Brasil: Nunca mais, 40 anos e um legado atual
Dossiê conseguiu reunir provas do que acontecia nos porões da ditadura. Por seu detalhamento das atrocidades, foi considerado a primeira Comissão da Verdade do país. Ainda hoje, é chamado para a responsabilização dos crimes – e molda esperanças de outro futuro
Publicado 17/07/2025 às 16:46 - Atualizado 17/07/2025 às 16:56

Por Magali Cunha, na CartaCapital
Um dos inspiradores livros do teólogo e educador Rubem Alves tem uma frase inspiradora: “A memória tem uma função subversiva. (…) Talvez que a memória das esperanças já mortas seja capaz de trazê-las de novo à vida, de forma que o passado se transforme em profecia e a visão do paraíso perdido dê à luz a expectativa de uma utopia a ser conquistada”.
Esta frase pode embalar o 15 de julho de 2025, data dos 40 anos da publicação de Brasil: Nunca Mais. Foi naquele 1985, quando a ditadura militar dava os últimos suspiros, que a Editora Vozes publicou o rol de 700 processos políticos que tramitaram pela Justiça Militar, entre abril de 1964 e março de 1979. Um denso, inédito e relevante relato da repressão que se abateu sobre o Brasil naqueles anos.
Pelo nível de detalhamento das perversidades cometidas pelo Estado durante regime, Brasil Nunca Mais é considerado a primeira Comissão da Verdade do Brasil.
Realizado de 1979 a 1985, no contexto da anistia política que se estabeleceu, Brasil: Nunca Mais buscou garantir que a memória dos crimes da ditadura militar não fosse apagada. Contribuiu, também, para evitar que processos judiciais contra opositores fossem destruídos (tal como ocorreu no fim do Estado Novo) e divulgar este conteúdo.
O patrono do projeto e prefaciador da obra foi o arcebispo católico de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns. O que nem todo mundo sabe é que Brasil: Nunca Mais tem bases ecumênicas, pois além da coordenação de Dom Paulo, era liderado por um evangélico, o pastor presbiteriano Jaime Wright, testemunha direta das torturas que fizeram desaparecer seu irmão, o deputado catarinense Paulo Wright. Ecumênico por essência, Brasil: Nunca Mais contou com apoio decisivo do Conselho Mundial de Igrejas, que financiou e protegeu o acervo.
Brasil: Nunca Mais conseguiu reunir as provas do que acontecia nos porões da ditadura, ao compor um acervo com cópias dos processos judiciais movidos contra opositores do regime que tramitaram no Supremo Tribunal Militar (STM). Advogados ligados a Arns e Wright retiravam processos do Supremo Tribunal Militar por 24 horas, copiavam-nos numa sala comercial vizinha equipada com três Xerox e devolviam-nos antes que alguém desconfiasse. Seis anos depois, havia 900 mil páginas, 707 processos, 543 rolos de microfilme – e a radiografia minuciosa dos porões: números de presos, desaparecidos, centros de detenção, métodos de tortura, médicos de plantão, agentes identificados.
Coube aos jornalistas Ricardo Kotscho, Frei Betto e Paulo Vannuchi transformar o material em livro. Lançado em 15 de julho de 1985, apenas quatro meses após o fim formal do regime, Brasil: Nunca Mais tornou-se best-seller e referência sobre violações de direitos humanos. A edição norte-americana, Torture in Brazil (Random House), funcionou como seguro contra possível censura.
Os microfilmes viajaram para o Center for Research Libraries, em Chicago, e ali ficaram até 14 de junho de 2011, quando o Ministério Público Federal os repatriou em cerimônia pública. Dois anos depois, a Procuradoria Regional da 3.ª Região lançou o portal Brasil Nunca Mais Digital, disponibilizando on-line as 900 mil páginas, além de documentos internos do Conselho Mundial de Igrejas e da Comissão Justiça e Paz que revelam os bastidores da operação clandestina.
Esse legado alimentou o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, de dezembro de 2014, que mapeou 230 centros de violação, registrou 434 mortos e desaparecidos e confirmou a prática sistemática de prisões arbitrárias, sequestros, torturas e assassinatos.
Desde então, o Coletivo Memória & Utopia mantém viva essa chama, destacando o papel das igrejas — suas lideranças e fiéis — na resistência debaixo de uma fé comprometida com justiça e direito. Em 2002, o grupo publicou, em parceria com CESE, Koinonia e Instituto Vladimir Herzog, o livro As Igrejas Evangélicas na Ditadura Militar: dos abusos de poder à resistência cristã, reforçando a centralidade de Brasil: Nunca Mais.
Os 40 anos do Brasil: Nunca Mais são uma oportunidade, em especial às igrejas e seus líderes, de se inspirar nesta memória, abolir e denunciar a cultura do autoritarismo e da violência, infelizmente ainda hoje incentivada por muitas instâncias de poder.
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