Calor extremo: o Brasil precisa agir

Em 2023, o país registrou 66 dias com temperaturas elevadíssimas. Embora problema seja menos grave que na Europa e Ásia, será preciso investir em planejamento urbano adequado, espaços arborizados e saúde pública para populações atingidas

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Por Carlos Bocuhy, no Le Monde Diplomatique Brasil

Em função da falta de pressão pública, o tema não está priorizado como deveria na agenda nacional de saúde. Certamente será, com o mundo caminhando, em futuro não tão distante, para média de +3 ºC pós era industrial – com o agravante de nossas características tropicais e doenças que podem ser potencializadas pelo excesso de calor, como a dengue.

Os problemas climáticos domésticos têm sido, mais notadamente, seca, incêndios e chuvas intensas. Pantanal, Amazônia e Cerrado secam e ardem com maior frequência. Chuvas extremas mudaram completamente a realidade no Rio Grande do Sul.

O prenúncio trazido pelo inverno de 2024, que se inicia com “veranico”, aponta que as temperaturas médias deverão ficar 3 ºC acima dos invernos passados. Não é bom sinal para o próximo verão. Precisamos estar atentos ao que ocorre hoje no verão do Hemisfério Norte. A morte por calor extremo de mais de mil peregrinos muçulmanos em Meca, na Arábia Saudita, durante o tradicional Hajj, acendeu uma luz de alerta para o mundo. Os efeitos do aquecimento global estão sendo fulminantes.

Episódios de calor extremo na Europa, Oriente Médio, sul da Ásia e Estados Unidos também devem servir de lição para o Brasil. O caso de Nova Delhi, na Índia, demonstra a morbidade dos desabrigados, os que vivem ao ar livre e sem proteção contra o calor extremo. O calor incessante de 40 ºC ceifou, na última semana, mais de duzentas vidas dessa população vulnerável. Em menos de vinte dias a Índia registrou 40 mil casos suspeitos de insolação. A Grécia está em sua segunda semana de calor mortal, menos de um ano depois de experimentar uma onda de calor de dezesseis dias, a mais longa da série histórica.

Em geral, as ondas de calor que atingem várias partes do Hemisfério Norte tendem a ser mais quentes, frequentes e duradouras. Na região do Mediterrâneo, os verões de 2022 e 2023 trouxeram ondas de calor de tal magnitude que foram batizadas pelos climatologistas da Itália com nomes de personagens como Cérbero, o cão do inferno, e Caronte, o barqueiro dos mortos, da obra Divina Comédia, de Dante Aligheri.

Nos Estados Unidos, 80 milhões estão começando a enfrentar o verão de calor extremo, que se inicia. Segundo as previsões, deverá ser a mais longa e tórrida estação que algumas regiões norte-americanas já experimentaram.

O ano de 2023 foi considerado o mais quente da história e as temperaturas globais continuaram quebrando recordes mensais até 2024. O contexto tem demonstrado que apenas a série histórica não pode mais orientar ações preventivas. O rompimento sucessivo de padrões previsíveis faz da intempestividade a marca das mudanças climáticas. Fomos arremetidos para uma realidade de incerteza radical.

Para a saúde humana, os impactos podem ser mortais. “O corpo humano tem que trabalhar mais para manter os órgãos e tecidos em suas temperaturas normais saudáveis. Quanto mais tempo o corpo é forçado a fazer isso, maior a pressão sobre seu sistema cardiovascular e maior o risco de efeitos negativos à saúde, que, em casos extremos, podem incluir insuficiência cardíaca e renal”, afirma matéria do Washington Post, citando os pesquisadores Brooke Anderson e Michelle Bell. Após pesquisarem décadas de gradual crescimento das temperaturas no verão norte-americano, concluíram que, para cada dia adicional de uma onda de calor, o risco de morte aumenta em 0,4%. Os pesquisadores também concluíram que as ondas de calor no início do verão eram mais perigosas do que as posteriores, porque as pessoas se aclimataram fisicamente ao clima quente ou se equiparam, comprando um ar-condicionado, por exemplo, ou passando mais tempo dentro de casa.

os pesquisadores Antonio Gasparrini e Ben Armstrong, do Departamento de Saúde Ambiental da London School of Hygiene and Tropical Medicine, registraram aumento adicional no risco de mortalidade após quatro dias quentes consecutivos, ou seja, os organismos tendem a colapsar após alguns dias sem possibilidade de resfriamento. Essa constatação está orientando políticas públicas com instalação de “centros de resfriamento”, montados em departamentos de bombeiros ou em outras instituições públicas norte-americanas para abrigar a população mais vulnerável.

