Tratado das Pandemias: ameaçado pela Era Trump?

Em cinco meses, terá fim o prazo para a apresentação do texto do tratado – e a extrema-direita, de volta ao governo nos EUA, pretende embaralhar o jogo. É aos países do Sul que recai a tarefa de levar adiante o tratado, decisivo para a Saúde Global

Foto: Fabrice Coffrini
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Por Jane Galvão, para a coluna Saúde não é mercadoria

Título original: Os desafios para adotar o Tratado das Pandemias na era de Donald Trump

Esse breve texto aborda o Tratado das Pandemias no contexto da reeleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos. De acordo com o cronograma, revisto em 2024, o Tratado estaria nos meses finais de negociações.

O Tratado foi inicialmente previsto para ser finalizado até março de 2024, para ser apresentado, em maio de 2024, na 77a Assembleia Mundial da Saúde (AMS), mas como o documento não foi  concluído, a decisão da Assembleia foi prorrogar o prazo da entrega até a 78a AMS, em 2025 (19-27 de maio). A AMS é o órgão de decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS) e acontece uma vez por ano, em Genebra. Os participantes incluem delegações dos 194 Estados-Membros da OMS, agências das Organizações das Nações Unidas (ONU), organizações da sociedade civil, especialistas em saúde pública, acadêmicos, fundações, doadores e o setor privado.

As negociações para redigir e adotar o Tratado das Pandemias

Praticamente quatro anos após o anúncio sobre a importância de um Tratado das Pandemias  — que começou a ser discutido nos primeiros meses de 2021, ainda sob o impacto da pandemia de COVID-19 — e três anos desde que foi criado, em dezembro de 2021, uma instância para redigir e negociar o Tratado, chamado Órgão de Negociação Intergovernamental (Intergovernamental Negotiating Body ou INB, na sigla em inglês) há dúvidas se o documento será concluído a tempo para ser apresentado na 78ª AMS. 

O trabalho do INB é descrito como para redigir e negociar uma convenção, acordo ou outro instrumento internacional, sob a Constituição da OMS, para reforçar a prevenção, preparação e resposta à pandemias. O INB é formado por seis oficiais, representando as seis regiões da OMS e, após algumas mudanças, a composição do INB, em janeiro de 2025, inclui: Precious Matsoso, da África do Sul, e a Embaixadora Anne-Claire Amprou, da França, como Co-Presidentes, e o Embaixador Tovar da Silva Nunes, do Brasil; o Embaixador Amr Ramadan, do Egito; Dr. Viroj Tangcharoensathien da Tailândia; e Fleur Davies, da Austrália, como vice-presidentes.

O engajamento com as partes interessadas no desenvolvimento do Tratado — visando garantir uma participação inclusiva nos procedimentos do INB — é descrito como incluindo outros órgãos do sistema da ONU e uma ampla gama de atores não-Estatais (no-State actors) em relações oficiais com a OMS. Além disso, existe a possibilidade de participação por meio de audiências públicas com as partes interessadas que inclui: organizações internacionais, sociedade civil, setor privado, organizações filantrópicas, instituições científicas, médicas, de políticas públicas e acadêmicas e outras entidades com conhecimento, experiência e/ou especialização relevantes. A participação do Secretariado da OMS — formado por staff da Organização — é descrita como para apoiar os países nas negociações sendo que o Secretariado não determina o conteúdo das discussões. 

As negociações do Tratado estão marcadas por aspectos, que podem ser vistos como positivos e que destacam o trabalho do INB, mas também por críticas que vão desde a falta de participação da sociedade civil nas negociações, e análises desfavoráveis à determinados artigos do documento que apontam para a falta de discussões mais substanciais sobre questões vistas como fundamentais. Outro ponto é a desinformação e teorias da conspiração que visam a OMS e o trabalho do INB erroneamente implicando, por exemplo, a perda de soberania do país que decida assinar o Tratado. 

O INB tinha realizado 12 reuniões até o momento que esse artigo foi finalizado (janeiro 2025). A 13ª reunião (a primeira reunião de 2025) está programada para 17-21 de fevereiro. A última reunião de  2024 aconteceu de 4-15 de novembro e continuou de 2-6 de dezembro. Nessa reunião, um novo rascunho do Tratado foi apresentado e análises apontaram para alguns dos desafios que podem comprometer a finalização e adoção do documento, como por exemplo, a reeleição de Trump — e as possíveis repercussões na implementação do Tratado — e artigos do rascunho que precisam de mais discussão, como equidade, transferência de tecnologia, propriedade intelectual e acesso a patógenos e que podem adiar a conclusão do documento.

