SUS: é inadiável fortalecer as redes de atenção

É possível superar a fragmentação do sistema, reforçando a Atenção Primária como eixo central. Mas ela passa por crise que compromete a coordenação da rede. É hora de repensar modos de gestão, contratos e carreira – além do subfinanciamento crônico da Saúde

Créditos: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília
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Título original: Redes de Atenção à Saúde (RAS) e Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS): especialmente agora é urgente fortalecer o SUS

Atividades propostas para registro dos 35 anos do SUS, que celebramos em setembro de 2025, indicam a necessidade de fortalecer o SUS, ampliando a capacidade de gestão nos territórios. Em grande medida, nesse momento, a atuação do Ministério da Saúde convoca à retomada, atualização e qualificação da discussão de temas relacionados à regionalização e regulação. Nesse contexto, a temática das redes precisa ser revisitada, tanto em suas concepções como em suas metodologias de implementação.

Na década de 2000, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) consolidou a proposta das Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS) como estratégia para superar a fragmentação dos sistemas de saúde na Região das Américas. O marco central, que teve uma grande contribuição do Brasil1, foi publicado em 2008 e sistematizou 18 atributos das RISS, organizados em quatro domínios fundamentais: a) organização da atenção e do cuidado com enfoque territorial; b) gestão integrada de recursos; c) governança e responsabilidade; d) modelos de financiamento e incentivos.

Esse modelo defende a Estratégia da Atenção Primária à Saúde (APS)2, tendo o primeiro nível de atenção como eixo ordenador de pontos de atenção de diferentes níveis de atenção. Tal concepção tem suas raízes na Declaração de Alma-Ata (1978)3, que consagrou a APS como estratégia central para alcançar a saúde para todos, reafirmando seu papel como porta de entrada do sistema e eixo estruturante das redes de serviços. Esse marco conceitual se tornou a base política que influenciou fortemente os países da região, incluindo o Brasil.

No Brasil, a discussão das RISS teve convergência na proposta das Redes de Atenção à Saúde (RAS), que foi formalizada em 2010, com a Portaria nº 4.279/20104 do Ministério da Saúde. Essa portaria estabeleceu diretrizes para a organização das RAS no âmbito do SUS, definindo-as como arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, integrados por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão. Seus objetivos principais foram superar a fragmentação da atenção, garantir integralidade do cuidado em todos os pontos da rede, otimizar recursos e reduzir ineficiências e fortalecer a APS como porta de entrada preferencial e coordenadora do cuidado.

A portaria destacou que cada RAS deveria se organizar em torno de pontos de atenção à saúde (unidades básicas, policlínicas, hospitais e serviços especializados), sistemas de apoio (diagnóstico, terapias, regulação, transporte) e sistemas logísticos (informação, comunicação, governança). Desses arranjos surgiram variações do conceito de redes, como é o caso de redes temáticas, concebidas para desenhar fluxos assistenciais. Neste arranjo, podemos citar a Rede Alyne (antiga Rede Cegonha), a Rede de Urgência e Emergência, a Rede de Doenças Crônicas, entre outras. Esta produção teve um adensamento teórico por meio de parcerias com a OPAS em publicações de referência que difundiram o debate das redes de atenção5.

A linha de cuidado surge como um dispositivo organizador e micropolítico dos sistemas de saúde, constituído como pacto entre gestores, trabalhadores e usuários, que articula fluxos assistenciais, práticas clínicas e relações intersubjetivas, orientando a atenção integral ao longo do itinerário terapêutico. Mais que um protocolo ou fluxograma, trata-se de um processo dinâmico que integra ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, garantindo continuidade, singularidade e responsabilidade compartilhada pelo cuidado. Enfim, é expressão da tecnologia leve “dando liga” à rede6. A Política Nacional de Humanização também contribuiu com esse debate por meio da operacionalização do projeto terapêutico individual e coletivo, pautado na horizontalização das relações entre trabalhadores e usuários, e orientado por itinerários com acolhimento, integralidade e corresponsabilização ao longo do percurso do usuário no sistema de saúde7.

