Assim o rap explica o Brasil periférico

Conversa com Mano Brown, Criolo e Rael, às vésperas de um grande show. A volta da carestia nas quebradas. As razões do voto na direita. O direito à prosperidade que as esquerdas furtam-se a compreender. E a violência que “normaliza a desgraça dos nossos”

Foto: Jeff Delgado/revistapiauí
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Por Guilherme Henrique, na Piauí

O relógio marcava quatro horas da tarde de terça-feira (18) quando o rapper paulistano Rael abriu a porta de um dos estúdios do High 5 Studios, em Moema, na Zona Sul de São Paulo. “Tudo ensaiadinho?”, perguntou um amigo. “Ainda tenho que relembrar as músicas mais antigas”, respondeu o artista com bom humor. Porta adentro, Criolo, outro rapper paulistano, cantarolava os versos de Grajauex, um dos seus maiores sucessos. Nos corredores, um produtor afirmou: “Ele chega em 15 minutos”. Ele, no caso, era Mano Brown, que ao lado de Ice Blue, Edi Rock e KL Jay formam o Racionais MC’s, o mais importante grupo de rap do país. Juntos, Rael, Criolo e Brown estavam prestes a fazer o primeiro ensaio do show intitulado Qual é o Crime?, que acontece neste sábado (22), no Espaço Unimed, na região central.

Após o aviso, Brown não tardou a aparecer. Vestindo um conjunto esportivo vermelho, cumprimentou a todos, almoçou tardiamente e encaminhou-se ao estúdio. O setlist da apresentação já estava impresso em uma folha de sulfite branco com cerca de 25 faixas. A introdução instrumental que abre o espetáculo foi sucedida por Não Existe Amor em SP, de Criolo. Depois, iniciou-se uma discussão musical sobre a melhor forma de fazer uma transição para Vida Loka, Pt. 1, de Brown. Não houve veredicto, até que o líder do Racionais sentenciou: melhor mudarmos para Eu Sou 157, outra composição sua

O cuidado com o repertório atende a dois motivos: o primeiro, mais óbvio, é o de satisfazer o público durante a 1h30 de performance. O segundo, mais complexo, está relacionado ao fato de que os três possuem carreiras consolidadas e repletas de sucessos. “Tem muita história. É a equação de um sentimento que foi difícil para achar um caminho. Mas destravou”, disse Criolo à piauí. Ele explicou que será uma apresentação diferente da que o trio realizou em maio do ano passado, no festival Doce Maravilha, no Rio de Janeiro. “É um show especial e específico para São Paulo e esse diálogo da cidade com o rap. E que nós não sabemos se irá se repetir.” Há, por exemplo, a expectativa de que músicas de outros artistas, como Dexter e Ndee Naldinho, dois nomes históricos do rap paulistano, também sejam entoadas. Nada está confirmado. 

Criolo, de 49 anos, e Rael, de 41, se conheceram ainda jovens, em bairros do extremo Sul paulistano. O primeiro é do Grajaú, e o segundo, do Jardim Iporanga. Quando se interessaram pelo rap no fim dos anos 1980, Brown (atualmente com 54 anos) e os Racionais já eram reconhecidos como expoentes do gênero. “Comecei nessa parada dançando break, então ouvia muito as músicas deles [Racionais], como Pânico na Zona Sul, o disco Holocausto Urbano”, disse Rael. Criolo, por sua vez, afirmou que sempre conversa com o amigo sobre como é especial estar no palco com o ídolo. “Por mais que ele [Brown] nos trate de igual para igual, é algo diferente para nós. É a oportunidade de celebrar a vida com ele e o fato de termos sobrevivido contrariando todas as estatísticas.”

