Trump mira nos medicamentos – e ameaça o mundo

Presidente dos EUA promete taxar indústria internacional e sacudir mercado que movimenta US$1,7 tri, fortemente concentrado em seu país. Para evitar que países do Sul Global tenham ainda menos acesso a remédios, OMS precisa se posicionar com clareza

Na divisão do mercado internacional de medicamentos, países da África, América Latina e Ásia (fora China e Japão) ficam à margem. Foto: Sunday Alamba
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Na última semana do mês de março de 2025 a imprensa internacional divulga a informação de que o presidente dos EUA, Donald Trump, vai taxar produtos farmacêuticos que entram no país. Movido por incontida ganância de poder e dinheiro, agora ele está de olho também no crescente mercado global de medicamentos, que deve movimentar em 2026 cerca de US$ 1,7 trilhões, de acordo com projeções do IQVIA Institute, citado pelo Ipea1.

O governo americano mira inicialmente na China e Irlanda, como os maiores fornecedores de medicamentos aos americanos, e nada indica que ficará nestes limites. Vale acrescentar o quanto é temerária uma intervenção desprogramada, em um setor que lida com uma complexa cadeia produtiva, extremamente interconectada no fornecimento de insumos, IFAs (Ingrediente Farmacêutico Ativo) e formas de dosagem finais, que são produzidas em diferentes países, em fluxo produtivo globalmente referenciado.

O momento pede uma urgente discussão sobre a necessária soberania do Brasil na produção, distribuição e administração de medicamentos. Atualmente no cenário global há uma disponibilização absolutamente desigual e iníqua, como mostram os dados divulgados pelo IPEA2, que evidenciam uma grande concentração nos Estados Unidos e no Canadá, mesmo em comparação com a Europa, cuja população é maior.

Em paralelo a isso, existe uma parcela enorme da população mundial praticamente excluída desse mercado, que se concentra na África, Ásia (à exceção de China e Japão) e América Latina. Na divisão do mercado farmacêutico mundial observa-se que “as vendas em 2021 movimentaram em percentuais: América do Norte (Estados Unidos e Canadá) 49,1% do mercado global; a Europa 23,4%; China 9,4 %; Japão 6,1% América Latina 3,7%, e África, Ásia e Austrália 8,4%”3. Diante da atualidade do tema, é oportuno fazer algumas reflexões que atualizem uma possibilidade de ação neste campo.

A começar pela urgente garantia de uma distribuição equitativa de medicamentos pelos diversos continentes, impedindo a iniquidade atual, que conheceu contornos dramáticos na pandemia de covid-19. De acordo com o Painel Global para Equidade em Vacinas, 79,86% de pessoas que vivem em países de alta renda foram vacinadas com pelo menos uma dose até 29 de novembro de 2023, contra 32,82% de pessoas que vivem em países de renda baixa. E assim acontece também no acesso a medicamentos.

Outro desafio importante diz respeito a uma regulação mais eficaz dos produtos disponíveis. Segundo dados divulgados no 12º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva em 2018, à época, 30,5 milhões de dólares era o gasto estimado com medicamento de baixa qualidade ou falsificados em todo o mundo. “Cerca de 75% dos medicamentos aprovados nos últimos 15 a 20 anos não tinham evidência de benefícios substantivos ao paciente. A EMA (sigla em inglês para a Agência Reguladora Europeia) aprovou 46 drogas com 68 indicações entre 2009 e 2013. Estudos posteriores mostraram que 57% das indicações não demonstraram benefícios ou qualidade de sobrevida aos pacientes”.

Há no âmbito da OMS uma severa preocupação em relação ao uso irracional de medicamentos. Exemplos de uso irracional de medicamentos incluem: uso de muitos medicamentos por paciente (“polifarmácia”); uso inadequado de antimicrobianos, muitas vezes em dosagem inadequada, para infecções não-bacterianas; excesso de uso de injeções quando formulações orais seriam o mais apropriado; falta de prescrição de acordo com as diretrizes clínicas; automedicação inapropriada, muitas vezes de medicamentos prescritos; não aderência aos regimes de dosagem.

De acordo com o Conselho Federal de Farmácia, 77% das pessoas usam medicamento sem prescrição médica, sendo que quase metade (47%) se automedica pelo menos uma vez por mês e um quarto (25%), todo dia ou pelo menos uma vez por semana. Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no boletim de 2021, das 216.406 notificações sobre produtos e serviços relacionados à vigilância sanitária, 80,67% estavam relacionadas a intoxicação por medicamentos.

Não sabemos que efeitos podem ter no Brasil a prometida investida de Trump sobre a política de medicamentos, que começa pela taxação daqueles que são importados pelos EUA. De qualquer forma haverá efeitos para a política geral de medicamentos. Seria oportuno intensificar esta discussão no âmbito da governança global. Iniciativa que poderia vir da Organização Mundial de Saúde, que contaria certamente com a adesão dos BRICS, grupo de países emergentes que representam cerca de 46,2% da população mundial, 35,7% do PIB global em 2023, maior do que o G7. Seria uma demonstração de altivez e protagonismo, frente aos ataques proferidos pelo governo dos EUA à OMS.

Este seria um momento de afirmação de uma política de saúde que se importa com todas as vidas, sejam elas habitantes de que continente ou país for, sua etnia, raça, religião, gênero, condição social, ou qualquer outra característica. A ideia geral de que somos uma comunidade humana global, que se fortalece nos laços de solidariedade, deveria presidir um esforço mundial nesta direção.

Niterói, 2 de abril de 2025.


Referências:

1 Sérgio R. R. de Queiroz. O MERCADO DE MEDICAMENTOS NO BRASIL E NO MUNDO. In: De Negri, Fernanda et al, Tecnologias e preços no mercado de medicamentos. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2024.

2 idem – Ipea 2024.

3 idem, ibidem, Ipea 2024, pág. 17.

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