A força das mulheres que amam umas às outras

Zami, romance da escritora estadunidense Audre Lorde, é um relato da cena lésbica nova-iorquina nos anos 1950. Com prosa íntima e poética, celebra os vínculos profundos estabelecidos entre mulheres negras e rebeldes – e seu poder transformador

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Por Luiza Brandino, na editora Elefante

Publicado originalmente em 1982, Zami: uma nova grafia do meu nome — uma biomitografia é o único romance de Audre Lorde (1934-1992). A autora ficou mais conhecida por seus poemas, ensaios e discursos, cujos temas principais são o ativismo negro e feminista, a luta contra as opressões, o anti-imperialismo e a subjetividade feminina.

Esses temas também estão presentes em Zami, entremeados às memórias e histórias narradas em primeira pessoa por Lorde. Mas não é exagero dizer que o livro é, sobretudo, uma celebração da lesbianidade, dos vínculos profundos estabelecidos entre mulheres e do poder transformador que são capazes de gerar.

Numa prosa íntima, poética e repleta de aromas, texturas e cores, Zami relata como foi crescer no bairro do Harlem, em Nova York, numa família austera de imigrantes caribenhos; tomar consciência das injustiças do mundo e senti-las na pele; e descobrir a homossexualidade e a cena lésbica nova-iorquina na década de 1950.

A edição brasileira foi publicada pela Elefante em 2021, com tradução de Lubi Prates e prefácio de floresta, dois proeminentes nomes da poesia contemporânea nacional. Para marcar o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, celebrado em 29 de agosto, decidimos retomar trechos do livro que nos contam da força e da poesia de Audre Lorde e do amor e da solidariedade entre mulheres.

Orgulho e celebração da lesbianidade

“A doçura do seu corpo encontrando e preenchendo minha boca, minhas mãos, onde quer que eu tocasse, me parecia correta e plena, como se eu tivesse nascido para fazer amor com essa mulher e estivesse me lembrando do seu corpo em vez de conhecendo-o profundamente pela primeira vez.” (p. 255)

De acordo com o Oxford English Dictionary, “zami” é uma palavra caribenha para lésbica/mulher homossexual. O relacionamento homoafetivo entre mulheres era uma prática comum em Carriacou, terra natal da mãe de Lorde, o lar distante tantas vezes relembrado pelas histórias maternas, um “paraíso particular de frutas-pão, cumaru, noz-moscada e lima”.

Algumas pesquisas antropológicas dão conta de que o lesbianismo em Carriacou tinha ampla aceitação social e era até mesmo estimulado — diferentemente das normas sociais brancas estadunidenses, do moralismo macarthista e de tantas ideologias heteronormativas e patriarcais ainda hoje tão propagadas.

“Zami. O modo como as mulheres de Carriacou amam umas às outras é uma lenda em Granada, assim como a força e a beleza que carregam.” (p. 33)

Audre recupera em sua genealogia e ancestralidade a força dessa forma de existir entre mulheres. A busca por sua identidade abraça o reconhecimento daquelas que vieram antes, de um modo de amor e desejo centrado nas mulheres.

Essa caminhada de autorreconhecimento não foi um caminho todo florido, porém. Zami remete aos primeiros 23 anos da vida de Lorde, e a juventude é feita também de corações partidos e solidões devastadoras, mais ainda quando o mundo se mostra quase sempre um ambiente hostil.

Eu me lembro de como me sentia sendo jovem, negra, gay e solitária. Com relação a grande parte disso eu estava tranquila, sentindo que tinha a verdade, a clareza e a solução, mas outra grande parte foi um verdadeiro inferno.

Não havia mães, nem irmãs, nem heroínas. Tínhamos de seguir sozinhas, como nossas irmãs amazonas, as cavaleiras nos postos avançados mais solitários do Reino do Daomé. […]

Eu me lembro de pensar por um tempo que eu era a única lésbica negra que morava no Village, até que conheci Felicia. […]

Felicia e eu […] éramos parte do grupo “esquisito” de lésbicas que não gostavam de representar papéis e a quem as butches e femmes, negras e brancas, desqualificavam com os termos Ky-Ky ou AC/DC. Ky-Ky era o nome usado para garotas gays que dormiam com caras por dinheiro. Prostitutas. (p. 321-4)

Foram muitas as camadas de isolamento que cercaram Lorde ao longo do curso dos acontecimentos narrados em Zami, uma insularidade causada por múltiplos fatores: a norma da branquitude, a heteronormatividade mesmo nos ambientes lésbicos (como é o caso da maioria das lésbicas da época, que emulavam os papéis tradicionais homem/mulher em trajes e comportamentos), o patriotismo estadunidense tacanho, moralista e antifeminista.

Mas Audre consegue encontrar o próprio caminho até a casa de si mesma, e divide conosco tanto os momentos mais sombrios quanto grandes cenas de êxtase e felicidade consciente, de intimidade e erotismo, de gozo e fúria e, principalmente de cumplicidade e parceria. Nomear-se “zami” é reconhecer que as muitas partes que compõem sua identidade foram forjadas de modo coletivo, com outras mulheres.

