A Licença Ambiental Especial e o roteiro da tragédia
Corrida por terras raras requer atenção. Ao criar rito para acelerar obras, o governo também se sujeita ao risco. Em MG, Operação Rejeito é a prova de fogo dos efeitos de controles frouxos: corrupção, desastres ambientais e muito dinheiro público indo para o ralo
Publicado 15/10/2025 às 17:08

Por Maurício Angelo e Adriana Pinheiro, na Le Monde Diplomatique Brasil
A Medida Provisória 1.308/2025 cria a Licença Ambiental Especial (LAE), um rito “especial”, com prazo máximo de 12 meses para decisão do órgão responsável do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), aplicado para empreendimentos definidos como “estratégicos” pelo próprio Executivo. Ao trocar regra por discricionariedade, abre-se espaço para priorização de obras sem critérios claros, gerando terreno fértil para captura governamental e pressão política sobre órgãos técnicos. As evidências indicam que a LAE surge no processo da Lei Geral do Licenciamento Ambiental a partir da preocupação do Presidente do Senado Federal com a exploração do petróleo na Margem Equatorial. Sua aplicação, contudo, é extensa, abrangendo hidrelétricas, rodovias, portos, mineração e vários outros empreendimentos impactantes.
Minas Gerais lidera o faturamento mineral e concentra a produção de ferro. É também onde atalhos no licenciamento ambiental cobram um preço bastante alto. Em setembro deste ano, a Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União deflagraram a Operação Rejeito e descreveram um esquema de fraudes para liberar exploração irregular de minério de ferro. A Justiça bloqueou R$ 1,5 bilhão e os investigadores apontaram projetos associados com potencial acima de R$ 18 bilhões, incluindo corrupção e cooptação de servidores do alto escalão da Agência Nacional de Mineração, do sistema ambiental estadual e da própria PF, além de políticos. É prova de fogo em um sistema que agiliza sem reforçar controles: redes criminosas prosperam, a insegurança jurídica aumenta e os danos ambientais e sociais têm impactos inestimáveis.
O estado de Minas Gerais também foi uma espécie de “laboratório” da LAE ao criar, em 2017, a Superintendência de Projetos Prioritários, instância ligada à Secretaria de Meio Ambiente, agora com diversos órgãos associados investigados pela PF, surgida com o objetivo justamente de escolher projetos considerados essenciais ao Estado e receber um tratamento especial, incluindo dezenas de grandes projetos minerários, mesmo os problemáticos como o de Brumadinho, antes do rompimento. No mesmo período, entre 2016 e 2018, uma lei e uma deliberação normativa simplificaram o licenciamento ambiental no maior estado minerador do Brasil, em termos muito semelhantes ao que foi aprovado pelo Congresso e pelo Executivo em 2025.

Além dos debates sobre a LAE, passou a tramitar em regime de urgência no Congresso o PL 2.780/2024, que institui a Política Nacional de Minerais Críticos e Estratégicos. O texto prevê “apoio ao licenciamento ambiental” e “priorização de projetos” pelo Ministério de Minas e Energia, Agência Nacional de Mineração e outros órgãos, inclusive quando o licenciamento é estadual ou municipal. Sem salvaguardas explícitas, essa prioridade administrativa pressiona prazos e agendas dos analistas e pode virar “LAE na prática” no âmbito da política de minerais críticos. Por outro lado, ao propor aprofundar os subsídios e incentivos fiscais para o setor mineral, que faturou mais de R$ 1,5 trilhão desde o rompimento de Brumadinho, em 2019, o PL pode aprofundar desigualdades e distorções estruturais causadas pela mineração.
A ideia de escolher projetos “essenciais” para o país teve, no nível federal, seu balão de ensaio na mineração: o programa Pró-Minerais Estratégicos, criado durante o governo de Jair Bolsonaro, em 2021, ainda ativo, oficializou o tratamento especial dado a projetos escolhidos a portas fechadas e sem qualquer escrutínio ambiental, muitos deles problemáticos, conhecidos por entrar em conflito com os direitos de povos indígenas, caso de Belo Sun e da Potássio do Brasil, entre outros.
É aqui que a LAE e o PL dos minerais críticos precisam de travas claras. Apoiar e priorizar não é pular etapas. Estudos ambientais como condicionantes e audiências públicas não são burocracia: são o devido processo técnico. Qualquer priorização deve contar com critérios objetivos, transparência ativa do processo e resguardo da independência dos órgãos ambientais. Celeridade que atropela a consulta é ilegalidade, não modernização.
A transição energética precisa de minerais, mas a mineração não é a única via para fechar a conta. Metais reciclados têm, em média, cerca de 80% menos emissões do que os extraídos, e a combinação de reciclagem, eficiência e substituição reduz a pressão por novas minas. Primeiro, a demanda: cortar desperdício, estimular reciclagem e só então discutir onde, como e se explorar, garantindo a exclusão da mineração em terras indígenas, territórios quilombolas, assentamentos rurais e unidades de conservação. O Brasil não só não precisa sacrificar áreas protegidas para expandir a sua exploração de minerais críticos, o que vai na contramão das metas climáticas nacionais e dos acordos internacionais firmados pelo país.
Outro problema é o PL 2.809/2023, que cria a certificação voluntária de “lítio verde”. É selo de mercado, não licença ambiental. Sem blindagens, pode virar moeda reputacional para pressionar facilitação indevida e alimentar greenwashing, especialmente com verificação frágil do que seria baixo carbono. A aprovação do PL no Senado equivaleria a dar às empresas que extraem lítio a prerrogativa de um selo que não encontra amparo na realidade. O Ministério Público Federal acaba de pedir à ANM a suspensão da exploração e a revisão de autorizações para o centro do lítio no país hoje, o Vale do Jequitinhonha, em MG, devido a inúmeras irregularidades apontadas, incluindo a falta de consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas e quilombolas impactadas.
A Operação Rejeito mostrou o que acontece quando a chave gira para o lado errado: licenças compradas, fiscalização neutralizada e dinheiro público indo para o ralo. Às vésperas da COP30, repetir o roteiro que termina em tragédia não é opção.
Maurício Angelo é Diretor do Observatório da Mineração.
Adriana Pinheiro é Assessora de Incidência Política do Observatório do Clima.
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