Brasil: Como tornar o Cuidado um trabalho valorizado?
São 25 milhões de pessoas nesta ocupação. Mas as desigualdades persistem. É preciso tratá-la como bem público – com formação adequada, salários dignos e contratos protegidos. Não restrita às mulheres e nem confinada às famílias. Diversos países mostram como fazê-lo
Publicado 16/04/2025 às 17:15 - Atualizado 16/04/2025 às 17:16

Por Nadya Araujo Guimarães, no The Conversation
Cuidar é um ato essencial. É garantir o bem-estar e sustentar a vida de outra pessoa, o que envolve, entre tantas tarefas, atividades como preparar a comida, dar o banho. Durante a pandemia de Covid-19, essa dimensão do cotidiano ganhou visibilidade e urgência. Mas, passado o momento crítico, o cuidado rapidamente voltou a ser tratado como algo natural, quase instintivo, e próprio das relações familiares — quando, na verdade, é trabalho. Um trabalho fundamental, mas historicamente invisibilizado, desvalorizado e profundamente marcado por hierarquias de gênero, classe e raça.
A partir da premissa de que o cuidado é trabalho, colegas e eu conduzimos uma ampla pesquisa internacional sobre seu provimento, marcado por custos elevados e profundas desigualdades. O objetivo foi entender como diferentes sociedades organizam a oferta de cuidado remunerado, como a pandemia afetou essa ordem e de que modo, sob distintos regimes de bem-estar, as formas de organização social do cuidado no pós-pandemia se reconfiguraram. Buscamos mapear quem cuida, em que condições e com quais vínculos, revelando os contornos deste campo de trabalho.
No centro da nossa análise esteve o reconhecimento da heterogeneidade das formas que o trabalho de cuidar pode assumir. Foi essa diversidade que nos levou à necessidade de construir uma tipologia capaz de organizar esse campo múltiplo, marcado por diferentes arranjos e intensidades. Chamamos essa proposta de “halos do cuidado” — uma imagem que remete à ideia de camadas concêntricas, nas quais variam a intensidade, a pessoalidade e a domesticidade do cuidado prestado.
A tipologia permite classificar as ocupações segundo três critérios fundamentais: o tipo de interação (direta ou indireta), a frequência (recorrente ou eventual) e o espaço em que o cuidado se realiza (doméstico ou não doméstico). De acordo com esses parâmetros, identificamos cinco grandes grupos ocupacionais, organizados segundo o grau de proximidade com quem recebe cuidado — do mais próximo ao mais distante da relação pessoal e cotidiana.
Modelo brasileiro aprofunda desigualdades
A aplicação dessa metodologia ao caso brasileiro trouxe informações contundentes. Em 2023, o trabalho de cuidado remunerado mobilizava cerca de 25 milhões de pessoas — o equivalente a um quarto da força de trabalho do país. No núcleo mais íntimo, denso e cotidiano desse mercado — o cuidado doméstico, direto e recorrente — predominavam, de forma marcante, as mulheres negras. Segundo dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – IBGE), elas representavam 62% das trabalhadoras do cuidado direto e 61% do cuidado indireto realizados no domicílio. E são justamente essas trabalhadoras que enfrentam as condições mais adversas: remunerações baixas (menos de sete dólares por hora, em média), jornadas extensas e escassa proteção social. A formalização é mínima. Apenas 21% das mulheres que prestam cuidado direto no domicílio estão inscritas na Previdência. No caso do cuidado indireto doméstico, esse percentual é similar: meros 25%.
A comparação com outros países torna ainda mais evidente o caráter estruturante dessas desigualdades. Na França, por exemplo, o provimento do cuidado externalizou-se largamente em relação ao domicílio, deslocando as atividades de cuidado do âmbito doméstico para instituições ou serviços organizados fora das residências. Esse processo implica a transferência, parcial ou total, do cuidado familiar para arranjos públicos ou mercantis, mediado por políticas, organizações e vínculos formais de trabalho. Neste país europeu, o Estado desempenha papel central no financiamento e regulamentação do cuidado, sobretudo nas áreas de saúde e educação infantil. Ali, o mercado é intermediado por empresas e associações, mas o trabalho é regulado, há exigência de certificações e a ele se associam direitos e proteções. Na Colômbia, diferentemente, destaca-se o peso do mercado, onde é forte a presença de contratos por tarefa em um contexto de baixa participação estatal.
O Brasil parece configurar um outro arranjo: entre nós, chama a atenção o papel das famílias na contratação direta de cuidadoras e trabalhadoras domésticas. Ao mesmo tempo, assistimos ao avanço rápido de intermediadores do trabalho domiciliar, como empresas-plataforma e serviços de homecare. É um crescimento que ainda escapa às estatísticas oficiais, mas reconfigura silenciosamente o campo do cuidado.
Isso cria uma situação ambígua: se é certo que somos um país onde os valores “familistas” são muito fortes, e estão sublinhados na própria Constituição, os dados também indicam a presença significativa do Estado nas áreas institucionalizadas do cuidado. Ainda assim, persiste a contratação direta de mulheres, majoritariamente negras e pobres, mobilizadas no cuidado cotidiano que se faz nas residências. Em outras palavras, vivemos um processo em que a mercantilização do cuidado parece não ter a equivalente externalização das tarefas em relação ao domicílio, um modelo que não apenas mantém, mas aprofunda as desigualdades de classe, raça e gênero.
O estudo também mostra que há uma forte polarização nas condições de trabalho nos diferentes “halos” do cuidado. À medida que nos afastamos do cuidado direto e doméstico, e nos aproximamos de funções exercidas no espaço público, em instituições governamentais ou privadas (como enfermeiras, professoras, médicas), aumentam os salários, a escolaridade média e a proporção de vínculos formais. Também há maior presença de homens e de pessoas brancas. Isso revela um mercado segmentado, que atribui menos valor (simbólico e monetário) ao cuidado mais íntimo, repetitivo e invisibilizado — justamente aquele que mantém o cotidiano de milhões de famílias.
Reconhecer o cuidado como trabalho é o primeiro passo para enfrentar as desigualdades. Mas isso não basta. É preciso ampliar e qualificar as políticas públicas direcionadas aos que cuidam: garantir formação adequada, remuneração digna, contratos protegidos, reconhecimento social. É urgente tratar o cuidado como bem público e como uma responsabilidade coletiva — não apenas restrita às mulheres e nem confinada às famílias. Nosso estudo não buscou apenas responder à pergunta “quem cuida de quem cuida?”, mas propõe que essa pergunta seja recorrentemente feita e reiterada. E que ela oriente a construção de políticas mais justas, mais eficazes e, sobretudo, mais humanas.
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