Mudanças no cenário dos EUA atingem políticas de saúde global

Aos pontos acima mencionados somam-se — sobretudo após a reeleição de Trump, em 2024 — as incertezas e o impacto de uma segunda administração Trump na saúde global

Durante a campanha presidencial Trump anunciou várias medidas que seriam implementadas, na área da saúde, caso fosse reeleito, como a retirada dos Estados Unidos da OMS, e a saída dos Estados Unidos das negociações do Tratado das Pandemias. É importante mencionar que os argumentos de Trump para justificar tais decisões estão baseados em informações que não são corretas, tais como, a perda da soberania do país para fazer decisões sobre saúde, caso o país assine o Tratado, e que a OMS é controlada pela China. Infelizmente, mesmo quando informações corretas são publicadas (e esse é um problema na era da desinformação que estamos vivendo), não parecem afetar as errôneas concepções sobre a OMS e o Tratado das Pandemias. Quanto a este ponto, como comentamos abaixo, é interessante lembrar a experiência brasileira com desinformação. 

O caso do Brasil sugere que confrontar desinformação com informações corretas pode não ser suficiente, especialmente quando a desinformação surge de dentro da máquina do Estado. Usando o Brasil como exemplo nos ajuda a refletir sobre o desafio que é o enfrentamento da desinformação e como a desinformação — como apresentado em recente relatório do World Economic Forum — representa um grande risco para a coesão social e a governança, corroendo a confiança e exacerbando as divisões internas e entre as nações. 

Quando os casos de COVID-19 começaram a ser notificados no Brasil, o país já enfrentava desinformação em larga escala na arena política. Em 2019, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) foi instalada para investigar a criação de perfis falsos e ataques cibernéticos em redes sociais com o objetivo de influenciar as eleições. Em 2021, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi criada para investigar as ações do governo federal durante a pandemia de COVID-19 (CPI da Pandemia). Os trabalhos das duas Comissões se cruzaram quando cooperaram na investigação de uma rede dedicada à disseminação de notícias falsas sobre COVID-19. O relatório final da CPI da Pandemia recomendou o indiciamento de políticos por crimes, incluindo crimes contra a humanidade; entre os indiciados estava o então presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). O relatório argumentou que havia uma estratégia organizada, por parte do governo federal, para disseminar teorias da conspiração sobre o COVID-19. 

Com relação à Trump, em 2020, na sua primeira administração (2017-2021), o presidente norte-americano, enviou uma carta ao Diretor-Geral da OMS anunciando a intenção dos Estados Unidos em sair da OMS e que o apoio financeiro para a Organização seria suspenso. Em julho de 2020, os Estados Unidos notificaram o Secretário-Geral da ONU que sairiam da OMS. Tal decisão — que estava baseada sobretudo na visão da administração Trump da influência da China nas ações da OMS em resposta à pandemia de COVID-19 — foi seguida de um intenso debate, que ressaltou o impacto negativo que tais medidas teriam nos Estados Unidos e para a saúde global. 

Como destacado em 2020, a OMS, que foi estabelecida em abril de 1948, não possui um mecanismo formal para a saída de um Estado-membro. No caso dos Estados Unidos, uma resolução aprovada pelo Congresso e Senado norte-americano, em junho de 1948 — e adotada por unanimidade pela na primeira AMS, em julho de 1948 — assegura que, caso os Estados Unidos decidam sair da OMS devem avisar com um ano de antecedência e pagar suas obrigações financeiras à Organização para o ano fiscal. 

Com a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais de 2020, as relações dos Estados Unidos com a OMS foram restabelecidas, como atesta a carta enviada para o Secretário-Geral das Nações Unidas, em janeiro de 2021. Com essa decisão também foi restabelecido o financiamento para a OMS, como comunicado, em janeiro de 2021, na 148ª Reunião do Conselho Executivo da OMS —o Conselho Executivo é composto por 34 membros (designados por um Estado-Membro), eleitos para mandatos de três anos; dentre as funções do Conselho está a preparação da agenda da AMS.