Conforme vão rememorando aspectos do passado, o show ganha mais nuances, com significados que não se vinculam apenas à celebração de suas trajetórias, mas aos dissabores encontrados pelo caminho. “Há trinta anos era o seguinte: parecia que nós, do rap, éramos de outro planeta. Um bando de ET que saiu de uma nave espacial para matar todo mundo. Era a cara da favela e do gueto”, lembra Criolo. “É o encontro da resiliência e de cada um dentro desse processo de quebrada e da cultura do rap, que não foi fácil”, complementa Rael. Brown, até então calado, arremata em tom de brincadeira: “Essas ideias aí são da época de Moisés, Abraão… A gente não viu o dilúvio, mas pisou na lama.” É um encontro que serve de esteio não só para que os rappers compartilhem histórias sobre episódios do passado, que oscilam entre o saudosismo e o ressentimento, mas também para que reflitam sobre temas do Brasil contemporâneo que atravessam suas produções.

Uma das músicas com presença praticamentrae certa no show é Onda (citação A Onda), lançada no fim de janeiro por Rael em homenagem a Cassiano, ícone da black music no Brasil. Em um dos versos, Rael cita referências negras, como Gilberto Gil, Jorge Ben, Sandra Sá e a banda Black Rio como forma de enaltecer o “fundamento black”. O termo é uma paráfrase de “Mandamento Black”, criado por Gerson King Combo, outro expoente do movimento. “Tem a ver com sobrevivência”, explica. “Eu era um cara retraído, tímido e não tinha resposta para as ofensas racistas que sofria. Ouvir Racionais me deixou com o pensamento à frente de outros moleques que não conheciam o rap e não sabiam se defender.” 

“O fundamento black é a minha essência”, ressalta Brown, que faz uma participação especial na faixa ao lado de Dom Filó, DJ e produtor cultural que pavimentou a black music no Brasil nos anos 1970. “É o meu café da manhã, almoço e jantar. De tempos em tempos se renova esse lance do fundamento black em mim, porque o Brasil o deteriora.” Peço ao líder do Racionais para explicar o que isso significa. “É um país que te amedronta, desencoraja e pressiona. Onde você pensa ter uma liberdade que não possui. É uma liberdade cerceada e tudo é conquistado com guerra. Viver isso é o mundo negro também.”

Brown diz que o preto no Brasil quer ser reconhecido “na vida e principalmente nos negócios.” “Quando se fala de coisa séria, do futuro, aí você é colocado no lugar do preto. É o cara que está sonhando demais, ambicioso demais ou querendo ser demais. Lutamos por muitas coisas. Isso é ser preto no Brasil, mano. E não é só questão de dinheiro. Falei recentemente que faltava dinheiro na favela e falta mesmo, inclusive para executar nossos planos.”

No início de dezembro do ano passado, durante a coletiva de imprensa que inaugurou uma exposição sobre os Racionais no Museu das Favelas, em São Paulo, Brown disse que “até hoje, o que falta para a favela é dinheiro. Não é filosofia, conhecimento. Esquece essas ideias. Se você tem a oportunidade de botar a mão no dinheiro, tem que botar. Para o preto, é essencial ter dinheiro. Quem trouxe a ideia de que dinheiro faz mal para nós é o branco dono de fazenda. É o dinheiro da sobrevivência, não da ostentação.”

À piauí, ele destrinchou seus argumentos. “Quando um meritocrata fala que falta o conhecimento na favela, quebro ele com algumas perguntas: ‘Irmão, você sabe construir uma casa no barranco?’; ‘Sabe fazer comida boa, subir uma laje ou mexer na eletricidade do seu carro?’ Ele não sabe. Então, como dizer que na favela falta conhecimento? O que falta é dinheiro. Agora, isso não é papo de liberalismo. É um fato. As pessoas que moram na favela sobrevivem com pouco dinheiro. Você acha que elas fazem isso sendo burras ou inteligentes? Tudo que é tido como desinteligente é aplicado à favela e isso é preconceito. É sempre falta de informação, conhecimento…É um discurso racista.”

Criolo, que em seu último álbum (Sobre Viver, de 2022) compôs uma canção intitulada Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais, diz que, junto ao reconhecimento, é preciso permitir o acesso à prosperidade para pretos e pobres. “Só com acesso à prosperidade vamos nos desenvolver. E para chegar de igual serão muitos séculos.”

