Transformação digital do SUS e o “Paradoxo de Topol”
Novas tecnologias revolucionam a medicina, mas transformam pacientes em dados, submetidos a um modelo exploratório e de vigilância. É hora de pensar a Reforma Sanitária Digital – para democratizar o poder de decisão sobre o rumo dessas tecnologias
Publicado 29/09/2025 às 09:28 - Atualizado 29/09/2025 às 10:56

Palestra proferida na mesa Transformação Digital do SUS, no Seminário SUS 35 Anos, em 19/9/2025
Entre 2015 e 2020, preparava a minha tese de doutorado sobre a relação do antigo e permanente conflito entre o programa da Reforma Sanitária e a biomedicina – a questão do acesso a especialidades, as iniquidades e ilhas tecnológicas, a utilização da dificuldade de acesso e falhas do SUS para a segmentação de oferta pelo mercado e o encantamento, na onda de financeirização, com os modelos de gestão baseada em valor.
Nesse momento, no entanto, a Era Digital chegou de fato à medicina e consequentemente aos serviços de saúde com as tecnologias de Inteligência Artificial (IA). Sob várias perspectivas passamos a observar e conceituar as mudanças sociais decorrentes do desenvolvimento das capacidades computacionais, das redes de banda larga e da concentração de poder tecnológico em grandes corporações que dominam as plataformas e o fluxo de dados. Seja capitalismo de vigilância ou de plataforma, seja o tecnofeudalismo ou colonialismo de dados, falamos da sociedade da transparência ou da sociedade do cansaço. Assim, eu mudei o rumo do meu doutorado, ao entender a importância que essa nova revolução tecnológica na área de saúde fosse liderada pelo pensamento de interesse público, dentro do espírito da saúde coletiva. E passei a defender um programa de Reforma Sanitária Digital (RSD).
E realmente é estimulante assistir ao desenvolvimento da pesquisa e do pensamento na área da saúde digital se disseminando pelas principais universidades públicas brasileiras, com uma agenda quase diária de eventos, debates, seminários, cursos e, recentemente, as especializações em Saúde Digital.
Foi de fato fundamental a criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital (Seidigi) do Ministério da Saúde, em 2023, que vem desenvolvendo a transformação digital do sistema em várias frentes. Desde a integração do prontuário eletrônico interoperável, com sistemas de informação interconectados; com a rede de Telessaúde; a produção e análise de dados para a vigilância e formulação de políticas. A possibilidade agora de reunir o sistema SUS à rede de universidade e institutos federais; a conexão com os hospitais universitários e privados; a integração ao sistema de digitalização do Governo Federal, ao DATAPREV e SERPRO; e a modernização das UBS em rede. Desde o Seminário de Teoria Crítica da Saúde Digital, ocorrido em novembro de 2024, em Itaparica (BA), onde discutimos os fundamentos teórico-práticos para a implementar essa transformação, vimos na apresentação hoje da secretária Ana Estela Haddad como vem evoluindo e quantos programas já estão em andamento.
Nesse momento, em que estamos construindo esse processo, eu achei oportuno o artigo de dois pesquisadores da Academia Chinesa de Ciência e Tecnologia (1) sobre governança da IA. Estamos falando de um país que vem liderando a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico nessa área e tem nos atraído para parcerias não só comerciais, mas também no campo do desenvolvimento tecnológico. Os professores Yina Zhu e Yangxu Lu consideram que a China está passando por um período especial de sobreposição de três períodos históricos: um período de rápido desenvolvimento tecnológico, um período de progresso socioeconômico de alta qualidade, juntamente ao período de profundo ajuste da ordem política internacional.
Ora, eu gostaria de fazer a mesma reflexão sobre essa sobreposição no Brasil: pois também estamos enfrentando um momento de rápido desenvolvimento tecnológico, embora não com a mesma potência e pujança que a China. Ainda buscamos um melhor equilíbrio socioeconômico para a nossa população, que convive com situações de imensa iniquidade, enquanto a China conseguiu realizar um gigantesca evolução socioeconômica nas últimas três décadas; e participamos em conjunto desse reajuste geopolítico da ordem internacional. No entanto, eu penso que o Brasil enfrenta ainda um quarto elemento que é a necessidade de garantia de sua soberania na manutenção da ordem democrática interna, pois só conseguiremos conquistar soberania digital, principalmente na área da saúde, se aliarmos às parcerias externas o controle popular dessas tecnologias.
