Coronavírus: as novas variantes e o velho descaso

Além do Reino Unido, também África do Sul reporta detecção de um coronavírus potencialmente mais perigoso. Mas não há estudos conclusivos sobre as cepas — e segunda onda parece surfar na negligência de Boris Johnson, Bolsonaro e outros

Imagem de microscópio eletrônico mostra colônia de coronavírus. São as esferas azuis
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AS VARIANTES DO VÍRUS

Até ontem, pelo menos Itália, Holanda, Bélgica, Turquia, Alemanha, França e Bulgária já tinham decidido suspender os voos procedentes do Reino Unido. A reação em cadeia aconteceu depois que o governo britânico decretou lockdown em alguns locais do país, na tentativa de conter a nova variante do coronavírus – sobre a qual já falamos por aqui

No sábado, o primeiro ministro Boris Johnson anunciou o pacote de restrições à circulação mais rigoroso desde março, afetando um terço da população do país. Regiões de Londres e do sul da Inglaterra passaram do que era o maior grau de isolamento para um recém-criado nível 4, que inclui o fechamento de todos os comércios não essenciais. Com isso, o governo espera diminuir a propagação da nova cepa para regiões onde ela ainda não é prevalente. O anúncio causou um certo pânico e as estações de trem se encheram de gente disposta a deixar a capital inglesa antes de a medida entrar em vigor, o que aconteceu ontem.

Durante a coletiva, o ministro da saúde britânico, Matt Hancock, caracterizou a situação como “fora de controle”. O conselheiro científico do governo, Patrick Vallance, explicou que além de se propagar rapidamente, a nova variante do SARS-CoV-2 está se transformando na forma “dominante” do vírus – o que, segundo ele, gerou “um aumento muito forte” das hospitalizações em dezembro. E Johnson divulgou um número que está sendo considerado precipitado por toda a comunidade científica (justamente ele é o destaque na maior parte da imprensa). Segundo o primeiro-ministro, a variante pode ser até 70% mais transmissível do que as variedades do vírus então em circulação no país. Só que esse dado não é baseado em experimentos laboratoriais, mas em um modelo epidemiológico. 

O fato é que de setembro, quando teria surgido no condado de Kent, até agora a nova cepa já se espalhou para outros quatro países: Austrália e Holanda (cada qual com um caso confirmado); Dinamarca (nove infecções); e Itália, que confirmou ontem seu primeiro caso.

Uma reportagem muito informativa da Science Magazine explica que a variante – conhecida como B.1.1.7 – pode estar muito mais difundida. Os holandeses a encontraram em uma amostra coletada de um paciente no início de dezembro. Outros países também podem ter a variante – e pode ser que o Reino Unido possa ter captado primeiro porque, segundo a revista, tem o mais sofisticado monitoramento genômico do SARS-CoV-2 no mundo, enquanto muitos países têm pouco ou nenhum sequenciamento.

A variante ficou conhecida no dia 8 de dezembro, durante uma reunião sobre a propagação da pandemia no Reino Unido, quando cientistas notaram que Kent, no sudeste da Inglaterra, estava passando por um aumento repentino nas infecções – e dados genéticos mostravam que a maior parte dos casos vinham dessa variação. Ela se destaca bastante das outras variantes do novo coronavírus. Até agora, o maior número de mutações já encontrado havia sido 12 – e essa variante acumulou 17 mutações, entre as quais há duas preocupantes, ambas no gene que codifica a proteína em formato de coroa que o vírus usa para invadir as células e se reproduzir lá dentro.

E a variante inglesa não é a única que preocupa. Na sexta, o governo da África do Sul anunciou a descoberta de outra cepa do coronavírus suspeita de causar mais infecções do que as demais. Segundo o ministro da saúde, Zwelini Mkhize, a “variante 501.V2” teria se tornado dominante desde meados de novembro, já respondendo por mais de 90% dos casos – o que coincidiria com uma evolução no panorama epidemiológico, com maior número de jovens sem comorbidades desenvolvendo formas graves da doença. Para o ministro, todos os elementos “indicam fortemente” que a segunda onda que o país atravessa é impulsionada pela nova variante. A OMS foi notificada. Esse anúncio também foi seguido por bloqueios: Alemanha, El Salvador, Israel e Turquia vetaram voos da África do Sul

Diante dessas novidades, fontes ouvidas pelo New York Times e pela Science Magazine pedem cautela. Em primeiro lugar porque não está fechado que as variantes aumentam a transmissibilidade do vírus. Essa taxa pode ter a ver com o comportamento das pessoas. A essa altura da pandemia, as interações se tornaram mais frequentes e próximas – e inclusive na África do Sul algumas infecções em jovens foram ligadas aos tais eventos de superespalhamento do vírus, e o maior número de doentes graves nessa faixa etária pode estar acompanhando o crescimento dos casos. 