“Mulheres que foram gentis, mas também mulheres que foram cruéis”, diz Lorde. Porque Zami é, aliás, um livro que fala de relacionamentos (amorosos, eróticos, de amizade), de vínculos profundos que envolvem quase sempre confrontos reais entre as pessoas, mas é desse solo que podem germinar as conexões reais que levam à renovação mútua. E no seio de uma coletividade de mulheres há uma força transformadora revolucionária.

No reconhecimento de amar encontra-se
uma solução para o desespero. (p. 15)

Uma biomitografia

Quando visitei Granada, vi a raiz do poder da minha mãe caminhando pelas ruas. Este é o país das minhas antepassadas, pensei, das minhas mães precursoras, aquelas mulheres negras da ilha que se definiram pelo que fizeram. (p. 27)

Embora narrado em primeira pessoa e embasado sobretudo nas memórias pessoais de Audre, Zami não é uma autobiografia, mas uma biomitografia. Num exercício original de autoficção, Audre tece uma trama poética composta de recordações ficcionalizadas, de histórias que não sabemos dizer se foram vivenciadas por ela mesma ou por outras mulheres e de uma busca por elementos míticos que possam inspirar e nortear a jovem protagonista. Nos textos iniciais do livro, que funcionam como uma extensão das dedicatórias, Audre escreve:

Para as partes artesãs de mim mesma.
Tornando-se.
Afrekete. (p. 21)

Afrekete é uma deidade do panteão do Daomé. Embora originalmente concebida como um espírito feminino, tomou a forma masculina em algumas tradições diaspóricas. É também uma espécie de trickster, como Elegba ou Exu em outras tradições. Lorde vê nesse caráter de gênero duplo de Afrekete uma força particular, uma ambiguidade que possibilita mediar contradições aparentes — um modelo de sobrevivente e combatente que pode ajudar a protagonista a lidar com crenças e comportamentos opressores.

O duplo gênero de Afrekete evoca também a inconformidade de Lorde com os tradicionais papéis sexuais binários que ela critica na própria comunidade lésbica, mas reforçam uma possibilidade ainda maior: a da quebra completa dos limites do gênero.

Em última instância, Lorde pincela o texto com as cores de figuras femininas negras míticas — deusas, amazonas, guerreiras solitárias do Reino de Daomé, mães precursoras — que encarnam a potência e a liberdade necessárias para romper a sufocante ordem branca, imperialista e heteropatriarcal.

A jornada até a casa de si mesma

“Para onde quer que a pássara sem pés voasse, ela encontrava árvores sem galhos.” (p. 62)

Quando o livro foi lançado, Lorde deu uma entrevista em que revela as duas grandes motivações para a escrita de Zami. A primeira fagulha surgiu em 1977, quando, durante uma conferência da Modern Language Association, uma moça negra se levantou em meio aos presentes e disse: “Eu sou uma crítica literária lésbica feminista, e me pergunto se é possível ser o que sou e sobreviver”.

Lorde ficou verdadeiramente arrebatada com a beleza e a coragem dessa mulher, de quem ela se tornaria amiga e parceira de trabalho — era Barbara Smith, outra importante voz do feminismo negro estadunidense.

“Naquele momento, pensei comigo mesma: ‘Ok, Audre, você realmente precisa dizer algumas coisas, tem algumas histórias que você precisa contar, e que essa moça precisa saber. É difícil, é claro, mas é certamente mais do que possível sobreviver!’”

Mais tarde, as duas fundaram juntas a Kitchen Table, uma editora dedicada à circulação de obras de autoras negras.

A pergunta de Smith causou grande impressão em Lorde e foi o pontapé inicial para que ela começasse a rascunhar algumas histórias. O que eram contos avulsos começou a tomar corpo como livro um pouco depois, quando Lorde estava vivenciando um período extremamente doloroso: a luta contra o câncer de mama. A recuperação da mastectomia e a vulnerabilidade física e emocional causada pela doença trouxeram a necessidade de rememorar o que havia lhe dado forças em outros momentos de dificuldade — e, nas palavras da autora, “foi o amor das mulheres que me salvou”.

Zami, portanto, veio ao mundo motivado por um desejo de cura e sobrevivência individual e coletivo, e desponta como uma resposta a um chamado exterior: era preciso contar para outras mulheres negras e lésbicas que não, elas não estavam sozinhas; que “nós existíamos, nós estávamos lá, vivendo; não foi assim para todo mundo, mas foi assim que aconteceu comigo”.

Ao mesmo tempo, Zami é uma resposta a um chamado interior: Audre volta-se para si, profundamente, e reexamina de que modo as conexões entre ela e outras mulheres que fizeram parte de sua história realmente a mantiveram viva em outros tempos difíceis.

Imagens de mulheres flamejantes como tochas enfeitam e definem as margens de minha jornada. […] São imagens de mulheres, gentis e cruéis, que me levam para casa. (p. 17)

Zami é um presente de Audre Lorde para todas as mulheres que amam mulheres — sobretudo para lésbicas negras, cujas histórias foram repetidamente silenciadas, menosprezadas ou deliberadamente interrompidas. Em memória de Luana Barbosa e Ana Caroline Sousa Campêlo.

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