Ultraprocessados: estaríamos “demonizando” a indústria?

Patricia Jaime, do Nupens/USP, núcleo que mudou paradigmas da alimentação, defende que é preciso que fique claro que alimentos feitos por formulações industriais são perigosos à saúde. Há quem condene que a frutose é a verdadeira vilã – contrariando sólidas evidências científicas

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Em sua coluna para a Folha, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel condena a “demonização dos ‘alimentos industrializados’” – que a própria autora coloca entre aspas –, “como se toda carne ou vegetal fosse salpicado com um pó de pirlimpimpim do mal ao adentrar uma fábrica de processamento”. Para ela, o que torna esses alimentos prejudiciais à saúde não é o fato de serem ultraprocessados na indústria, mas, sim, a frutose.

Ao ser questionada por leitores, Suzana voltou, em mais um texto de sua coluna, a responsabilizar este tipo de açúcar por malefícios na saúde humana, como a obesidade e a diabetes. Ainda, na tentativa de provar que, assim como os ultraprocessados, tudo sem seu lado positivo, Houzel afirma que, apesar de fazer mal à saúde, a frutose pode ser a salvação “quando a alternativa é a morte”… 

Adentrando o debate, a nutricionista e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, Patricia Jaime, escreve, em artigo de opinião para o Nexo, que: “Tratar ultraprocessados como se fossem simplesmente ‘alimentos industrializados’ obscurece o problema real e compromete a busca por soluções”. Explicando que a distinção entre os dois permite diferenciar alimentos que contribuem para uma dieta saudável de produtos que causam doenças crônicas, Patricia ressalta que, de fato, os alimentos industrializados não são necessariamente prejudiciais à saúde; mas também é certo que os ultraprocessados fazem parte deste grupo.

A classificação “Nova”, desenvolvida por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP, do qual Jaime também faz parte, define produtos ultraprocessados como “formulações industriais feitas à base de substância extraídas ou derivadas de alimentos e de aditivos com função cosmética”. Nas palavras da nutricionista, “são criados e promovidas para substituir alimentos e suas preparações culinárias e para maximizar conveniência, prazer e lucro, não a nutrição”. 

Já em 2024, estudo inédito da Fiocruz revelou que 1 em cada 10 mortes no Brasil podem ser atribuídas ao consumo de ultraprocessados. Outra pesquisa, liderada por pesquisadores da USP e da Fiocruz, indica que aumento de 10% dos alimentos ultraprocessados na dieta eleva risco de morte precoce em 3%. Outros estudos, como aponta Patricia Jaime, mostram como esses produtos desestruturam práticas culinárias e padrões alimentares historicamente construídos, impondo um modelo de alimentação fragmentada e automatizada.

A partir de tudo isso, a professora da USP afirma que “o problema sanitário não está na modificação do alimento pela indústria, mas na lógica produtiva e comercial dos ultraprocessados”. Ainda assim, uma narrativa que só interessa à indústria alimentícia distorce conceitos e oferece explicações simplistas para problemas complexos – como, por exemplo, a tentativa de responsabilizar a frutose, um único nutriente, pela obesidade. 

Como ressalta Patricia, “a literatura científica é clara: o problema não está na frutose das frutas, mas no consumo excessivo de açúcares livres que resulta do consumo elevado de ultraprocessados”. Nesse sentido, o debate não diz respeito a “demonizar os alimentos industrializados”, como tenta emplacar Houzel, mas “reconhecer que existe um modelo agroalimentar dominante baseado na produção e comercialização em massa de ultraprocessados, cujos impactos sanitários, ambientais e sociais são hoje inquestionáveis”, bem lembra Jaime.

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