Em dezembro de 2024, o Diretor-Geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebryesus, buscou manter uma visão otimista ao comentar as nomeações para cargos na área da saúde na segunda administração Trump. 

Algumas das nomeações são vistas como desastrosas — com implicações que vão além das políticas de saúde pública nos Estados Unidos — o que motivou 77 cientistas agraciados com o prêmio Nobel a se manifestarem contra um dos nomeados, Robert F. Kennedy Jr. Principalmente, por suas posições contra vacinas. RFK Jr., como é conhecido, foi indicado (mas ainda não foi confirmado pelo Senado) para o cargo de secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (Department of Health and Human Services, em inglês) que inclui várias agências importantes como o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), o Food and Drug Administration (FDA), e o National Institutes of Health (NIH). 

Ordens executivas dão o tom geral da ofensiva

Trump, no mesmo dia que assumiu a presidência (20 de janeiro de 2025), como esperado, adotou várias medidas — chamada ordem executiva (executive order) — que vão desde imigração; revogação de políticas de diversidade, inclusão, e discriminação; reforço da pena capital; reconhecimento de somente dois sexos (feminino e masculino); retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris (pacto contra o aquecimento global) e da OMS. Isso sem contar as 78 ordens executivas que assinou revogando outras ações do ex-presidente, Joe Biden.  

Outras ações que estão sendo tomadas pela administração Trump também afetam diferentes dimensões relacionadas à saúde, como por exemplo, remover termos como gay, lésbica, transgênero, bissexual e LGBTQ dos sites da Casa Branca e de agências federais, e a suspensão (até 1º de fevereiro) das comunicações públicas de agências federais de saúde, como o CDC e o FDA, e, em alguma medida, também inclui a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (United States Agency for International Development/USAID). 

Uma ordem executiva que vai ter um profundo impacto nas iniciativas que visam fortalecer a arquitetura de saúde global é intitulada Retirando os Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (Withdrawing the United States from the World Health Organization). Os Estados Unidos têm sido um dos mais importantes parceiros da OMS e também o maior doador; os Estados Unidos contribuíram 1,284 bilhão de dólares durante o biênio 2022-2023. O texto da ordem executiva também inclui a saída dos Estados Unidos das negociações do Tratado das Pandemias.

Em um comunicado, a OMS lamentou a decisão do presidente norte-americano e que espera engajar em um diálogo construtivo para manter a parceria com os Estados Unidos. Outras agências da ONU também comentaram o impacto negativo de tal medida. Como reportado, a ONU já recebeu a carta comunicando a decisão dos Estados Unidos de sair da OMS. Com essa comunicação oficial os Estados Unidos deverão sair da OMS em janeiro de 2026. 

Análises sobre o que representa a saída dos Estados Unidos da OMS na segunda administração Trump são semelhantes às análises de 2020, e destacam o erro que tal atitude significa e a importância da participação dos Estados Unidos nas iniciativas de saúde global, se bem que há análises comentando que a saída dos Estados Unidos da OMS também pode oferecer oportunidade para profundar discussões e ser mais ousado em ações, como no Tratado das Pandemias. Alguns comentários expressam a importância do diálogo e que os Estados Unidos deveriam reconsiderar a decisão, e os esforços necessários para afirmar o multilateralismo e cooperações internacionais; outros expressam a possibilidade de ações judiciais já que uma ordem executiva como a assinada por Trump deveria ter a aprovação do Congresso.   

Ainda é cedo para saber se outros países vão aumentar as suas contribuições para compensar a perda da contribuição dos Estados Unidos. Alguns pontos ainda precisam ser esclarecidos, como por exemplo, se os Estados Unidos vão cumprir com a obrigação de pagar o que devem já que a ordem executiva menciona que é para dar uma pausa para a transferência futura de quaisquer fundos, apoio ou recursos do governo dos Estados Unidos para a OMS; e se a saída dos Estados Unidos da OMS também afetaria a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Escritório Regional da OMS para as Américas com sede em Washington D.C.

