A cruzada cega de Trump contra a China

Discurso ameaçador do secretário de Estado Mike Pompeo retoma crença no “Destino Manifesto” dos EUA e insinua que Washington pensa lançar seu imenso poder bélico contra Pequim. Tudo será mais grave, caso presidente se reeleja

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Por Jeffrey D. Sachs, no Project Syndicate, traduzido pela Carta Maior

Muitos evangélicos cristãos brancos nos Estados Unidos há muito acreditam que os Estados Unidos têm uma missão dada por Deus para salvar o mundo. Sob a influência dessa mentalidade de cruzada, a política externa dos EUA muitas vezes se desviou da diplomacia para a guerra. Corre-se o risco de que isso se repita.

No mês passado, o secretário de Estado Mike Pompeo lançou mais uma cruzada evangélica, desta vez contra a China. Seu discurso foi extremista, simplista e perigoso – e pode muito bem colocar os EUA em um caminho para um conflito com a China.

Segundo Pompeo, o presidente chinês Xi Jinping e o Partido Comunista da China (CPC) abrigam um “desejo de hegemonia global de décadas”. Isso é irônico. Apenas um país – os EUA – tem uma estratégia de defesa que exige que o país seja a “potência militar preeminente do mundo”, com “equilíbrios regionais favoráveis de poder no Indo-Pacífico, Europa, Oriente Médio e Hemisfério Ocidental”. O documento oficial de defesa da China, em contraste, afirma que “a China nunca seguirá o caminho batido pelas grandes potências na busca da hegemonia”, e que, “à medida que a globalização econômica, a sociedade da informação e a diversificação cultural se desenvolvem em um mundo cada vez mais multipolar, a paz, o desenvolvimento e a cooperação ganha-ganha continuam sendo as tendências irreversíveis dos tempos”.

Lembre-se da própria admoestação de Jesus: “Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, para poder tirar o cisco do olho do teu irmão” (Mateus 7:5). Os gastos militares dos EUA totalizaram US$ 732 bilhões em 2019, quase três vezes os US$ 261 bilhões gastos pela China.

Os EUA, aliás, têm cerca de 800 bases militares no exterior, enquanto a China tem apenas uma (uma pequena base naval em Djibouti). Os EUA têm muitas bases militares perto da China, que não tem nenhuma perto dos EUA. Os EUA têm 5.800 ogivas nucleares; a China tem cerca de 320. Os EUA têm 11 porta-aviões; a China tem um. Os EUA lançaram muitas guerras no exterior nos últimos 40 anos; a China não lançou nenhuma (embora tenha sido criticada por escaramuças fronteiriças, mais recentemente com a Índia, que param aquém da guerra).

Os EUA rejeitaram ou se retiraram repetidamente dos tratados das Nações Unidas e das organizações da ONU nos últimos anos, incluindo a UNESCO, o acordo climático de Paris e, mais recentemente, a Organização Mundial da Saúde, enquanto a China apoia processos e agências da ONU. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ameaçou recentemente com sanções os funcionários do Tribunal Penal Internacional. Pompeo protesta contra a repressão da China à sua população uigure, de maioria muçulmana, mas o ex-conselheiro de segurança nacional de Trump, John Bolton, afirma que Trump deu uma aprovação privada às ações da China, ou até mesmo as encorajou.

O mundo deu relativamente pouca atenção ao discurso de Pompeo, que não ofereceu nenhuma evidência para apoiar suas afirmações sobre a suposta ambição hegemônica da China. A rejeição da China à hegemonia dos EUA não significa que a própria China busque hegemonia. De fato, fora dos EUA, há pouca crença de que a China vise o domínio global. Os objetivos nacionais explicitamente declarados da China são de se tornar uma “sociedade moderadamente próspera” até 2021 (o centenário do PCC) e um “país totalmente desenvolvido” até 2049 (o centenário da República Popular).

Além disso, com um valor estimado de US$ 10.098 em 2019, o PIB per capita da China foi menos de um sexto do dos EUA (US$ 65.112) – não exatamente a base para a supremacia global. A China ainda tem um caminho longo para alcançar até mesmo seus objetivos básicos de desenvolvimento econômico.

Se Trump perder as eleições presidenciais de novembro, o discurso de Pompeo provavelmente não será seguido de nenhuma nova ação. Os democratas certamente criticarão a China, mas sem os exageros descarados de Pompeo. No entanto, se Trump ganhar, o discurso de Pompeo pode ser um prenúncio do caos. O evangelismo de Pompeo é real, e os evangélicos brancos são a base política do Partido Republicano de hoje.

