A função política do jornalismo local

Estudo alemão mostra a relação entre os “desertos midiáticos” e o voto na ultradireita. Quando faltam jornais em pequenas e médias cidades, conteúdos virulentos das redes tomam o espaço. É preciso entender como isso influencia a população destes locais

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Por Carlos Castilho, no Observatório da Imprensa

Já se sabia que os desertos informativos (cidades sem imprensa) geravam apatia política, tolerância à corrupção e absenteísmo eleitoral, mas uma pesquisa feita na Alemanha mostrou que as consequências podem ser ainda mais graves. Dados colhidos na província de Baden-Württemberg mostraram que o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD – sigla em alemão) saltou para 19,3% das preferências eleitorais em 2021, de uma média de 9,2% na década anterior.

Segundo o trabalho realizado pelo mestrando em jornalismo Maxim Flosser, da universidade de Stuttgart, o mesmo fenômeno ocorre em outras cidades alemãs, em especial nas situadas na antiga Alemanha Oriental. O acadêmico fez uma relação entre fechamento de jornais e comportamento político, chegando à conclusão de que há uma coincidência preocupante entre a redução no volume de informações locais fornecidas pela imprensa e o simultâneo aumento dos votos dados aos candidatos da AfD. 

A tendência registrada no trabalho de Flosser confirma fenômeno idêntico detectado nos Estados Unidos, em cidades onde o eleitorado ultraconservador do ex-presidente Donald Trump vem crescendo apesar das denúncias e processos criminais em curso contra o candidato à reeleição pelo partido Republicano. Ainda na Alemanha, a Associação Federal Alemã de Editores Digitais e Editores de Jornais alerta que cerca de 4.400 pequenas e médias cidades do país podem se tornar “desertos informativos” até 2025, o que provavelmente aumentará ainda mais o volume de votos dados ao partido que hoje já é a segunda maior força política do país.

Aqui no Brasil, ainda não temos pesquisas acadêmicas tão detalhadas como a de Maxim Flosser, mas o projeto Atlas da Notícia mostrou em seu informe 2023 que apesar de uma redução de 9,3% em relação ao ano anterior, ainda há 2.968 cidades, onde vivem 29,3 milhões de brasileiros (13,8% da população), com menos de um órgão de imprensa voltado para a informação local. É um campo fértil para que o isolacionismo político e o negacionismo informativo alimentem tendências políticas antidemocráticas.

Os dados da realidade colhidos em diversos países mostram que a combinação entre falta de informação e tendências extremistas de direita já é um fenômeno global, o que aumenta a importância da busca de soluções para os “desertos informativos”. O verdadeiro desafio é entender como e porque o fechamento de jornais locais influi na formação de opiniões entre os moradores de pequenas e medias cidades ou comunidades. É a chamada “pergunta do milhão de dólares”, mas algumas respostas já são pesquisadas, em especial nos Estados Unidos e na Finlândia. 

A estratégia da mentira

Uma das explicações mais plausíveis parte do conceito de “comunicação baseada em notícias” (news based communication, no jargão inglês), segundo o qual a notícia entregue pronta e acabada pela imprensa convencional perde rapidamente o poder de atrair a atenção das pessoas em favor do frenético compartilhamento de dados, fatos, opiniões, mentiras e boatos nas redes sociais. Além disto, a intensificação do fenômeno dos “desertos informativos” reduziu consideravelmente a quantidade de notícias locais que normalmente atrairiam a atenção dos moradores de pequenas e médias cidades do interior. 

Hoje as pessoas se comunicam trocando notícias entre si, dando origem a novas versões nem sempre confiáveis.  É um processo descentralizado e imprevisível submetido a regras ainda pouco conhecidas, mas que desafiam a centralização e a rígida hierarquia vigente nas reações, bem como normas e valores, muitos dos quais vigoram há mais de um século em jornais impressos e emissoras de rádio ou televisão.  

O noticiário fornece às pessoas insumos informativos formatados unidirecionalmente segundo a cultura e a agenda de interesses da elite governante. Quando a internet passou a oferecer uma enorme diversidade de versões, a notícia “empacotada” perdeu o privilégio de ser a única a condicionar a formação de opiniões no imenso espaço público desregulado criado pelas redes sociais. 

Neste espaço, as informações mais estridentes, paradoxais, impactantes ou sensacionalistas tendem a ganhar mais visibilidade e atrair a atenção, inclusive de quem pensa o contrário, porque fogem dos padrões tradicionais. Foi onde a extrema direita encontrou o terreno fértil para a contestar as normas vigentes no sistema liberal democrático, como aconteceu com os debates sobre terraplanismo, contestação das vacinas e a pregação místico-religiosa. 

A visibilidade obtida graças à divulgação de teses controvertidas e disseminadas largamente pelas redes sociais permitiram à extrema direita alavancar sua participação eleitoral, especialmente nos segmentos mais pobres e entre membros da elite econômica e militar assustados com o ritmo frenético das inovações digitais. Os ultraconservadores ganharam audiência na classe média baixa ao adotar o messianismo evangélico como um antídoto contra a pobreza e a frustração social. A elite social e os oportunistas políticos, por seu lado, assumiram o negacionismo como grande instrumento para disputar cargos eleitorais e posições no governo federal e executivos estaduais e municipais em todo o país. 

As mudanças no fluxo de informações na internet combinadas com as dificuldades financeiras da imprensa convencional conferem uma enorme importância ao papel do jornalismo local na redução da polarização político-ideológica em curso em boa parte do planeta. É um problema que não afeta mais apenas os jornalistas e empreendedores da comunicação, pois se tornou uma preocupação de todos nós, cidadãos.

Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.

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