Em editorial publicado ontem, o Guardian defende que a mutação não deve distrair o público de todas as falhas cometidas pelo governo britânico em sua condução da crise. Basicamente, o jornal afirma que mais uma vez Boris Johnson demorou a agir e tem dificuldades para colocar de pé um sistema eficiente de testagem e rastreamento que isole os infectados e seus contatos antes que os surtos aconteçam. 

De qualquer forma, os especialistas explicam que, sim, o vírus está em constante mutação – e isso pode se acelerar à medida em que o patógeno encontra mais dificuldades para se transmitir por conta da soroprevalência. A maior preocupação no momento é se as mutações afetarão a efetividade das campanhas de vacinação já em curso. Sobre isso, por enquanto, há apenas especulações. “Conforme a pressão aumenta com a vacinação em massa, acho que essas variantes mutantes se tornarão mais comuns”, reflete Deepti Gurdasani, epidemiologista da Queen Mary University, no NYT. O importante nos próximos meses será monitorar. “O que quer que tenha permitido o surgimento da linhagem B.1.1.7 provavelmente está acontecendo em outras partes do mundo”, diz Kristian Andersen, pesquisador de doenças infecciosas da Scripps Research à Science. “Seremos capazes de realmente detectá-lo e depois fazer o acompanhamento? Isso, para mim, é uma das coisas críticas.”, alerta.

PENCAS DE EVIDÊNCIAS

A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) enviou uma lista de 44 estudos científicos para Ailton Benedito, chefe do Ministério Público Federal de Goiás. No último dia 10, o procurador, conhecido pela defesa de pautas bolsonaristas, enviou um ofício à entidade científica. Queria basicamente intimidar os pesquisadores, que haviam publicado um documento dizendo o que todo mundo sabe, menos o governo: não existe tratamento precoce para a covid-19, muito menos eficácia no uso de cloroquina e vermífugos. A resposta da SBI veio em 43 páginas, que citam e resumem estudos científicos – 11 deles demonstrando a ineficácia da cloroquina. 

Questionada pelo procurador se a nota informativa do Ministério da Saúde que recomenda o uso da cloroquina não tem validade científica, a SBI fez uma análise detalhada de todas as referências bibliográficas do texto. Concluiu que o documento não para em pé: 33 citações fazem referência a publicações que não avaliam a eficácia clínica de medicamentos para a covid-19. Outros 12 artigos não passaram pela revisão dos pares e seus autores alertavam que não deveriam servir de diretriz para orientar a prática clínica. Dez citações vêm de textos de entidades médicas que não têm relação direta com estudos da covid-19, como a Associação Brasileira de Nutrologia. Para fechar, o ministério cita cinco vezes instituições que chegaram a orientar pelo uso da cloroquina, mas diante das evidências científicas foram responsáveis e voltaram atrás.

O MARQUETEIRO DO GENERAL

Eduardo Pazuello contratou um marqueteiro político para cuidar da sua imagem, e reposicionar o Ministério da Saúde durante a crise das vacinas. Transcorridas algumas semanas desde que Marcos Eraldo Marques desembarcou em Brasília, uma matéria do jornal O Globo faz o balanço de sua atuação até agora. Para começo de conversa, Markinhos (como prefere ser chamado) diz ter sido ‘preparado’ por Deus para a ‘missão’.

Ele tem colocado em prática ideias absolutamente estranhas à tradição de comunicação da pasta. É o caso do vídeo em que o secretário-executivo do ministério, Élcio Franco, usa como pretexto as vacinas para atacar o governador de São Paulo, João Doria (PSDB). E também a sugestão de que Pazuello entregasse o plano de operacionalização da campanha à CNN. “Internamente, a principal crítica ao trabalho de Markinhos é que ele tem colocado o marketing acima da comunicação institucional. O diagnóstico é que, desde sua chegada, instalou-se o caos na divulgação de informações da saúde”, escrevem os repórteres Paula Ferreira e Gustavo Maia. 

Como credenciais, o paraense de 45 anos ostenta a campanha para eleger o bolsonarista Antonio Denarium (sem partido) ao governo de Roraima… Vem daí a sua amizade com Pazuello: o general foi secretário de fazenda de Denarium, e Markinhos de comunicação.

FUGINDO DAS POLÊMICAS

A comissão de deputados e senadores que acompanha as ações de enfrentamento à covid-19 encerrou seus trabalhos na última sexta-feira. Na ocasião, o grupo aprovou por unanimidade o relatório do deputado Francisco Jr. (PSD-GO) – e a Folha destaca que o texto não só se absteve de críticas à atuação do governo federal durante a pandemia, como exaltou o trabalho do Ministério da Saúde como “exemplar”. “O elogio é basicamente dirigido ao atual ministro, Eduardo Pazuello, uma vez que a comissão foi instalada após a demissão de Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich”, escreve o repórter Renato Machado. 

Contraditoriamente, o relatório pede ao ministério que o debate em torno da vacina e das medidas de combate à covid-19 deve ser pautado “estritamente por informações técnicas e científicas” – deixando o “embate político” de lado. O documento também pede mais transparência na divulgação das taxas de ocupação de leitos públicos de UTI e manifesta preocupação com o fim do auxílio emergencial.

