Violência: é hora de um SUS da Segurança
Em seu último dia, Abrascão debate chacinas e o aumento de mortes por armas de fogo. Para romper o ciclo neoliberal de imediatismo e demagogia, pesquisadores defendem o SUSP: um sistema com participação social e planejamento baseado em evidências científicas
Publicado 04/12/2025 às 12:46 - Atualizado 04/12/2025 às 12:48
No domingo (30), enquanto o 14º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva reunia milhares de profissionais e pesquisadores de variadas especialidades em torno do tema “Democracia, Equidade e Justiça Climática”, Allane Pedrotti e Layse Pinheiro eram enterradas no Rio de Janeiro. Ambas foram vítimas de feminicídio pelas mãos armadas de João Antônio Miranda Tello Gonçalves, nas dependências do Centro Federal de Educação em Tecnologia no Rio de Janeiro.
O crime soou alarmes de gota d’água para mulheres, que convocaram manifestação nacional para o próximo domingo (7), em várias capitais do Brasil. A revolta se amplificou entre outras razões pelo fato de o Brasil bater recordes de feminicídios em 2025. Dessa forma, o Abrascão terminar suas atividades com o pertinente debate “Violência armada, uma ameaça à democracia, à equidade e à saúde”, pareceu uma leitura precisa dos desafios imediatos de nossa sociedade.
A correlação parece inevitável e demonstra que os milhares de pesquisadores reunidos em Brasília não podem deixar de lado a violência brutal da sociedade brasileira quando se trata de elaborar uma noção plena de direito à saúde. Afinal, este é dependente do direito à vida em sua concepção mais básica.
“São 1,172 milhão de mortes violentas em 40 anos. Dos anos 90 pra cá, a tendência de mortes por outros meios declina, mas por armas aumenta. E aí precisamos entender a dinâmica. Existem meta-análises, revisões sistemáticas, enfim, evidências científicas de que mais armas não diminuem crimes”, afirmou Daniel Cerqueira, pesquisador do IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O tema da violência atravessou diversas mesas do Abrascão e foi tema de múltiplos trabalhos de pesquisa apresentados no Congresso. Megachacinas como a do Rio de Janeiro, na qual a ação espetacular comandada pelo governador Claudio Castro terminou com 121 mortes, apenas reforçaram a importância do tema na saúde coletiva.
Afinal, para além da (falsa) política de combate ao crime – organizado por dentro e na presença do Estado, como disse Jaqueline Muniz em sua exposição – há toda uma violência que penetra nas relações sociais em geral, como evidencia o assassinato das duas educadoras do Cefet.
Nesse sentido, a antropóloga mexicana Amaranta Gomez Regalado, indígena muxe transgênero que coordena o Secretariado Internacional Regional para Pueblos Indígenas sobre HIV/aids, Sexualidade e Direitos Humanos, traçou o elo histórico das formações sociais latino-americanas.
“Democracia, equidade e acesso à saúde vivem ameaçadas por essas microexpressões de violência, inclusive setores populacionais que se acham livres disso”, resumiu.
Sua análise trata da violência em termos gerais e particulares, isto é, na estrutura política e social, com seus efeitos sobre pessoas de diversos contextos, desde territórios dominados pelo crime organizado até pessoas de classes erroneamente percebidas como mais imunes a tal dinâmica.
Como defendido por Diana Anunciação, vice-presidente da Abrasco que mediou o debate, a espiral da violência é raiz de uma formação estatal “supremacista branca”, herdada do colonialismo. Seu pensamento é complementado pela crítica implacável de Jaqueline Muniz, cientista social com produção intelectual no campo da segurança que se tornou alvo da extrema-direita após a matança do complexo Penha-Alemão.
“É a tradição liberal autoritária de definir soluções com ideias positivistas, que são verdades emancipadas da realidade. Daí falo em despolitização da segurança pública. Repetimos mantras há 40 anos. E os pressupostos já estão errados”, explicou Jaqueline Muniz.