Brown pega carona na fala do parceiro. “Prosperidade é um assunto para poucos. Infelizmente, nosso povo está voltando à luta pelo básico. Está tudo caro para caralho. E o nosso presidente é de esquerda…”, pondera ele, que criticou o afastamento do PT das periferias em 2018 e apoiou Lula publicamente quatro anos depois. “As pessoas falam: ‘Brown, está tudo muito caro. Você não vai falar nada?’ É verdade, está caro mesmo, que nem nos anos 1980. A vida está difícil para o trabalhador e a gente não ignora isso.”

A conversa, então, recai sobre uma fratura social complexa e de difícil compreensão. Rael acredita que “o Brasil virou vários países em um só”, que “está difícil dialogar” e que “ninguém está se ouvindo”. O líder do Racionais interrompe o parceiro para explicitar sua tese. “Eles [brancos e ricos] querem voltar ao comando das coisas e com muita mão de obra negra. É uma guerra civilizacional”, afirma. “Existiu um período de defesa dos negros e dos indígenas. Agora, há uma outra mentalidade, que inclusive tem aparecido nas eleições, de que esse assunto é conversa fiada. Vemos isso na periferia. É triste, polêmico, mas é a realidade. Tudo isso tem a ver com o nosso show. Não é só entretenimento, tá ligado?”

Segundo Criolo, um dos principais elementos dessa fratura é a violência que “normaliza a desgraça dos nossos.” “Um dos maiores atrativos na televisão brasileira é mostrar o resultado dessa guerra urbana onde as pessoas se regozijam ao ver um cidadão dar um tiro na cara do outro às cinco horas da manhã enquanto escova os dentes antes do trabalho.” Brown chama a atenção do companheiro. “Você não viu o que aconteceu com o sobrinho do Eduardo? Onze tiros nas costas”, afirma. Ele se refere à morte de Gabriel Renan da Silva Soares, de 24 anos, sobrinho do rapper Eduardo Taddeo, ex-membro do grupo Facção Central. O jovem foi morto em novembro do ano passado pelo policial militar Vinicius de Lima Britto na saída de uma unidade da Oxxo na Zona Sul ao tentar furtar itens de limpeza. A Justiça de São Paulo aceitou a denúncia do Ministério Público para torná-lo réu por homicídio qualificado. 

“Aí, você vai ver os comentários e a população aprova. O público do rap aprova. ‘Ah, mas se estivesse na igreja não tinha acontecido… É horrível”, complementa o integrante do Racionais. Cabisbaixo, Rael lembra que seu filho de 12 anos foi vítima de racismo em dezembro do ano passado ao ser abordado por seguranças de uma unidade da rede Pão de Açúcar na Aclimação, região central paulistana. O garoto foi obrigado a abrir sua mochila, mas liberado em seguida. “E ele não tinha feito nada. Imagina se tivesse feito.” 

Para o trio, esse racismo contra o jovem negro é um dos fatores que explicam a perseguição a artistas do rap, do funk e do trap – um subgênero do rap. O principal exemplo está na Lei Anti-Oruam, um projeto de lei criado pela vereadora paulistana Amanda Vettorazzo (União Brasil) que impede o poder público municipal de contratar artistas, shows e promover eventos abertos ao público infantojuvenil com apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas. O nome da proposta é uma referência ao funkeiro Oruam, filho do traficante Marcinho VP, apontado como um dos principais líderes do Comando Vermelho e preso por crimes como formação de quadrilha, tráfico de drogas e homicídio qualificado. No ano passado, Oruam se apresentou no Lollapalooza utilizando uma camisa que pedia a liberdade de seu pai. Propostas similares foram apresentadas em Câmaras Municipais pelo Brasil e no Congresso Nacional, por iniciativa do deputado paulista Kim Kataguiri (União Brasil). 