O Paradoxo de Topol
Voltando ao centro da questão da digitalização, o professor norte-americano Eric Topol abre seu livro – “The Creative Destruction of Medicine” – de 2012, afirmando que “Pela primeira vez na história, podemos digitalizar humanos na mais alta definição” (2); e propõe uma destruição criativa da velha medicina, para o surgimento de uma poderosa nova abordagem do humano. Assim, nos apresenta esse processo e mantém, para mim até hoje, os principais pontos de questões éticas da era digital no campo da saúde, ao que eu gosto de pensar como o Paradoxo de Topol.
Uma potente tecnologia que promete revolucionar os rumos da atenção médica com a precisão personalizada… mas, para isso, o humano passa a ser lido e traduzido em dados, passa a expor as questões da sua privacidade e proteção, da suscetibilidade e das possibilidades de mercantilização e colonização, de vigilância e do controle, da fragmentação e seleção, em uma gama de vulnerabilidades que tem inspirado diversos autores na denominação da realidade atual.
No entanto, penso que está embutida nessa concepção ainda uma dúvida maior: se não estaríamos limitando o humano a uma quantificação objetiva e puramente material, e sendo assim possibilitando afirmar que “se podemos ser totalmente digitalizados, as máquinas podem nos ver e sentir e dar uma assistência melhor do que outro humano”. Ou, em outras palavras, é possível pensar em todas as dimensões do cuidado, para além dos dados? O controle e domínio legal sobre a dinâmica e fluxo dos dados esgota todas as questões da saúde humana?
Assim, se pensarmos que não, apresenta-se um dilema que nos impõe o grande desafio – como implementar essa transformação de uma potente tecnologia, fortemente desenvolvida e atrelada às forças econômicas do capital, sem acirrar ainda mais as iniquidades sociais e violar a coesão das relações humanas? Como desenhar e organizar um grande sistema de saúde, sem destruir aquilo que está embutido na concepção de atenção em saúde, que é a relação humana – e o cuidado?
Pois esse foi o modelo da transformação digital do sistema de saúde do Reino Unido para 2030, proposto pela força-tarefa coordenada por Topol (3). Concomitante ao avanço da lógica de mercado e desempenho baseado em valor que assistimos recentemente, além de escândalos com a questionável utilização do imenso banco de dados dos prontuários desse sistema, instaura-se um modelo de vigilância permanente, de dados biométricos, de riscos e de controle da vida em bases reforçam o que vem se reconhecendo como sociedade do desempenho. Alta performance, gestão do consumo personalizado e foco na eficiência para aumento da produtividade.
Nós assistimos nos últimos anos a essa virada tecnológica que acompanha a velocidade das descobertas computacionais, na utilização das tecnologias baseadas em Inteligência Artificial em diversos processos de diagnose e terapêuticos – tanto quanto na pesquisa na área biomédica, com estímulo pelas forças de mercado de start-ups e plataformização – em um volume de novidades que, por si só, tem desafiado a capacidade regulatória para um fim social.
No ponto em que questionamos já no início, o modelo de atenção por chatbots e plataformas já tem demonstrado, principalmente depois do desenvolvimento dos programas de IA de linguagem generativa, a capacidade de reproduzir e adquirir características da empatia que simulam a relação entre humanos. Um estudo recente comparou e demonstrou que chatbots, com uso de IA Generativa, são capazes de emitir respostas aos questionamento de pacientes comparativamente com mais empatia quando comparados com um grupo de médicos (4).
Esse é um atrativo que podemos perceber nas intenções mais recentes das empresas que exploram o mercado de saúde em território nacional; o interesse crescente no ingresso no sistema de saúde, através da oferta de serviços de plataformização do cuidado em diversos municípios. Se antes não atraía o interesse do mercado, pela sua baixa produtividade, calcada na relação entre sujeitos, a Atenção Primária passa a ser um imenso nicho para a venda de insumos digitais.