Simultaneamente, experiências com a Planificação da Atenção à Saúde, lideradas pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde, implementaram redes a partir de abordagens semelhantes. A iniciativa desenvolveu estratégias para reorganização dos serviços do SUS em diversos estados do Brasil, tendo referência central na Atenção Primária à Saúde como coordenadora do cuidado e ordenadora de redes. A continuidade do cuidado, que necessita articulação competente com a Atenção Ambulatorial Especializada (AAE), se concretiza, neste cenário, pela implementação de linhas de cuidado e da gestão das RAS.

Seu referencial teórico aproximou elementos da RAS e a centralidade do 1º nível com modelos internacionais de enfrentamento das condições crônicas (MACC)8,9. Limites dessa perspectiva podem estar relacionados com a pretensão de evitar contradições entre o desenvolvimento de redes e a implementação de propostas neoliberais: concebendo-se como absolutamente técnica, a proposta, em alguns cenários, parecia prescindir da política, especialmente dos elementos do território.

Depois de 15 anos, muitos avanços foram obtidos, porém há pontos que devem ser reavivados para superar o desafio da fragmentação, foco central das RAS. O modelo de cuidado, que articula os serviços de primeiro nível (as nossas UBS) e alcança os níveis de maior densidade tecnológica precisa ser tratado com a complexidade que o tema exige. O cenário atual do nosso primeiro nível retrata distanciamento do modelo de saúde comunitária, representado por uma crise técnica e política da figura dos agentes comunitários e UBS, cada vez mais operando fora do seu escopo estratégico e fazendo com que, em muitos locais, a APS atue como uma unidade de pronto atendimento (UPA).

Isso compromete a resolutividade e a capacidade de coordenar o cuidado, o que impõe restrições à qualidade de toda a rede. A integralidade das redes é um aspecto desafiador, pois para uma integralidade que inclua a resolutividade, é necessária a articulação da APS com outros níveis de atenção, mas essa inclinação, se desproporcional, implicará diretamente maior alocação de recursos nessas instâncias, podendo gerar subfinanciamento ainda maior para o primeiro nível, com desestabilização da base conceitual e estratégia da APS. No âmbito da governança, há desafios na costura das redes, a exemplo da definição do papel dos atores da gestão tripartite nesta essencial ação do SUS. Aproveitando a silenciosa publicação da portaria que enuncia a humanização como um novo princípio do SUS, é possível incluir o aporte teórico e metodológico da Política Nacional de Humanização (PNH) para articular essas redes e qualificar a governança.

Necessitamos urgentemente de uma agenda para falar dos modos de gestão e contratualização e dos limites de alocação orçamentários do SUS. As alternativas não estatais de oferta de serviços produzem modos de gestão que tendem a sangrar a perspectiva de saúde comunitária e de base territorial, inviabilizando projetos não só de promoção da saúde, mas também estratégias e ações tempestivas, como no caso das emergências climáticas. Por isso, precarização dos vínculos de trabalho e a falta de uma carreira do SUS também são temas desse debate.

Na infraestrutura, há necessidade de repensar a saúde digital, principalmente a partir do baixo investimento em desenvolvimento e modelagem das soluções digitais. Grandes empresas, a exemplo dos bancos e sistemas financeiros, gastam cerca de 10% em tecnologia da informação10. Informação qualificada é crucial para a sustentabilidade das redes de atenção à saúde. É importante garantir a participação social nos processos decisórios que configuram as redes, e é necessário que o controle social possa intervir, protestar e atuar estruturalmente na constituição dessa agenda. Redes sustentáveis são o resultado de organizações democráticas e produtoras de cidadania.