Como insistiram os dois pesquisadores brasileiros em suas falas, o debate sobre segurança pública é “patético”, movido a instintos primitivos e uma demagogia que impõe noções estúpidas. Em resumo, um debate vazio de quaisquer evidências científicas e reprodutor de velhos clientelismos, pois, como classificou Muniz, o que vemos é uma noção gerencialista que oferece “produtos”, e não uma ação política democratizante.
Pois, se o SUS é concebido como um sistema orientado pelo controle e participação social, o mesmo deve se dar na Segurança Pública – como se esboça nos novos debates sobre o tema, cuja expressão principal parece ser a criação Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).
“Devemos blindar polícias e forças armadas de apropriação política e privada. Isso é herança da ditadura que distribuiu os poderes sobre tais forças. O SUSP tem um desenho institucional que despersonaliza a autoridade do comando das polícias”, explicou Muniz.
Para ela, é necessário defender uma forma de “quebra de monopólio”. Tal como o SUS, uma tripartição de poder com amplas divisões de autoridade pelo território são um caminho.
“É preciso quebrar os monopólios de polícia, coisa que acontece na concepção de policiais civis e militares. Os EUA são exemplo. Há mais de 40 mil polícias no país. A ideia de unificação tem legitimidade histórica para combater conflito de competência. E aqui não é um discurso de direita de ‘menos Estado’, mas de menos domínio de grupos políticos e governos de ocasião”, elaborou.
Ao longo de todo o debate, o juízo crítico sobre o método de governança, brasileiro e latino-americano, foi implacável. Dessa forma, é hora de tratar propostas como a de Guilherme Derrite, deputado federal e ex-secretário de segurança de SP, e seu Projeto de Lei Antifacção, como terraplanismo – para dizer o mínimo.

Como demonstrou Daniel Cerqueira, aumentar penas simplesmente não diminui a violência. E como deixou claro, o armamentismo do governo Bolsonaro “já contratou uma tragédia. Mais armas significa mais mortes”, afirmou, apoiado em diversas estatísticas sobre aumento de acesso a armas e munições.
“É falácia o discurso de legalização da arma ou seu uso ‘defensivo’. A ciência descobriu que armas são boas para atacar, mas péssimas para defender. E que mais armas legais também significam mais armas ilegais, coisa que a própria PF tem confirmado. Mais armas à disposição significa menores preços, o que as torna acessível a um criminoso ‘pequeno’. Uma lei de mercado”, complementou.
No entanto, é evidente que os debates de combate à violência não podem ser restritos a estratégias policiais e militares. Tal objetivo só pode ser atingido em conjunto com uma ampla agenda de ampliação da democracia no país.
“Segurança é rotina, mobilidade, previsibilidade em larga escala. E a promessa da segurança é uma ‘sucessão de agoras’. O neoliberalismo autoritário não garante nada disso e sobrepõe sua lógica a todas as demais políticas públicas”, resumiu Muniz.
No fim das contas, todas as modalidades de violência têm como origem a forma como se distribuiu – ou não – o poder político em tais sociedades e as estruturas geradoras de suas desigualdades.
“Frente a uma violência criminal voraz, cabe uma retrospectiva estratégica histórica que rearticule a violência estrutural, com toda a construção racista e colonial que fecha os caminhos para diversos direitos. O crime organizado é só mais uma dimensão da acumulação de capital que oprime nossos territórios”, afirmou Amaranta Regalado.
Sua reflexão dialoga com a condição multidisciplinar da Saúde Coletiva, campo de estudos e elaborações que pode abarcar múltiplas áreas do conhecimento, como o Congresso da Abrasco expõe. Seja a violência do crime ou a social, como representada nas mortes de Allana e Layse, há toda uma forma estatal de controle de corpos e territórios, como explicou Diana Anunciação, apoiada nas teorias de intelectuais como Michel Foucault e Achille Mbembe.
“Como recuperar nossa capacidade de indignação? A interseccionalidade não é algo a ser praticado na esfera intelectual, e sim posta a serviço da colaboração entre essas diferentes áreas da vida social. Como se diz na economia, devemos investir nessas formas de colaborar e nos conhecer. Devemos romper nossas pautas segmentadas”, concluiu Amaranta.
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