O que a “caixa-de-ferramentas” da bioética nos impõe é uma vigilância para além do entusiasmo científico, reconhecendo o benefício das novas tecnologias, mas atentos à necessidade de pensar nos seus danos e riscos, tanto no nosso tempo, quanto das gerações futuras. A revolução tecnológica que assistimos tem a marca do modelo exploratório pelo capital financeiro, da economia de concentração do poder, de invasão da soberania dos povos e coloca em crise os limites característicos do que seja humano. E esse é o nosso grande desafio. O que fazer agora?
Eu cito esse trecho da obra do Christian Fuchs, com sua defesa de um humanismo digital (5): “Os humanistas digitais devem responder que a suposição de que não há verdade e nenhuma universalidade contribuiu para o surgimento da cultura digital pós-verdade, ‘notícias falsas’, relativismo, a fragmentação e polarização da sociedade digital. Os humanistas digitais devem verificar que é importante que nos apeguemos e renovemos as ideias de verdade, do comum, do ser humano, da democracia e de direitos universais na era digital”. Pensar em recuperar a potência da utopia humana, frente às distopias de bebês reborn e sexo com robôs, pode anunciar um modelo de humanismo digital que preserve o comum da humanidade, o debate em torno da democracia e dos direitos universais.
No tratamento com as tecnologias de IA, a professora Paola Cantarini (da UNIFESP) propõe uma nova comuna digital, onde se democratize não apenas o acesso, mas o poder de decisão sobre os rumos tecnológicos, com ferramentas que priorizam justiça social e equidade em detrimento do lucro e controle; com organização comunitária e empoderamento de associações. “Fugir da governamentalidade algorítmica com governança técnico-poética: reconfigurar as tecnologias se reencantarmos as narrativas que as sustentam, superando a lógica instrumental que reduz a complexidade humana e social a padrões algorítmicos” (6).
Por fim, na área da saúde, cito o artigo recente do professor Naomar de Almeida Filho, em coautoria com o professor José Ayres, que traz reflexões teóricas, a partir do que vem sendo desenvolvido pela SEIDIGI e discutimos no Simpósio de Itaparica: “Uma reterritorialização crítica da saúde digital, com tecnologias inseridas em contextos locais, respeitando culturas, conhecimentos e relações comunitárias. Pensar em tecnologias de forma crítica é pensar em valores como equidade, solidariedade, justiça social” (7). E essa “inovação institucional, democrática e cívica” é o que tenho pensado com Reforma Sanitária Digital.
Referências
- Zhu,Y; Lu,Y (2024). Practice and challenges of the ethical governance of artificial intelligence in China: A new perspective. Cultures of Science, Vol. 7(S1) 14–23. DOI: 10.1177/20966083251315227
- Topol, E. (2012). The Creative Destruction of Medicine : How the Digital Revolution Will Create Better Health Care. New York, Basic Books.
- Topol, E; cols (2019). The Topol Review – Preparing the healthcare workforce to deliver the digital future. Health Education England. Disponível https://topol.hee.nhs.uk/wp-content/uploads/HEE-Topol-Review-2019.pdf
- Ayers, JW & Cols (2023). Comparing Physician and Artificial Intelligence Chatbot Responses to Patient Questions Posted to a Public Social Media Forum. JAMA Intern Med. doi:10.1001/jamainternmed.2023.1838
- Fuchs, C (2022). Digital Humanism – A Philosophy for 21st Century Digital Society. UK. London
- Cantarini, P. (2025) IA e a desigualdade estendida no pano dos algoritmos. Entrevista especial com Paola Cantarini – Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Disponível em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/654566-ia-e-a-desigualdade-estendida-no-pano-dos-algoritmos-entrevista-especial-com-paola-cantarini
- Almeida-Filho, N; Ayres, JRCM (2025).Intersubjetividad y modos de cuidado en salud: sensibilidad eco-etno-social y competencia tecnológica crítica para la calidad-equidad en la salud digital. Salud Colectiva. 2025;21:e5763. Disponível emhttps://revistas.unla.edu.ar/saludcolectiva/article/view/5763
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