Em dezembro de 2024, o Diretor-Geral da OMS comentou sobre a reeleição de Trump: Acredito que os líderes dos Estados Unidos entendem que os Estados Unidos não podem estar seguros a menos que o resto do mundo esteja seguro

Para a OMS, a segurança da saúde pública global é definida “como as atividades necessárias, tanto proativas quanto reativas, para minimizar o perigo e o impacto de eventos agudos de saúde pública que colocam em risco a saúde das pessoas em regiões geográficas e fronteiras internacionais”. Com as medidas até o momento anunciadas pelo Governo norte-americano a indicação é que, para garantir a segurança do país a avaliação da administração Trump é que os Estados Unidos não precisam fazer parte de organizações multilaterais, como a OMS, ou tratados internacionais, como o Tratado das Pandemias. A implementação de tais medidas tem o potencial de causar sérias consequências para a saúde pública nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que enfraquecem a liderança do país e também das agências que têm por missão promover a saúde coletiva e individual.

Nas próximas semanas e meses vai ser possível avaliar como as políticas de saúde adotadas pela administração Trump vão impactar não somente a OMS e as negociações sobre o Tratado das Pandemias, mas também outras iniciativas na área de saúde. Por exemplo, os Estados Unidos são os maiores doadores para o Global Fund to Fight AIDS, Tuberculosis and Malaria (Fundo Global), e a Aliança Global para Vacinas e Imunização, conhecida pela sigla GAVI (Global Alliance for Vaccines and Immunisation). A contribuição dos Estados Unidos para o Fundo Global, para o período 2023-2025, é de 6 bilhões de dólares; e foi de 300 milhões de dólares, para GAVI, em 2024. A captação de recursos para essas e outras organizações vai enfrentar sérias dificuldades afetando a capacidade de tais organizações em continuar com o nível de atividades necessárias para servirem às populações com as quais trabalham.    

Impacto transcende a Saúde Global

Outras medidas já foram tomadas pela administração Trump que vão impactar não somente a área da saúde mas da assistência humanitária de uma maneira geral — ver, por exemplo, a ordem executiva que ordena uma parada de 90 dias na assistência internacional para avaliação de eficiências programáticas e consistência com a política externa dos Estados Unidos. 

É importante destacar, que para algumas áreas prioritárias mais de uma ordem executiva foi emitida abordando o tema — como por exemplo para imigração, e os programas em diversidade, inclusão e igualdade — em uma espécie de reforço para fechar qualquer possibilidade de evadir o que a administração Trump está buscando abolir. Seguramente mais ordens executivas vão ser assinadas por Trump. Para mais informação ver o link: Presidential Actions – The White House).

Seguramente mais ordens executivas vão ser adotadas visando outras agências da ONU, como aconteceu na primeira administração Trump com o Fundo de População das Nações Unidas (United Nations Population Fund/UNFPA), e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization/UNESCO). 

Em 2017, os Estados Unidos saíram da UNESCO e pararam com a contribuição financeira. Também em 2017, cessaram com a contribuição financeira para UNFPA, reinstalando o que é conhecido como “A Política da Cidade do México”. Quando Biden assumiu a presidência o apoio financeiro para UNFPA foi restabelecido. Os Estados Unidos também voltaram a integrar a UNESCO e restabeleceram a contribuição financeira. Mas, materializando medidas que já estavam sendo antecipadas — que vão ter um profundo impacto tanto em agências da ONU quanto em projetos de organizações da sociedade civil que recebem apoio do governo norte-americano —, a administração Trump, em 24 de janeiro de 2025, reinstalou A Política da Cidade do México e várias entidades já começaram a manifestar a respeito.       

Um ponto para destacar sobre as ordens executivas publicadas até o momento — mesmo as que parecem dirigidas para políticas internas — diz respeito ao impacto que vai ser sentido não somente nos Estados Unidos. Como por exemplo, via o tipo de linguagem e conceitos que passam a ser ‘normalizados’, como presente na ordem executiva sobre gênero que tem o título “Defendendo as mulheres do extremismo da ideologia de gênero e restaurando a verdade biológica para o Governo Federal”. Tal ordem executiva que, aparentemente, diz respeito a política interna norte-americana, aponta para iniciativas que vão ser criadas ou revividas pelos Estados Unidos na sua política externa. Aqui, um dos melhores exemplos é a Declaração de Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família (Geneva Consensus Declaration on Promoting Women’s Health and Strengthening the Family), iniciativa promovida durante a primeira administração Trump. Na administração Biden os Estados Unidos deixaram de ser signatários da Declaração, mas, como era esperado, via o Departamento de Estado, e comunicados enviados para as missões diplomáticas, foi anunciado que os Estados Unidos voltariam a ser um dos signatários da Declaração. O Brasil assinou a Declaração no governo Bolsonaro, mas retirou-se quando Lula foi reeleito. Mas, mais do que tudo, essa ordem executiva, como destacou Human Rights Watch, visa desmantelar proteções cruciais para pessoas transgênero e nega a validade da própria identidade de gênero.  