O Agora Tem Especialistas, programa do Ministério da Saúde, deve ser saudado e reconhecido como uma importante estratégia para produção de redes. É preciso salientar, ao mesmo tempo, que ele encontra um cenário de privatização que, em muitos locais, já consolidou a precarização das relações de trabalho e vem dificultando a permanência de trabalhadores em diferentes pontos da rede. Portanto, é necessário que o recurso novo induza algum grau de desprecarização dos vínculos de trabalho e viabilize a criação de novas infraestruturas públicas e permanentes.

O legado do Mais Acesso às Especialidades tem potencilidade para, ao reduzir as filas existentes, promover a recuperação da capacidade de gestão nas regiões. Destacamos aqui o exemplo do Grupo Hospitalar Conceição, 100% Público e 100% SUS, que lidera a implementação do programa com resultados que vão além da redução de filas, pois problematiza a ampliação do acesso e fortalecimento do trabalho das equipes de saúde em saúde por meio da formação.

Para isso, o governo já dispõe de estratégias importantes estratégias de apoio, como o programa e-multi e o legado das experiências da humanização da atenção e gestão do SUS. A retomada exige suporte para o desenho da rede de atenção nas diferentes regiões de saúde e também investimento no capital humano – educação permanente – para fazer essa articulação. Nesse contexto, é urgente sustentar estratégias para indução de contratos de trabalho mais estáveis, aumento da capacidade de gestão e da estrutura pública nas diferentes regiões, construindo uma regionalização “de baixo para cima”. Trata-se de manter a aposta de que o SUS poderá gerar redes com a capacidade de “penso” para disputar o modelo de cuidado, a governança, a participação social, os arranjos de gestão e o financiamento necessários para o fortalecimento do SUS.

O desafio RAS não se resolve apenas com normas ou programas; exige mobilização social, pactos institucionais e vontade política para recolocar a saúde como direito de cidadania e dever do Estado. É hora de retomar o espírito da Reforma Sanitária e da Declaração de Alma-Ata, reafirmando a Atenção Primária como ordenadora do sistema e resgatando a potência comunitária das redes vivas que o SUS foi capaz de construir.

O fortalecimento do SUS depende da nossa capacidade de resistir às forças da precarização e da mercantilização, e de ousarmos reinventar práticas, modos de gestão e pactos de cuidado. Redes só serão sustentáveis se forem também redes de luta, capazes de produzir cidadania e garantir o direito universal à saúde. A mobilização de trabalhadoras e trabalhadores da saúde, gestores comprometidos, movimentos sociais, usuárias e usuários pode garantir que as propostas que estão na pauta assumam a dimensão que o SUS necessita para o seu fortalecimento.


 Referências:

1. Pan American Health Organization, Pan American Health Organization. Integrated Health Service Delivery Networks: Concepts, Policy Options and a Road Map for Implementation in the Americas. 2011. https://iris.paho.org/handle/10665.2/31216.

2  Starfield B. Primary Care: Concept, Evaluation, and Policy. New York: Oxford University Press, 1992.

3  WHO. Declaration of Alma-Ata. International conference on primary health care. Kazakhstan: World Health Organization, 1978.

4  Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Diário Oficial da União, 2010. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/prt4279_30_12_2010.html.

5 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2011.

6  Silva NEK. Revisitando as noções de linha do cuidado em saúde. Cadernos de Saúde Pública 2016; 32. DOI: 10.1590/0102-311X00157915.

7  Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS: diretrizes e dispositivos. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/diretrizes_e_dispositivos_da_pnh1.pdf.

8. Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Planificação da Atenção à Saúde: um instrumento de gestão e organização da APS e AAE nas RAS. Brasília: CONASS; 2018.

9  CONASS. Guia da Jornada de Organização das Redes de Atenção à Saúde. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde; 2023.

10. Managing bank IT spending | McKinsey & Company. https://www.mckinsey.com/capabilities/mckinsey-digital/our-insights/tech-forward/managing-bank-it-spending-five-questions-for-tech-leaders? utm_source=chatgpt.com (acessado em 6, 2025).

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