Transporte sanitário: ir além da doação de veículos
Ele é essencial para a integralidade do cuidado. Por vezes desconfortável e demorado, ainda pode melhorar enquanto política universal. Que tal um programa nacional para a atividade, com coparticipação do financiamento e sistema integrado de informações?
Publicado 30/10/2025 às 07:00 - Atualizado 29/10/2025 às 20:38

Por Luís Fernando Nogueira Tofani, autor convidado
Milhares de brasileiros viajam diariamente horas – às vezes dias – para conseguir atendimento especializado no Sistema Único de Saúde (SUS). Diversas histórias e sagas relacionadas ao Transporte Sanitário foram registradas pelo estudo ‘Cartografia da Atenção Especializada no SUS’, realizado em todo o país pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que revelou uma parte do sistema de saúde que é pouco visibilizada.
Embora regulamentado há décadas como ‘Tratamento Fora do Domicílio (TFD)’, o transporte de pacientes para consultas, exames e cirurgias tem sido operado de forma muito diversa pelos municípios, adequando-se na medida do possível às diferentes realidades do país, o que inclui o uso de ônibus, vans, carros, ambulâncias, barcos e aeronaves.
Trata-se de um ponto crucial para a garantia do acesso à atenção especializada, considerando a concentração de serviços especializados nas capitais e as grandes distâncias. As diferentes modelagens de organização têm sido produzidas localmente, de acordo com os recursos disponíveis, à margem do que poderia ser ou compor uma política de saúde.
Em que pese os esforços dos gestores municipais, a ausência de uma política nacional que garanta o financiamento adequado do Transporte Sanitário, reflete no acesso às consultas e na garantia de transporte adequado, seguro e digno, em tempo oportuno, causando desconfortos e algumas vezes riscos aos usuários.
Na perspectiva da implementação da Política de Atenção Especializada à Saúde (PNAES), a partir de 2023, a temática do Transporte Sanitário emerge como necessidade para a continuidade assistencial em territórios definidos no âmbito das regiões de saúde. Classicamente, o transporte de pacientes é compreendido como um componente logístico nas redes de atenção à saúde. Ou seja, compreendendo-se que na maioria das vezes a integralidade do cuidado não se completa nos municípios, mas a partir de um planejamento regional, há real necessidade de locomoção dos usuários do SUS para serviços de saúde em outras localidades. Assim, regionalização, planejamento assistencial, sistemas de informação, regulação do acesso e transporte devem compor um corpus articulado do sistema.
Na pesquisa, o que observamos foram muitas situações de desassistência, clientelismo e improvisação, onde a população usa de seus saberes próprios construindo seus mapas de cuidado, os profissionais – incluindo agendadores e motoristas – trabalham de forma autônoma e criativa e os gestores municipais investem o que podem e como podem no Transporte Sanitário para garantir o acesso a serviços especializados. Identifica-se um grande vazio de recursos, ofertas e responsabilidades que deixa o usuário muitas vezes à sua própria sorte.
Assim, o investimento em estratégias logísticas, em apoio aos municípios, por parte do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde – para além da doação de veículos – poderia incluir o cofinanciamento e a oferta de sistemas de informação para agendamento e traçado de rotas, além de incentivos para casas de apoio, espaços de convivência e alimentação para pacientes, acompanhantes e motoristas, próximos aos grandes serviços especializados de referência regional. Enfim, a organização de uma logística própria para estes serviços de transporte de usuários no SUS.
Para além da logística
O modelo atual de financiamento, que deveria ser tripartite, frequentemente não é suficiente ou não se diferencia para atender às realidades de cada região, gerando dificuldades de acesso. Ademais, há falta de formação adequada para os profissionais que atuam no transporte eletivo, o que pode comprometer a qualidade e a segurança do serviço. Além disso, o serviço muitas vezes não está devidamente vinculado à regulação e à complexidade das diferentes tipologias, incluindo o aéreo em regiões remotas. Consideradas as fragilidades, o que se observa é uma racionalidade de logística pura e não de cuidado integrado.
Para além de um sistema puramente logístico, o que a cartografia também desvela é um outro lado do Transporte Sanitário, implicado com o cuidado em saúde. As relações de vínculo que se estabelecem entre motoristas e pacientes, seus familiares e acompanhantes, e entre os próprios usuários durante as viagens têm um forte potencial de produção do cuidado. O apoio mútuo nas dificuldades do adoecer, o compartilhamento de informações, os lutos por óbitos, as comemorações de curas e altas, a repartição de alimentos, fazem parte da rotina destes grupos que viajam por horas e quilômetros, algumas vezes diariamente.
O que se observa é que estes espaços atravessados por dor e sofrimento podem se tornar espaços de solidariedade e cuidado. Seria necessário investir e compreender as vans, ônibus, carros e demais veículos não apenas como componentes de um sistema de apoio logístico às redes de atenção, mas também como pontos de atenção à saúde, investindo inclusive nos profissionais que o operam a partir de formação e educação permanente.
Além das diretrizes da Política de Atenção Especializada, outros marcos trazem a temática do transporte à agenda do SUS. Recentemente, a Lei nº 15.233/2025 garantiu às pessoas diagnosticadas com câncer e que estejam em tratamento radioterápico, ou com doença renal crônica que estejam em tratamento dialítico, em serviços sediados em ente federativo diverso de seu domicílio, o Transporte Sanitário adequado e o pagamento de diárias para custear alojamento e alimentação. Também no Programa Agora Tem Especialistas, o transporte é anunciado como um de seus componentes.
Estas normativas ainda carecem de regulamentações por parte do Ministério da Saúde, a serem pactuadas com estados e municípios. O que se espera, é que contemplem o cofinanciamento, a organização logística e uma perspectiva de produção do cuidado em saúde, tão necessária a quem, em situação de adoecimento e fragilidade, demanda acolhimento e apoio.
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