Na área de assistência internacional, além das ordens executivas mais acima mencionadas, duas outras vão ter um profundo impacto, e aqui destaco: a ordem executiva que ordena uma parada de 90 dias na assistência internacional para avaliação de eficiências programáticas e consistência com a política externa dos Estados Unidos; e a ordem que diz respeito aos programas de diversidade, inclusão e igualdade, que determina o fechamento de tais programas em órgãos do governo e instituições que recebem fundos federais, incluindo universidades privadas. Tal medida, por exemplo, inclui a USAID. Com relação à USAID, foi noticiado que, via uma nova ordem executiva que deve ser publicada nos próximos dias, a organização vai, com poucas exceções, praticamente parar as atividades, intensificando a ordem executiva que decretou a pausa em programas de ajuda por 90 dias. Tais ações não têm precedente em escala e alcance.

Projetos de aids estão em risco

De diferentes maneiras essas ordens executivas vão afetar — como está sendo reportado — projetos em HIV/AIDS que contam com apoio do Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Alívio da AIDS (U.S. President’s Emergency Plan for AIDS Relief/PEPFAR). Por exemplo, um comunicado de imprensa, de dezembro de 2024, sobre um esforço coordenado entre o Fundo Global e PEPFAR para acesso a um novo medicamento para pessoas com HIV (lenacapavir) foi removido do site do PEPFAR e agora aparece como um documento arquivado.

PEPFAR foi criado em 2003, pelo então presidente George W. Bush, tendo desembolsado, até 2023, mais de 100 bilhões de dólares em programas de AIDS, sobretudo na África, sendo um dos maiores programas de AIDS financiado por um país. Nos últimos anos o partido Republicano intensificou suas críticas à PEPFAR, o que pode colocar o programa em perigo pois o orçamento precisa ser aprovado pelo Congresso

Após a reeleição de Trump, há o risco de corte de financiamento para PEPFAR, e esse é um dos elementos — como discutido em recente artigo de Beatriz Grinsztejn (presidente da Internacional AIDS Society/IAS, e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz) e Birgit Poniatowski (diretora executiva da IAS) — que pode levar, como caracterizou as autoras, a uma volta monumental do HIV.  A Diretora Executiva do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS/UNAIDS) reforçou o argumento de Grinsztejn e Poniatowski alertando sobre as consequências para as pessoas com HIV que podem morrer se Trump cortar o financiamento de programas como PEPFAR e o Fundo Global. A IAS também se posicionou contra a parada na assistência internacional: “Esta é uma questão de vida ou morte”, disse a presidente da IAS, já que PEPFAR fornece medicamentos para AIDS para mais de 20 milhões de pessoas.

Em tempos de trevas, apostar na mobilização

A concretização das promessas feitas por Trump durante a campanha presidência, como a saída da OMS e das negociações do Tratado das Pandemias, vai contra recomendações de como preparação para as próximas pandemias deveria acontecer. O aparecimento de novas emergências de saúde — como por exemplo, a gripe aviária e Mpox, isso sem falar das catástrofes relacionadas ao clima e os impactos na saúde — vão testar os limites do que está sendo proposto pela administração Trump. Nesse sentido, abaixo destaco dois acontecimentos, e as ordens executivas que ajudam a contextualizar os desafios que marcam esse início de 2025. Reconheço que outras ordens executivas são importantes, mas aqui destaco as que dizem respeito à retirada dos Estados Unidos da OMS e do Tratado das Pandemias, e a saída do país do Acordo de Paris

O ano de 2025 começou com acontecimentos que parecem mostrar o absurdo das ordens executivas da administração Trump em saúde e meio-ambiente. Um presidente que não acredita em mudança climática sendo empossado enquanto incêndios devastadores aconteciam no estado da Califórnia. A decisão de retirar os Estados Unidos da OMS e do Tratado das Pandemias ironicamente coincidindo com os cinco anos da pandemia de COVID-19 — que motivou os Estados-Membros da OMS a se unirem para escrever e adotar um tratado de pandemias. COVID-19, que até novembro de 2024, tinha registrado mais de 776.8 milhões de casos e mais de sete milhões de mortes, sendo mais de 1 milhão e 200 mil mortes nos Estados Unidos. 

