Vacina da dengue, entre conquistas e alardes

Recém-aprovada pela Anvisa, é grande avanço para a ciência brasileira e será importante na prevenção da doença. Mas a forma como essa novidade é comunicada mostra que velhas concepções de saúde pública persistem. Um olhar sobre como a Butantan-DV aparece na mídia

Créditos: Instituto Butantan
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O anúncio da aprovação da vacina Butatan-DV pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 26 de novembro abriu a temporada midiática 2026 de uma das doenças mais emblemáticas do país: a dengue.

Com pompa, César Tralli anunciou no Jornal Nacional: “A Agência Nacional de Vigilância Sanitária aprovou hoje a primeira vacina contra a dengue em dose única. Ela é brasileira, produzida no Instituto Butantan”, disse o apresentador, seguido pelo VT liderado pelo repórter Tiago Eltz. “Dentre as batalhas brasileiras, poucas parecem ser tão frustrantes como a contra o mosquito”, começa o repórter, destacando a resistência do Aedes aegypti frente às ações de vigilância pública (agentes de saúde, carros de fumacê) e particular (inseticidas e armadilhas). Já no ambiente da fábrica, o repórter pede para a funcionária um frasco da vacina para ter “a honra” de apresentá-la à audiência, repetindo a mesma frase proferida por Tralli.

A matéria do JN é um ótimo exemplo da força do tradicional discurso campanhista, marca das abordagens da comunicação em saúde pública no país, ainda que constantemente repaginado: a metáfora belicista e civilizatória de tom ufanista, na qual Estado e ciência andam de mãos dadas contra a natureza e seus males (“batalha brasileira”); a imagética biotecnocientífica, na qual pipetas, jalecos brancos, EPIs de laboratórios, caixas de medicamentos e esteiras da linha de produção disputam a tela com infográficos e números de casos da doença; e o discurso disciplinador que critica os hábitos do povo pobre: o acúmulo de baldes e demais recipientes de água abertos. Não se consideram, por exemplo, a falta de água tratada e saneamento básico nas favelas, vilas e demais moradias populares; o acúmulo de “ferro velho” nos quintais, quando esses mesmos objetos desprezados pela sociedade dos apartamentos são muitas vezes as únicas formas que essas famílias têm para fazer algum dinheiro e poder reparar suas casas.

A hegemonia do discurso campanhista está diretamente vinculada ao modelo comunicacional unidirecional ­– de quem detém a informação para a audiência, que a recebe de maneira uniforme – e que reproduz também o modelo econômico de produção de notícias. Ainda que os tempos digitais possibilitem mais enquadramentos, ou seja, mais formas de se contar a notícia.

Uma rápida checagem nos buscadores do Google permite perceber o quanto a chegada deste imunobiológico vem ocupando espaço na mídia, sempre destacados seus feitos de inovação, capacidade de resposta e avanço frente às demais vacinas disponíveis: a Dengvaxia e a Q-Denga.

São 12 anos de pesquisa investidos pelo Instituto Butantan para o desenvolvimento da vacina de dose única, uma estratégia que facilita a adesão da população e reduz os custos frente às concorrentes, com 3 e 2 doses, respectivamente. Para o desenvolvimento da Butantan DV, o instituto paulista realizou uma parceria com os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos e a farmacêutica MSD, empresa norte-americana com subsidiária brasileira. A instituição de pesquisa norte-americana cedeu as cepas dos quatro sorotipos do vírus atenuados para a formulação do produto e conduziu a fase 1 da pesquisa.

Já com a MSD, o Butantan estabeleceu um acordo inédito de licenciamento em due diligence: as instituições compartilham dados dos estudos clínicos e atuam em conjunto no desenvolvimento do imunizante, além de determinar as regiões do mundo onde cada uma terá prioridade na comercialização da vacina, como traz uma matéria do próprio Instituto, de 2023. Se a tecnologia é 100% nacional, como divulgado, os meios para se chegar ao produto final não o são.

A mesma observação vale para o sistema de validação dos resultados dos ensaios clínicos. A fase 2 dos ensaios foi realizada entre 2013 e 2015 e incluiu 300 adultos brasileiros de 18 a 59 anos, enquanto a fase 3, iniciada em 2016, contou com uma rede de 16 centros de pesquisa, divididos em 14 estados brasileiros, que assumiram a missão de recrutar 16 mil voluntários de 2 a 59 anos.

É um grande mérito da ciência brasileira e do Instituto Butantan desenvolver conhecimentos e métodos próprios para a realização de um estudo tão robusto. Contudo, os resultados publicados na The Lancet Infectious Diseases (fase 2) e no New England Journal of Medicine (fase 3, ambas divulgadas em janeiro de 2024) estão longe do modelo de ciência aberta que buscamos.

Saúde e ciência são business, as usual, como tudo é no sistema capitalista. Os investimentos acumulados na Butantan DV chegam à ordem de R$ 305,5 milhões. Destes, R$ 97,2 milhões (cerca de 31% do investimento total) foram aportados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) para custeio dos ensaios clínicos e construção de uma planta de escalonamento para fornecimento da vacina. Planta esta que já produziu um milhão de doses, todas paradas no aguardo da aprovação da Anvisa e que agora serão negociadas com o Ministério da Saúde.

Porém, para garantir a quantidade de doses acenadas pelo Butantan para governo, será necessária a terceirização da produção da Butantan DV para Wuxi Biologics, farmacêutica chinesa que deverá entregar aproximadamente 30 milhões de doses até o fim do primeiro semestre de 2026.

O ministro Alexandre Padilha tem pressa; e a nossa população também. Ano passado, 5,9 mil pessoas vieram à óbito, dentro de um universo de 6,4 milhões de casos, um recorde de casos de uma série histórica desde 2000, num crescimento de 400% em relação ao ano anterior, 2023.

Esse grande aumento de casos no ano passado foi um dos pontos de desgaste na gestão da ministra Nísia Trindade, e é tudo que Padilha quer afastar de si, ainda que precise dividir os holofotes com o governador Tarcísio de Freitas e seu secretário de saúde, Eleuses Paiva.

O ator de maior exposição entre tantas matérias, colunas, artigos e reportagens, entretanto, não são os políticos, mas sim Esper Kallás, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e diretor do Instituto Butantan. Figura conhecida nos cenários científicos e políticos, habilidoso com as palavras, Kallás tem cumprido o papel de vendedor de sonhos. Ele afirma que a vacina causará impacto significativo na redução de casos a partir de 2027 e aponta a possibilidade de um controle da dengue nas próximas décadas, por meio de ampla vacinação, como afirmou na matéria do JN.

Mais comedido e racional mostrou-se Jarbas Barbosa, diretor da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que acompanhou o anúncio da aprovação da vacina, em São Paulo. “Com o conhecimento que temos hoje, nós sabemos que a vacina é muito eficaz para reduzir as hospitalizações e os casos graves. Mas, provavelmente, a dengue não será erradicada”, lembrando a grande subnotificação, de 5 a 10 casos não registrados a cada caso notificado, em matéria n’O Globo.

Entre velhos e novos enquadramentos, a dengue segue como uma das pautas mais centrais da mídia e dos estudos em comunicação e saúde. Cabe a nós saudar a força da ciência brasileira sem o ufanismo que edulcora casos isolados e se esquece de criticar o constante desinvestimento em outras pesquisas. E também valorizar a vigilância popular em saúde, na qual prevenção se faz com a valorização dos territórios, sem disciplinar populações vulnerabilizadas, mas sim dotando-as de ferramentas e conhecimento para a produção de comunicação e de conhecimento.

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