“É um território perigoso”, diz Rael. “O moleque fala de uma realidade. Se for assim, os filmes também fazem isso. O sertanejo fala de cerveja e está tudo certo.” Brown acredita que esse tipo de iniciativa faz parte de um movimento maior e mais profundo dentro da realidade do país. “É a ponta do iceberg. Isso é censura, algo que essa molecada não viveu na ditadura militar. São leis rígidas e quem não se encaixa é excluído. Se você não se adequar à máquina, é tratado como fruta podre, uma peça com defeito. Nessa mentalidade, muitos que vivem em posição de vulnerabilidade serão excluídos, esmagados, esquecidos e massacrados.” 

Ele afirma que esse punitivismo não é exclusivo das classes A e B, mas que também está presente entre os mais pobres. “Não é como antigamente, que era o playboy contra o favelado. O buraco é mais embaixo. Hoje, o sujeito que mora ao seu lado na favela é o seu oponente mais feroz. Ele odeia sua música e seu cabelo. O voto mostra que uma parcela da periferia escolheu a direita. E não dá para afirmar que são todos desonestos, racistas, nazistas. Tem muito preto que votou assim, gente que, por algum motivo, que eu também gostaria de saber, concorda com esse pensamento.”

São conflitos sociais que, claro, impactam o cenário musical e a relação entre os artistas e seu público. Não é um debate novo, sobretudo no rap, que saiu de gênero asfixiado em meados dos anos 2000, por estar carente de sucessos e relevância na indústria,  para um dos estilos mais tocados do Brasil a partir da década seguinte. Musicalmente, é comum encontrar entre os fãs do Racionais a crítica de que o belicismo que marcou a produção musical dos anos 1990 foi sendo paulatinamente abandonado, dando espaço a temáticas envolvendo consumo e dramas amorosos. O comentário, aliás, envolve boa parte da cena contemporânea do hip hop nacional. 

Rael acredita que artista não pode ter medo de dizer o que pensa ou “ficar refém de uma determinada ideia”. Brown concorda, mas faz uma ressalva. “Como diria Sabotage [rapper paulistano morto em 2003, aos 29 anos]: o rap é compromisso. Alguns compromissos podem estar sendo cantados, outros não. Nem tudo que faço coloco em rede social. Agora, preciso entender o mundo que me cerca e os caras que ouvem a gente. Eles estão reclamando. Está no voto, no hater da internet, na crítica ao Mano Brown. Só se o Brown for muito burro para não entender que tem gente infeliz para caralho, que está se sentindo prejudicado e enganado. E se sentir enganado é a pior coisa. Não pode parecer que estou enganando meu pessoal, a galera que me trouxe até aqui. E eu não estou enganando. Mas como é que eu faço para provar que não, se nem tudo que eu faço está no holofote?”, questiona-se.

O que foi para o holofote, para desespero de alguns, foi a presença do rapper na apresentação de Neymar como atleta do Santos, na Vila Belmiro, no início de fevereiro. O abraço entre Brown e o jogador, que declarou apoio explícito a Jair Bolsonaro nas últimas eleições, foi reprovado por parte dos seus fãs mais à esquerda. Para muitos, o cantor não poderia estar ali. “Como se eu não fosse brasileiro, como se eu não fosse santista, muito santista, santista para caralho, desde sempre”, afirmou Brown, que complementou. “O Neymar é um ser mutante, mano. O que é óbvio para ele hoje pode não ser amanhã. A inclinação política dele hoje pode não ser a mesma no futuro. E tem outra: quantos dos nossos nas periferias não defendem Deus, pátria e trabalho? Nossa mãe ensinou isso: acreditar em Deus, nos orixás, trabalhar, ser honesto, respeitar o pai e a mãe… Quem patenteou isso como um comportamento de direita ou de esquerda? É complexo.”

Essa complexidade a que se refere Brown sobre o momento do país torna o show ainda mais importante, afirma Criolo. “A nossa existência é muita coisa. Essa celebração é um momento para sorrirmos e cantarmos juntos. Uma coisa não está desligada da outra, ninguém está de chapéu atolado [gíria para desatento ou distraído]. Mas já nos tiraram tudo. Também não vão permitir sorrir entre nós? Precisamos nos abraçar, porque a rua está milgrau [expressão para algo intenso].

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