Enquanto a ciência médica estuda o fenômeno do calor extremo buscando medidas para proteção da saúde pública, a climatologia estuda suas probabilidades de recorrência, intensidade e abrangência.

Repisando os estudos do IPCC, a causalidade do calor extremo tem sido objeto de pesquisas. As conclusões não deixam dúvida sobre as digitais humanas na piora do clima planetário. Cientistas da Holanda examinaram dados de temperatura de cinco dias em aspectos diurnos e noturnos dos dias mais quentes entre o final de maio e o início de junho e compararam as temperaturas registradas com um planeta hipotético no qual os humanos nunca haviam bombeado nenhum gás de efeito estufa para a atmosfera.

Relatório da Climate Central avalia que os recordes de temperatura registrados em várias partes do mundo “não surpreendem” e fazem parte da “tendência de aquecimento alimentada pela poluição de carbono”. “Enquanto a humanidade continuar a queimar carvão, petróleo e gás natural, as temperaturas continuarão a subir, e os impactos disso vão acelerar e se espalhar”, alerta a entidade.

Um relatório sobre dados colhidos em uma cúpula de calor no México, onde temperaturas excessivas foram exacerbadas por ciclos de retroalimentação causados por uma seca contínua, relatou pelo menos 125 mortes desde março, de acordo com o estudo, juntamente com mais de 2.300 casos de insolação. Esse caso demonstrou também que mortes relacionadas ao calor tendem a ser subestimadas. São confirmadas meses após o evento de calor, isso se forem relatadas.

Os impactos correlatos ao calor extremo são conhecidos: o ressecamento da vegetação e o aumento dos incêndios com vítimas fatais, como nos casos devastadores registrados no Havaí, Califórnia, Chile, Portugal e Grécia. Ressalte-se ainda as ondas de fumaça que provocaram efeitos adversos a grandes contingentes populacionais de cidades como Nova York e Manaus.

As conclusões sobre a severidade dos impactos das ondas de calor levaram grupos ambientais e trabalhistas dos Estados Unidos a afirmar que o calor é o assassino número 1 relacionado ao clima.

As instituições estão pressionando a Agência Federal de Gerenciamento de Emergências dos Estados Unidos (Fema) a declarar o calor como o maior desastre climático, inserindo-o em situação de igualdade a tornados e inundações.

Esse reconhecimento poderá desbloquear fundos da Fema para ajudar as localidades a se prepararem para ondas de calor e fumaça de incêndios florestais, construindo centros de resfriamento ou instalando sistemas de filtragem de ar em escolas. A agência também poderia ajudar durante emergências, pagando pela distribuição de água, exames de saúde para pessoas vulneráveis e aumento do uso de eletricidade.

Na área trabalhista os desafios são gigantescos. Todos os trabalhadores que exercem atividades internas e externas expostos ao calor, como operários da construção civil em geral, bem como das atividades agrícolas, estarão seriamente comprometidos em episódios de calor extremo, assim como atividades escolares e outros serviços públicos.

Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que medidas atuais em favor da segurança e saúde no trabalho têm dificuldade em acompanhar riscos climáticos, resultando em mais de 2,4 bilhões de trabalhadores expostos ao calor excessivo em algum momento de suas carreiras, o que contribui para cerca de 18.970 mortes registradas.

“Nenhuma das instituições, ferramentas e conjuntos de dados do mundo são adequados para responder ao tamanho do calor extremo para as comunidades”, disse Kathy Baughman McLeod, CEO da Climate Resilience for All, uma organização sem fins lucrativos focada em lidar globalmente com o calor extremo.

O enfrentamento do problema deverá passar por situações estruturais de planejamento e licenciamento. Uma leitura geomorfológica das cidades permitiria planejar intervenções em pontos nevrálgicos como as ilhas de calor, o que ensejaria políticas públicas visando ao conforto térmico da população, com planejamento urbano adequado, troca de materiais construtivos, maior arborização e adaptação com sistemas de refrigeração, especialmente para os mais vulneráveis.

Será preciso avaliar no Brasil as medidas que vêm sendo tomadas na área de saúde pública para promover diagnósticos sobre populações vulneráveis, riscos envolvidos, capacitação da sociedade e dos governos municipais, além de identificar possíveis fontes de recursos para lidar com planos emergenciais diante de cenários extremos, que tenderão a ocorrer com maior frequência e intensidade em futuro próximo.

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