Brasil: Sinais da anomia e da insegurança

Em fatos, fragmentos do colapso da Segurança Pública. Escutas telefônicas mostram a relação entre o comando da PM e chefes do tráfico. No Rio, estado pede trégua à facção criminosa. E cresce letalidade policial, sem resolver, em paralelo, a persistente sensação de medo

Tânia Rêgo/ Agência Brasil
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Por Adilson Paes de Souza, na Ponte Jornalismo

Enrique Pichon-Rivière chama a atenção para as situações de isolamento progressivo e de desintegração, tanto no plano individual como no social, que podem ocasionar a anomia — descrita pelo autor como sendo “um fenômeno patológico coletivo”. Fatos revelados, de um cotidiano podre e desolador, nos dão a dimensão de que já a atingimos, ou estamos na iminência de atingi-la.

1.

Reportagem do UOL, de 20 de maio deste ano, intitulada “Cid guardou powerpoint do golpe e outros documentos golpistas em celular”, revela a existência de duas apresentações em PowerPoint, uma com 112 slides, elaborada pelo Comando de Operações Terrestres do Exército (Manual de Segurança Integrada) e outra elaborada pela ECEME — Escola de Estado Maior do Exército (Garantia dos Poderes Constitucionais, uma missão constitucional das Forças Armadas), cujos teores apresentavam os supostos embasamentos legais e constitucionais para que as Forças Armadas interviessem num golpe de Estado.

Tais documentos, que foram encontrados no celular do Tenente Coronel Mauro Cid, figura central nas investigações sobre a recente tentativa de golpe de Estado no Brasil, configuram verdadeiros manuais desse intento.

Por ocasião do interrogatório no STF, Mauro Cid disse que os planos de golpe de estado e de assassinato se tratava de “conversa de boteco.” A desfaçatez e a naturalidade com que crimes contra a ordem democrática são tratadas por autoridades públicas é algo assustador e muito emblemático do paradoxo democrático que vivemos: “Quem vigia o Vigia?” Pergunta central para a assegurar a sobrevivência das instituições num estado democrático de direito, pois remete à importância da transparência que, segundo Norberto Bobbio, é uma das características principais da democracia.

No Brasil, cada vez mais fica demonstrado que não temos o vigia do vigia. O ensino militar é envolto numa atmosfera de mistério e segredo. A sociedade, literalmente, não sabe o que acontece nas escolas que compõem o sistema de ensino dos militares e, tampouco, o dos policiais militares. O que permite que tudo possa ser ensinado sem o mínimo controle pela sociedade civil. Teorias conspiratórias inclusive.

Note-se que as apresentações em PowerPoint foram expostas para não se sabe quem e em quais circunstâncias, numa unidade de ensino superior do exército brasileiro. Há perguntas que exigem respostas: Quem foi o responsável pela realização destes estudos (sic)? Quem fez a apresentação? Para quem? Em quais ocasiões? Por que não há punição aos responsáveis? Por que impera, novamente, o silêncio quando o assunto envolve as Forças Armadas?

Escolas militares fora do controle civil

Pasmem que há previsão legal para esta aberração — o artigo 83 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e, recentemente, os artigos 3º, inciso XVIII e 14 da Lei Orgânica das Polícias Militares (LOPM) — estabelecem que o ensino nestas instituições se desenvolva longe do controle da sociedade civil. Estes absurdos, que estão contidos em textos legais, não foram objetos de arguição de inconstitucionalidade até o momento, cabe destacar que várias são as partes legitimadas para tal, conforme estipula o artigo 103 da Constituição Federal.

Notem que não houve até o momento uma única manifestação do Comando do Exército, do Governo Federal e de membros do Congresso Nacional sobre estas apresentações golpistas em PowerPoint. Eles que devem um explícito pedido de desculpas à Nação. Todos silentes, sabe-se lá quais são os motivos. Todos se tornam, dia após dia, sócios do colapso institucional e democrático.

2.

Reportagem do Globo, de 18 de maio deste ano, trouxe a público que grampos judiciais, executados pela Polícia Federal, revelaram a existência de uma trégua, a mando do Comando Vermelho na cidade do Rio de Janeiro, por ocasião da reunião de cúpula do G20, em fevereiro de 2024. Atendendo a uma solicitação de um “representante das autoridades do Rio”, a cúpula do Comando Vermelho determinou que a facção “segurasse sete dias sem guerra e sem roubo”.

Se não fosse o bastante, as mesmas investigações revelaram que um membro da facção, preso na Penitenciária Bangu 3, articulou esta trégua. Além disto, ele realizou uma rifa, cujo prêmio era um fuzil. Tudo isto de dentro do sistema prisional. Não resta a menor dúvida de que o Estado faliu, não controla mais nada e depende da facção para obter determinado grau de segurança em determinadas situações. Tudo é objeto de acordo, o que faz lembrar da célebre frase de Dom Corleone, no filme O Poderoso Chefão — It’s only business!

3.

Negócios, nada mais que isto. Outra reportagem, do Globo, de 30 de abril, revela o grau de cumplicidade e até de subserviência entre policiais militares e traficantes. O material foi obtido em escutas telefônicas da Polícia Federal. O oficial comandante da UPP Nova Brasília relata ao chefe do tráfico que será transferido para outra área, a da UPP Manguinhos. Mas trata logo de tranquilizar o traficante, pois diz que o sucessor é de confiança, pois é “gente boa” e vai ‘passar tudo para ele”, que dará continuidade ao acordo existente entre ambos — a proteção e liberdade para que as atividades do tráfico pudessem ocorrer sem repressão estatal.

O traficante, por sua vez, promete conversar com o chefe do tráfico da área para onde o oficial será transferido, intercedendo a seu favor, ou seja, dando uma espécie de carta de recomendação. Quem manda na cidade, quem determina a ordem e a segurança? Não é o Estado. Desde o sistema prisional até os gabinetes, o crime organizado dá as cartas.

Política de expansão da letalidade sem segurança

Enquanto isto, planos de segurança, ditos exitosos e até mesmo incensados por “especialistas em segurança pública” e boa parte da imprensa, prometem uma paz ilusória e enganosa. A cada anúncio de medidas oficiais — por exemplo, planos ditos de segurança — há descrédito por parte da população, que não sente a mínima melhora no seu dia a dia.

Há um sentimento de abandono, o medo avoluma e toma conta de nossas relações com o outro. Daí a eclosão de ideias que apregoam o extermínio como a solução ideal — a nossa solução final. O Estado responde permitindo a expansão da letalidade policial, fazendo passar para a sociedade que a paz virá com o extermínio de pessoas. O que não é verdade. A situação só piora. Não há plano de segurança plausível sem que toque na corrupção estatal e no domínio que as facções criminosas exercem em várias atividades do Estado — o sistema prisional é uma delas.

Em suma, golpes de estado gerados e estudados no seio do Estado, o mesmo Estado incapaz de prover segurança, que pede trégua à facção criminosa, é o mesmo Estado cujos agentes têm uma relação promíscua e subserviente com traficantes. É o mesmo que estimula o extermínio de pessoas. Mortes de um lado, negociatas de outro.

É este Estado que finge agir em prol da segurança pública, finge estar preocupado com a ordem democrática, que nos deixa entregues à nossa própria sorte e que patrocina a morte de pessoas e da democracia, de forma sistemática.

Adilson Paes de Souza, doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano, é pós-doutorando em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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