Os excessos zelosos de Pompeo têm raízes profundas na história norte-americana. Como contei no meu recente livro, A New Foreign Policy [Uma Nova Política Externa], os colonos protestantes ingleses acreditavam que estavam fundando um Novo Israel na nova terra prometida, com as bênçãos providenciais de Deus. Em 1845, John O’Sullivan cunhou a expressão “Destino Manifesto” para justificar e celebrar a violenta anexação da América do Norte pelos EUA. “Tudo isso será nossa história futura”, escreveu ele em 1839, “para estabelecer na terra a dignidade moral e a salvação do homem – a verdade imutável e a beneficência de Deus. Para esta missão abençoada para as nações do mundo, que estão excluídas da luz vivificante da verdade, a América foi escolhida…”

Com base em tais visões exaltadas de sua própria beneficência, os EUA se envolveram na escravidão em massa até a Guerra Civil e no apartheid em massa posteriormente; massacrou nativos americanos ao longo do século XIX e subjugou-os depois disso; e, com o fechamento da fronteira ocidental, estendeu o Destino Manifesto no exterior. Mais tarde, com o início da Guerra Fria, o fervor anticomunista levou os EUA a lutar guerras desastrosas no Sudeste Asiático (Vietnã, Laos e Camboja) nas décadas de 1960 e 1970, e guerras brutais na América Central nos anos 1980.

Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, o ardor evangélico foi direcionado contra o “Islã radical” ou o “fascismo islâmico”, com quatro guerras escolhidas pelos EUA – no Afeganistão, Iraque, Síria e Líbia – todas elas permanecem debacles até hoje. De repente, a suposta ameaça existencial do Islã radical foi esquecida, e a nova cruzada tem como alvo o Partido Comunista Chinês.

O próprio Pompeo é um literalista bíblico que acredita que o fim dos tempos, a batalha apocalíptica entre o bem e o mal, é iminente. Pompeo descreveu suas crenças em um discurso de 2015 quando era congressista por Kansas: “Os Estados Unidos são uma nação judaico-cristã, a maior da história, cuja tarefa é lutar as batalhas de Deus até o Arrebatamento, quando os seguidores renascidos de Cristo, como Pompeo, serão levados para o céu no Último Julgamento”.

Os evangélicos brancos representam apenas cerca de 17% da população adulta dos EUA, mas compreendem cerca de 26% dos eleitores. Eles votam esmagadoramente nos republicanos (cerca de 81% em 2016), tornando-os o bloco de votação mais importante do partido. Isso lhes dá poderosa influência na política republicana, e em particular na política externa quando os republicanos controlam a Casa Branca e o Senado (com seus poderes ratificadores de tratados). 99% dos congressistas republicanos são cristãos, dos quais cerca de 70% são protestantes, incluindo uma proporção significativa, embora desconhecida, de evangélicos.

É claro que os democratas também abrigam alguns políticos que proclamam o excepcionalismo norte-americano e lançam guerras de cruzadas (por exemplo, as intervenções do presidente Barack Obama na Síria e na Líbia). No geral, no entanto, o Partido Democrata está menos ligado a reivindicações da hegemonia dos EUA do que a base evangélica do Partido Republicano.

A retórica inflamatória anti-China de Pompeo pode se tornar ainda mais apocalíptica nas próximas semanas, nem que seja apenas para incendiar a base republicana antes da eleição. Se Trump for derrotado, como parece provável, o risco de um confronto dos EUA com a China recuará. Mas se ele permanecer no poder, seja por uma verdadeira vitória eleitoral, fraude eleitoral ou mesmo um golpe (tudo é possível), a cruzada de Pompeo provavelmente prosseguiria, e poderia muito bem levar o mundo à beira de uma guerra que ele considera provável e que, talvez, até mesmo busque.

Jeffrey D. Sachs, professor de Desenvolvimento Sustentável e Professor de Política e Gestão em Saúde na Universidade de Columbia, é Diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável de Columbia e da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. Ele atuou como conselheiro especial de três secretários-gerais da ONU. Seus livros incluem The End of Poverty [O Fim da Pobreza], Common Wealth, The Age of Sustainable Development [,A era do Desenvolvimento Sustentável], Building the New American Economy, e, mais recentemente, A New Foreign Policy: Beyond American Exceptionalism [Uma Nova Política Externa: Além do excepcionalismo americano].

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