquecimento se reflete também “na instrumentação que formam as rodas atualmente: uma presença marcante de instrumentos mais voltados para a música de concerto, como: violino, trompete e trombone, que se refletem também, na utilização frequente de repertório escrito na partitura que todos os músicos da roda seguem”, diz Glaw.

Chiquinha Gonzaga (Foto: O Globo/reprodução)

“Esse embranquecimento que o choro sofreu vem como uma opção ao projeto eugenista pós-abolição que em teoria não teve êxito como planejado, mas, afetou severamente a classe de músicos negros das orquestras que eram, até então, a maioria entre os anos 1930 e 1940”, explica a pesquisadora. 

“Um caso que representa bem esse plano em ação, tem Pixinguinha e Radamés como personagens. Pixinguinha, um arranjador/orquestrador de mão cheia, experiente, contratado como “o orquestrador” da gravadora Victor, sendo aposentado forçosamente, tido como o velho, o antigo, para dar lugar ao oportunismo de Radamés, branco, filho de imigrantes italianos, sendo aclamado como o novo, o moderno, sendo ambos, contemporâneos, com uma diferença etária de 10 anos”. 

Ela aponta que  “o afastamento de Pixinguinha da indústria fonográfica não foi espontâneo e ao que se sabe, veio acompanhado de dificuldades econômicas”, o que levou o compositor a vender os direitos autorais de suas músicas.  Glaw Nader também evidencia em seu artigo o apagamento da negritude de Chiquinha Gonzaga, uma mulher negra representada como sendo branca. 

A pesquisadora faz uma crítica à cena contemporânea do choro no Brasil: “o impacto desse embranquecimento pode ser sentido até os dias de hoje quando se ouve falar das rodas de choro. Os corpos que realizam o choro já não são mais negros. Uma presença maciça de músicos brancos que se ajuntam nas rodas, munidos de partituras das músicas compostas muitas vezes por músicos negros, incluindo no choro instrumentos de corda eruditos, performando o choro aos moldes da música de concerto, como a mencionada herança imposta a partir do regional de Benedito Lacerda”.

Luciana Fernandes pontua que gêneros da diáspora africana tiveram influência no choro e permanecem intrincados nele, como o lundu,  presente na maneira de tocar o choro e na percussão. Mas afirma que houve “apagamento de músicos de choro, sobretudo negros e pardos, que foram sistematicamente esquecidos ao longo da história”. 

Apesar de entender as consequências do embranquecimento no choro, a cantora Glaw Nader vê também resistência negra nesse meio. “O dia do Choro é, mesmo que a contragosto de muitos, o dia em que se comemora o aniversário de Pixinguinha, entendo isso como o pilar da resistência negra no gênero, seguida pela atual e tímida presença de músicos negros nas rodas e ainda mais tímida compondo, performando e consumindo o Choro”, diz. 

César Henrique Correa, de nome artístico César Feitiço, é um desses músicos apaixonados pelo choro que seguem performando e marcando presença nas rodas do gênero. Cavaquinista e bandolinista, toca desde os oito anos de idade, quando passou a frequentar a Escola de Choro e Cidadania Luizinho 7 Cordas, projeto do Clube do Choro de Santos. “Quando me foi apresentado o choro, foi uma paixão direta, eu era criança chegava em casa da escola, pegava o cavaquinho e ficava tocando ‘Carinhoso’, ‘Naquela mesa’ e mais um monte de músicas”, relata. 

César entende que choro não é um gênero escutado amplamente pela população, ficando restrito a um grupo seleto de pessoas. Lamenta o fato de muitos não saberem o que é esse gênero genuinamente brasileiro, que já foi muito popular no passado. E garante: ele seguirá escutando seus chorinhos, independente do que aconteça.  

Beatriz de Oliveira é Jornalista formada pela PUC-SP. Atualmente é repórter do veículo Nós, mulheres da periferia. Tem como foco pautas de memória, sociedade e cultura.

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