As três dimensões da judicialização da saúde
Alto custo de medicamentos é entrave para sua incorporação no SUS, e a Justiça tem sido chamada a decidir questões que deveriam estar a cargo do Conitec, ligado ao Ministério da Saúde. Mas a questão – que é política – não será resolvida com meros ajustes técnicos…
Publicado 20/10/2025 às 10:18 - Atualizado 20/10/2025 às 11:00

A saúde suplementar se sofistica na análise da política de avaliação e incorporação de tecnologias em saúde (ATS). Em um blog que defende os interesses do sistema privado (Natalia Cuminale – O Futuro da Saúde), o ex-ministro da Saúde Nelson Teich publicou um artigo intitulado “Medicina Baseada em Evidências (MBE) é a solução para a avaliação e incorporação de tecnologias e medicamentos, e para trazer mais equidade e eficiência para o Sistema de Saúde?” .
O texto de Teich, bem informado no que se refere às metodologias atuais de ATS, faz uma crítica à medicina baseada em evidências e mesmo aos critérios de custo-efetividade e custo efetividade Incremental (ICER), utilizados pela CONITEC e por todos os órgãos de ATS pelo mundo afora. Também corretamente, pondera que os sistemas de saúde não têm condições de competir com a dinâmica tecnológica da Big Pharma. E o que propõe para colocar no lugar? Novas metodologias de ATS?
Não, propõe a criação de uma “instituição independente, com visão de Estado”, que ele sugere se chame “Instituto de Inteligência” ou “Agência Única” de ATS. É um projeto que atende aos interesses da saúde empresarial privada, que passou a se preocupar com a judicialização quando ela bateu firme na sua porta. Ora, a saúde suplementar é um fato com o qual o nosso sistema de saúde tem que conviver, mas vale perguntar se um casamento no campo da ATS com comunhão universal de bens dela com o SUS, como parece ser seu desejo, será benéfica para o nosso sistema público. Penso que não, a começar pelo pilar conceitual distinto que rege os dois sistemas – aqui a saúde como direito e lá a saúde como valor comercializável.
A judicialização na saúde tornou-se epidêmica a partir de 2005 (e a partir de 2009 na saúde suplementar), e desde então não para de crescer. A despeito de alguns avanços no enfrentamento desse problema observados nos últimos 15 anos, as ações judiciais atingem hoje a casa das centenas de milhares. A maioria delas está relacionada a medicamentos de alto custo, tanto em número quanto, principalmente, no valor financeiro envolvido. As estimativas disponíveis apontam que cerca de 40% dos gastos dos gastos do SUS com medicamentos nas três esferas de governo respondem a ações judiciais. Sobre o tema da incorporação tecnológica em saúde, a revista Ciência e Saúde Coletiva publicou, em 2014, um texto de minha autoria que, creio, permanece atual na maioria das ideias que lá estãoi.
Eu entendo que é necessária uma ação mais efetiva para enfrentar a judicialização expandida na saúde comandada pela dinâmica tecnológica da Big Pharma, uma notória produtora de iniquidades. No meu ponto de vista ela depende de três dimensões que comento a seguir.
A primeira está na visão que a justiça brasileira tem a esse respeito do problema. Como veremos à frente, a judicialização da saúde não é um tema exclusivamente brasileiro e o STF entrou nele em 2009. Depois de uma série de audiências públicas, o então relator da questão, ministro Gilmar Mendes, afirmou em seu relatório: “Obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação e prestação de saúde existente geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria ao comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento médico da parcela da população mais necessitada”.
Mas ao mesmo tempo, há o reconhecimento da possibilidade “de o Poder Judiciário, ou de a própria Administração, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso”. A partir desse relatório, em todas as outras vezes em que o problema chegou ao STF, a adversativa esteve presente. Reconhece a impossibilidade do SUS fornecer tudo o que é demandado, mas em certos casos…
A judicialização existe em outros países. No Reino Unido, ela foi estudada pelo pesquisador brasileiro Daniel Wangii que mostrou com clareza que o sistema judiciário britânico tem uma postura claramente distinta da do nosso STF, no sentido de atuar de modo bem mais assertivo na proteção ao Serviço Nacional de Saúde, público como sabemos.