O relatório destacou um levantamento do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), segundo o qual 700 milhões de procedimentos ambulatoriais e hospitalares deixaram de ser realizados no SUS por conta da pandemia – o que aponta que o risco de que, no ano que vem, a demanda reprimida não seja atendida por falta de recursos. “Tal afirmação só reforça a necessidade de garantirmos mais recursos para o SUS em 2021 e enfrentarmos a proposta do governo que tira R$ 35 bilhões da saúde “, disse o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), ao comentar o relatório.

BATEÇÃO DE CABEÇAS

Já a auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) aponta erros em série do governo na resposta à crise sanitária. Técnicos afirmam que o Ministério da Saúde não tem um planejamento “minimamente detalhado” para o combate à pandemia, e representantes da pasta ocupada por militares não compreendem como função do ministério a articulação com os governos estaduais e municipais. O documento fala na possibilidade de “responsabilização dos gestores do ministério”, caso a pasta continue descumprindo as determinações de elaborar planos e dá como exemplo a aquisição de seringas e agulhas para as vacinas da covid-19. Os auditores dizem que o ministério abriu contratação para 300 milhões de unidades do material, mas que 11 estados informaram terem iniciado o processo para 150 milhões de unidades dos mesmos itens.
O tribunal destaca que o desabastecimento de medicamentos para a intubação, sentido durante os picos de internações, ainda não está solucionado. O documento foi apresentado em 8 de dezembro pela Secretaria de Controle Externo da Saúde, mas veio à tona agora.

SEM SEDATIVO

Uma investigação do site catarinense ND+ dá rosto ao problema da falta de sedativos para intubação de doentes gravas da covid. O veículo obteve o prontuário médico de Mateus Felippe de Souza, um jovem universitário que morreu em 15 de julho, após 23 dias de internação no Hospital Florianópolis. Segundo a reportagem, médicos e enfermeiros alertam no documento que faltavam na unidade pública bloqueadores neuromusculares, classificados pela sigla BNM. Por conta da escassez, os BMNs foram usados em combinação com outros sedativos, incluindo a morfina – que pode provocar efeitos negativos em pacientes com covid-19. Os profissionais relataram que o arranjo não estava surtindo efeito, provocando problemas na ventilação mecânica e chegaram a recomendar a transferência do paciente para uma unidade que tivesse os BMNs. O caso está sendo investigado pela Justiça.

PELA TERCEIRA VEZ

O ministro Luís Roberto Barroso rejeitou pela terceira versão o plano de enfrentamento à covid-19 para os povos indígenas apresentado pelo governo federal. Segundo o magistrado, o governo persiste no erro de omitir informações fundamentais, como quais são os critérios para fornecimento de cestas básicas, o total de famílias atendidas e sua localização. A nova versão deve ser apresentada até o dia 8 de janeiro. O documento também deverá indicar quais terras indígenas não homologadas serão beneficiadas.

Falando em planejamento, há um problema no plano de vacinação do Ministério da Saúde que tem a ver com os povos indígenas. Isso porque, como notou o repórter Rubens Valente, a pasta exclui mais da metade dos indígenas do país ao estabelecer os grupos prioritários para receber a imunização. Isso porque o último censo do IBGE, realizado há dez anos, apontou um total de 896.917 indígenas – número que segundo as organizações, hoje está na casa do milhão. Mas na versão do plano de vacinação apresentada ao Supremo no dia 13 de dezembro, o governo informou que havia incluído pouco mais de 410 mil indígenas na primeira fase da campanha. Nessa versão, a tabela era mais detalhada, e separava indígenas do restante dos perfis que integram essa fase, como idosos e profissionais de saúde. De lá para cá, o plano foi oficializado e mudou. Mas a pasta continua considerando apenas a “população indígena aldeada em terras demarcadas”, o que deixa de fora os que vivem em áreas em disputa e também nas cidades.

MUITA GENTE

Em agosto, 44% das pessoas que recebiam o auxílio emergencial apontaram que o benefício era sua única fonte de renda. Em dezembro esse número continua alto: 36% ainda afirmam depender exclusivamente do auxílio.  Os dados são do Datafolha e, se extrapolados, indicam que cerca de 25 milhões de pessoas podem se ver sem nenhuma fonte de renda em janeiro, quando o benefício deixará de ser pago. A pesquisa também investigou os impactos da redução do valor – que foi cortado de R$ 600 para R$ 300 em setembro – na vida das pessoas. E a alimentação foi a principal prejudicada: 75% dos beneficiários reduziram despesa com compra de comida. Os gastos com remédios ficaram em segundo lugar, entrando na mira de 65% dos beneficiários. 

EM JANEIRO

Foi marcada para a primeira semana de janeiro a viagem da equipe internacional liderada pela OMS à China. O grupo tem a missão de investigar as origens da pandemia. Os especialistas vão viajar para a cidade de Wuhan, onde os primeiros casos de covid-19 foram detectados em dezembro passado. 

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