A agenda dos poderes contra o “excesso de direitos”

Ideia cresce dentro de setores conservadores da Justiça. 330 mil presos sem julgamento, trabalhadores sem garantias e atuação ilegal de procuradores e juízes evidenciam: supostos defensores da legalidade estão contra a Constituição

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Por Lenio Luiz Streck, no ConJur

Finalmente descobri a razão pela qual tanta gente — tanto do baixo como do alto clero jurídico — faz críticas à Constituição e às leis que garantem direitos (penais e trabalhistas). Aqui mesmo, na ConJur, vê-se, nos comentários ao Senso Incomum, estudantes, advogados, juízes, promotores bradando contra o excesso de… direitos. Médicos que odeiam remédios. Alguns são tão violentamente contra direitos que chegam a ter seus comentários excluídos por ofensa pessoal ao colunista.

Sigo. A epifania “se me” ocorreu quando Bolsonaro disse que o trabalhador tem de escolher entre direitos e emprego (aqui). Eu nunca tinha visto a coisa sob esse ângulo: o da escolha. No Direito Penal deve ser o mesmo: as pessoas têm de escolher entre garantias ou paz social com segurança. Novo pacto? Abro mão de meus direitos em favor do Leviatã?

Explico a relação do que se diz no Direito com o que diz Bolsonaro. Como falei, integrantes do alto clero jurídico dizem (por todos, cito Joaquim Falcão, renomado professor de Direito Constitucional e meu companheiro na Academia Brasileira de Direito Constitucional — poderia referir outros, todos doutores em Direito e que pensam parecido) que há direitos (processuais) em demasia. Falcão chega a dizer que “o excesso do devido processo legal é uma doença. Inchaço. Patologia. É o processualismo”.

O artigo no qual ele disse isso foi aplaudido por milhares de pessoas formadas em Direito, não formadas em Direito e mal formadas em Direito. Vibra(ra)m. Descobrimos, assim, que o problema do Brasil e do processo penal é o processualismo. Pois é. Temos 812 mil presos, dos quais 330 mil são provisórios, porque… há direitos demais (os dados são do CNJ)? Esse número de presos sem julgamento deve ser porque há excesso de direitos. Temos pessoas presas em contêineres e carros estacionados (Rio Grande do Sul) porque… há direitos demais. Alguém dirá: mas esses presos são pobres. Já os ricos… Então a discussão assume outro patamar. O problema, será, então, do “excesso de direitos”? Assim como há tanta gente desempregada porque não souberam escolher entre ter emprego e ter direitos. Essa classe trabalhadora quer coisa D+.

Em linha similar, outro importante professor — sobre o qual já escrevi aqui — disse, não faz muito, criticando, do mesmo modo que Falcão, o processo e o excesso de garantias, verbis:

Quando alguém diz que não há provas, quer isto dizer que não haveria provas do ponto de vista de uma leitura germano-românica do direito penal econômico”.

Com essa frase, o professor José Eduardo Faria justifica a atuação dos julgadores do TRF-4 e do juiz Sergio Moro (e dos procuradores). Só para lembrar que, nesse processo, não esqueçamos, entre outros detalhes (como o uso de teses como o explanacionismo), ficou assentando que o MP não necessita ser isento. O que o professor Faria propõe — e justifica — é que existe “uma mudança no conceito de prova, uma mudança no conceito de processo e uma mudança no conceito do próprio delito”.

Deixa ver se eu entendi. Segundo o professor, prova não é (mais) a prova provada/demonstrada. Prova — no modelo defendido por ele — é aquilo que a superação do “sistema romano-germânico”, via commonlismo (essa é a proposta de Faria no artigo que contestei na ConJur — peço para lerem os dois, o meu e o dele, para não dizerem que tirei a frase do contexto) e um processo penal 3.0 (ou 4.0 ou alguma velocidade desse quilate), diz que é.

