África do Sul: do apartheid ao neoliberalismo

Estagnação, desemprego de 27%, desigualdade e pobreza cada vez mais intensas. Resultados de uma transição que jamais questionou o projeto econômico da elite branca

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A transição na África do Sul, de um regime de racismo institucionalizado a uma democracia eleitoral, é um acontecimento de grande relevância. Infelizmente, esta guinada não se refletiu na situação econômica. Em pouquíssimo tempo, o Congresso Nacional Africano (CNA), partido que liderou a luta contra a opressão racista, abraçou e consagrou as políticas do neoliberalismo que haviam cimentado o sistema de exploração e desigualdade do apartheid. A análise da economia política deste processo de transição é uma lição importante para qualquer governo que aspire uma mudança social e econômica real.

No final dos anos 80, a situação na África do Sul havia chegado a um beco sem saída. Os enfrentamentos drenaram toda a energia de ambos os lados e os militantes do CNA sabiam que o aparato repressivo da minoria branca não se sustentava mais. Mesmo assim, houve uma insurreição final, com muita violência, que levou a um banho de sangue nas ruas, tantos dos principais centros urbanos quanto em algumas comunidades periféricas.

A minoria branca confiava em seu formidável arsenal policial-militar, mas o regime estava em plena bancarrota política, e seu isolamento internacional o levaria finalmente ao fracasso, por escolher o caminho da repressão. Ademais, o apartheid chocava com a lógica da acumulação capitalista, ao impedir a livre mobilidade no trabalho. Toda a indústria do país sofria os inconvenientes. Havia chegado o tempo de negociar para assegurar um acordo de transição vantajosa.

Durante a segunda metade dos anos 80, as reuniões secretas entre a elite econômica e os altos mandos do CNA se multiplicaram. Quando Nelson Mandela foi libertado, em 1990, os contatos passaram a ser mais frequentes. Mandela e Harry Oppenheimer, o magnata da indústria da mineração de diamantes, se reuniram em banquetes na Little Brenthurst, a casa de campo do industrial. Para a minoria branca, o objetivo era criar condições que permitissem a transição política, sem sacrificar os privilégios econômicos adquiridos durante o apartheid.

No acordo final de transição negociado entre o CNA e a minoria branca, o ingrediente destacado foi o da democracia eleitoral: uma pessoa, um voto. Mas essa paridade política escondia a desigualdade econômica: a nova constituição garantiu os direitos de propriedade da minoria sobre terras, minas, fábricas, bancos e telecomunicações. A lei suprema que nasceu desse acordo consolidou a profunda desigualdade que sempre havia prevalecido na África do Sul.

O programa dos anos de luta do CNA incluía um forte processo de nacionalizações de indústrias (especialmente na mineração) e uma robusta reforma agrária. Tudo isso caiu no esquecimento com a Constituição – a qual ainda é vigente. Ademais, o partido aceitou o pagamento da dívida acumulada durante os anos do apartheid e o novo governo acabou quitando mais de 2 bilhões de dólares anuais em juros de uma dívida odiosa, acumulada antes de 1994. Ou seja, aceitou pagar os créditos que foram utilizados para oprimir a maioria negra da população.

Até a autonomia do Banco Central foi ratificada, como parte do pacote de organização econômica (e a direção do órgão ficou nas mãos de um funcionário que já o havia dirigido durante os anos do apartheid). Os princípios de austeridade e saneamento das finanças públicas também foram incorporados como elemento essencial da nova estratégia econômica.

Assim, o governo de unidade nacional abraçou os princípios do neoliberalismo. Os instrumentos utilizados para convencer os líderes do CNA incluíram numerosas promessas de novos investimentos, que nunca foram cumpridas. Também se utilizaram outros meios, como a corrupção, a fraude, a intimidação e até mesmo o assassinato – como no caso de Chris Hani.

Em última instância, o Congresso Nacional Africano adotou a ideia de que a economia da África do Sul é um mecanismo delicado, que só os especialistas da minoria branca podem manejar com eficiência. Somente os peritos versados na ortodoxia neoliberal podem guiar a política macroeconômica. Os princípios neoliberais em matéria de estabilidade de preços e cortes orçamentários foram a bússola do novo governo.

Atualmente, sabemos que estabilidade de preços não é sinônimo de estabilidade macroeconômica, e que a gestão correta da dívida pública mediante o superávit primário conduz ao desastre. Mas, em 1994, o governo sul-africano preferiu dar migalhas para o gasto social, e um pouco mais em investimentos para obras públicas, sem fazer mudanças medulares na estratégia econômica herdada do apartheid.

Os resultados obtidos pela África do Sul não surpreendem: estagnação, desemprego de 27%, desigualdade e pobreza cada vez mais intensas. Os níveis de violência e criminalidade não são menos desanimadores, porque é impossível combater a criminalidade sem abandonar o neoliberalismo. A lição é clara: não mexer em nada para melhor administrar o modelo neoliberal, e supor que os benefícios chegarão em conta-gotas à maioria da população, não é uma boa estratégia.

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