Os dois acontecimentos acima mencionados nos levam a pensar que viver no mundo proposto por Trump é ter que viver sem memória, não registrando o que está acontecendo no momento atual e esquecendo o que foi a sua primeira administração para a saúde e outros áreas, um período marcado pela ignorância — no sentido empregado por Richard Parker, ao comentar que a ignorância tem sido ativamente construída e produzida socialmente dentro de determinados contextos e processos políticos. Talvez, a proposição de Trump é que é possível viver em um estado de “amnesia coletiva” sobre, por exemplo, a pandemia de COVID-19, e outros agravos à saúde que aconteceram, ou foram exacerbados, no seu primeiro mandato — sobretudo pela negação de direitos ou retirada de direitos já adquiridos — e o que pode acontecer no seu segundo mandato.

Nesse cenário, o Brasil ocupa uma posição importante pelas suas parceiras que, mesmo que não sejam perfeitas, podem oferecer a possibilidade de incentivar o diálogo intersecional e intersetorial. Em 2025, alguns eventos relacionados a tais parcerias (destacamos dois) vão acontecer no país. 

O Brasil vai sediar a Cúpula de Chefes de Estado do BRICS, que deve acontecer em julho, no Rio de Janeiro. A composição inicial do BRICS incluía Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, mas nos últimos anos expandiu e agora inclui Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Índia, Indonésia, e Irã. Aqui é importante destacar que Arabia Saudita, Egito, Emirados Árabes, e Indonésia assinaram, em 2020, o Consenso de Genebra. Em 2025, o Brasil assumiu a presidência do BRICS. E, em novembro, o Brasil vai sediar a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (Conferência das Partes), conhecida como COP30, que será realizada no Pará. 

A versão do Tratado das Pandemias apresentada na última reunião do INB de 2024, no Artigo 3 (Princípios e abordagens), inclui equidade e solidariedade: A equidade é definida “como objetivo, princípio e resultado da prevenção, preparação e resposta a pandemias, buscando, nesse contexto, a ausência de diferenças injustas, evitáveis ou remediáveis entre indivíduos, comunidades e países”. E quanto a solidariedade: “Solidariedade com todas as pessoas e países no contexto de emergências sanitárias, inclusão, transparência e responsabilidade para alcançar o interesse comum de um mundo mais equitativo e melhor preparado para prevenir, responder e se recuperar de pandemias, reconhecendo diferentes níveis de capacidades”. 

É difícil imaginar como um mundo cada vez mais marcado por profundas desigualdades, como discutido no recente relatório publicado pela OXFAM, vai responder ao desafio que vai ser a implementação do Tratado das Pandemias. Segundo o relatório, a riqueza dos bilionários cresceu US$ 2 trilhões em 2024, totalizando US$ 5,7 bilhões por dia. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza quase não mudou desde 1990 e está perto de 3,6 bilhões – o equivalente a 44% da população mundial. 

O setor privado teria o potencial (como visto por algumas organizações) de apoiar áreas relevantes para mover a agenda de acesso à saúde e direitos humanos que serão abandonadas pela administração Trump. Mas, com a maioria desses bilionários (alguns citados no relatório da OXFAM) presentes na cerimônia de posse de Trump, expressando apoio para a agenda proposta pela administração Trump — com Elon Musk abertamente apoiando propostas ainda mais radicais — pode ser um desafio envolver, de maneira significante, o setor privado e desenvolver ações para o que a OXFAM denominou, no seu relatório de 2024, Desigualdade S.A.    

Mais do que nunca vai ser importante que países como o Brasil — e não somente as instâncias de governo mas também a sociedade civil — desenvolvam estratégias que promovam a solidariedade, mobilização e parcerias para contrapor políticas tão nocivas para a democracia, a saúde, e os direitos humanos.

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