Assim, se alguém diz “Não há provas”, a resposta do direito 3.0 (ou 4.0) será “Não há provas vírgula, porque, do ponto de vista do direito penal econômico anglo-saxonizado, elas existem. Basta querer vê-las”. Prova, agora, é uma questão de “olhos de ver”. Algo como no O Nome da Rosa, em que Adso pergunta à G. Baskerville: “Vejo o cavalo, mas não vejo a cavalidade”. E o mestre responde: “É porque ainda não tens os olhos para ver a cavalidade”.

Portanto, prova não é mais algo que tem de ser demonstrado. Prova é algo “útil” (eficiente) ao establishment jurídico para satisfazer seu plano de poder. Simples assim. Vejam como os argumentos dos dois professores combinam. Resumo: nosso sistema jurídico está falido porque concede direitos demais aos réus, a Constituição é ultrapassada e temos que rever o conceito de prova. Já do outro lado, Bolsonaro diz que o trabalhador tem de escolher entre ter direitos ou ter emprego.

Ao que entendi, defender as garantias constitucionais — mormente o devido processo legal — é uma coisa atrasada, retrógrada. A moda, agora, é a commonlização.

Bom, no CPC já está demonstrado que o tal “sistema de precedentes” não passa de uma ficção. Quanto ao common law, tenho uma notícia ruim para dar. Rapidamente: não há inversão do ônus da prova no common law. E, se não sabem, todos os tribunais da federação brasileira ainda invertem o ônus da prova no caso de furto e trafico de drogas (vejam aqui). Isso sem falar na cadeia de custódia da prova e da questão da prova ilícita, temas nos quais o common law respeita o devido processo legal bem mais do que no Brasil. Basta examinar a jurisprudência norte-americana. Além disso, em matéria criminal, nos EUA tudo vira júri (aquilo que não for plea bargain). Essas comparações… E sem esquecer que, no common law dos Estados Unidos, desde 1963 o Ministério Público tem de investigar e entregar as provas que obteve em favor da defesa, como já expliquei ad nauseam aqui e aqui (e mais aqui e aqui).

Ainda uma coisa: se o commonlismo é melhor, por que a Alemanha e outros países continentais ainda não adotaram essa novidade que “supera” o “ultrapassado sistema romano-germânico”? Portanto, devagar com o andor.

Não sei se Bolsonaro copiou dos juristas ou se estes copiaram de Bolsonaro. Mas a tese de que há direitos trabalhistas demais é por demais parecida com a tese de que há direitos demais no âmbito do Direito Processual (para deixar bem claro e evitar ambiguidades, não estou dizendo ou insinuando que quem critica o fato de termos direitos demais seja apoiador de Bolsonaro ou seja contra o Estado de Direito). Detalhe: O Brasil é uma República que visa a erradicar a pobreza, fazer justiça social, diminuir as desigualdades regionais. Sabem onde está escrito isso? No Manifesto Comunista? Não. Está no artigo 3º da Constituição, aprovada predominantemente por pessoas como Ulysses Guimarães, Nelson Jobim e tantos outros.

Deve ser muito subversivo ler na Constituição o elenco de direitos civis (fundamentais-processuais) constantes no artigo 5º. Alguém já leu todos? E, atenção, são cláusulas pétreas, o que quer dizer que teremos de conviver com eles, quer o alto clero queira, quer o baixo clero jurídico faça passeatas contra.

Vendo tudo o que acontece no Direito brasileiro, vendo a justificativa que parte do alto e baixo clero jurídicos dão para os atos de Moro e Dallagnol, vem-me à mente que o cenário do Direito brasileiro é mesmo o da Batalha de Pirro: em 280 a.C., o rei Pirro, depois de vencer uma batalha, disse, respondendo a um indivíduo que lhe demonstrou alegria pela vitória: “Mais uma vitória como essa e estarei arruinado completamente“. E disse isso apontando para o que restou de suas tropas.

Por isso, vou me repetir: no Brasil, defender a legalidade constitucional, hoje, é uma atitude revolucionária.

Muita gente do Direito, fosse médica, faria passeata contra vacinas e remédios. Talvez por isso o habeas corpus seja chamado de remédio heroico… E os juristas cada vez mais critiquem o seu uso!

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