A segunda dimensão diz respeito à política de propriedade intelectual brasileira (PI) e de seu órgão executor, o Instituto de Propriedade Industrial (INPI), que há muito vive encarcerado entre o negligenciamento governamental de que é vítima e o colegiado que formula a política – o Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI) –, que conta com a participação de 13 ministérios e (apenas voz) de mais de uma dúzia de entes privados. O problema está em que os representantes ministeriais habitualmente são servidores de segundo e terceiro escalões, sem capacidade decisória e que a PI relacionada à saúde é apenas um dentre muitos campos envolvidos nos debates embora talvez seja a que apresente a maior intensidade de litigância jurídica.
Recentemente, aqui no Outra Saúde, foi noticiada uma decisão da Suprema Corte da Índia que deu ganho de causa a uma fabricante de genéricos sobre a suíça Roche relativa a um medicamento para tratar Atrofia Muscular Espinhal (Evrysdi – risdiplan). O argumento que deu ganho de causa à empresa indiana foi a falta de atividade inventiva na patente da Roche. Notícias como esta não são incomuns na Índia pois, por lá, tanto a justiça quanto o órgão regulador da propriedade intelectual incluem entre seus argumentos a ampliação do acesso aos medicamentos e a política industrial do país. Entre nós, essa postura é considerada um anátema.
A terceira dimensão diz respeito à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – CONITEC que, sem dúvida, fez avançar em muito o processo de incorporação de tecnologias no sistema público. Entretanto, a despeito de todos os esforços, restam ainda conflitos de interesse em sua organização e operação. Estes dizem respeito à excessiva intervenção de representantes de indústrias, mormente multinacionais, no processo de incorporação. No meu ponto de vista, a CONITEC deve ser preservada e aperfeiçoada onde couber. Não extinta e fundida com o setor privado em uma “agência única”.
Portanto, diferentemente do que sugere o ex-ministro, o aperfeiçoamento técnico do processo de avaliação e incorporação de tecnologias – novas metodologias que superem eventuais fragilidades das existentes hoje em dia – muito embora sejam desejáveis, não estão no centro das dificuldades que temos nesse terreno. De resto, os organismos que tratam desse assunto em outros países continuam a utilizar essas ferramentas que o ex-ministro considera insuficientes, ainda que aperfeiçoamentos técnicos existam e já têm sido explorados pela CONITEC. Por exemplo, decisões que envolvem incorporações condicionadas ao impacto clínico sobre os pacientes que venham a utilizá-las.
Eu não acredito que o casamento do SUS e da saúde suplementar nesse tema seja o ponto focal para a superação das dificuldades que temos. Compreendo as eventuais dificuldades atuais do setor privado com a judicialização, mas acho que a superação dessa epidemia não depende prioritariamente de ajustes técnicos. Há ajustes políticos bem mais importantes, que dizem respeito tanto à ampliação do acesso da população a produtos de saúde quanto à chegada de aspectos de política industrial no processo de avaliação e incorporação de tecnologias.
i Guimarães, R. – Incorporação Tecnológica no SUS: O Problema e seus Desafios. Ciência & Saúde Coletiva, 19(12):4899-4908, 2014. https://www.scielo.br/j/csc/a/scNSJgkt63x3RQ5TQMvLrfn/?lang=pt&format=pdf
ii Wang, DWL – Can Litigation Promote Fairness in Healthcare? The Judicial Review of Rationing Decisions in Brazil and England. A thesis submitted to the Department of Law of the London School of Economics for the degree of Doctor of Philosophy, London, August, 2013. http://etheses.lse.ac.uk/739/
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