Sobre a vacina da dengue do Butantan
Apontamentos a respeito desse grande feito científico do Brasil. Como poderá enfim controlar a doença no país. Por que o debate sobre estratégias “verticais” e “horizontais” está superado. E a razão para celebrá-la como uma conquista verdadeiramente nacional
Publicado 10/12/2025 às 08:35

O recente licenciamento da vacina do Butantan contra a Dengue no final de novembro é uma grande notícia. Dose única, protege contra os quatro sorotipos da doença e é barata em relação a outras vacinas. É efetiva para evitar cerca de 89% dos casos graves e 80% para o adoecimento. Com muita razão o diretor científico do Butantan, Esper Kallás, comemorou esse feito científico e principalmente tecnológico do instituto. Em poucos anos, depois de incorporada a vacina no Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde, a dengue poderá ser controlada no país. Atenção, não se fala em erradicação, nem muito menos em eliminação da doença. Naturalmente, a existência dessa vacina, muito melhor do que as duas outras disponíveis (uma delas produzida pela francesa Sanofi, teve sua utilização restringida pela OMS), não resolve toda a complexa cadeia de relações existente entre o Aedes, o vírus e os humanos suscetíveis.
Mesmo que produzida em número suficiente de doses e incorporada no SUS, as campanhas de controle do vetor realizadas tendo como alvo a eliminação de coleções de água no entorno e interior das residências são essenciais. De acordo com o Ministério da Saúde entre 80% e 90% dos focos do Aedes aegypti estão concentrados no ambiente domiciliar (intra e peridomicílio). Este dado reforça a estratégia de que o combate ao mosquito começa dentro de casa. Além disso, a atuação dos agentes de saúde e da máquina da Atenção Primária terá que dar a sua contribuição. Finalmente, as milhões de doses terão que chegar a tempo e a hora nos braços das pessoas elegíveis
Na última virada de século houve um debate intenso entre os sanitaristas que imaginaram, implantaram e desenvolveram o SUS em torno do predomínio de estratégias “verticais” e “horizontais” no novo sistema. Os primeiros eram denominados “campanhistas” e os outros eram adeptos de um radical processo de municipalização (daí a ideia da horizontalidade). O tempo passou e a municipalização foi implantada em muitas dimensões com o fortalecimento dos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde. Mas, em outros aspectos da gestão do SUS, ficou patente a necessidade de abordagens centralizadas e verticais (“campanhistas”) e talvez os dois programas onde essa verticalização foi mais bem sucedida foram os transplantes e a imunização. O PNI é um sucesso absoluto (vamos lembrar da COVID). Aquele debate antigo não faz muito sentido hoje em dia, muito embora haja dimensões onde a perspectiva horizontal tenha deixado a desejar como foi o caso da vigilância epidemiológica na mesma pandemia de COVID.
Uma outra dimensão a ser mencionada neste bom anúncio da vacina do Butantan, foi o arranjo tecnológico que levou ao sucesso da vacina. Não conheço os detalhes dos contratos entre o NIH, a MSD, a empresa chinesa que produzirá as milhões de doses da vacina e o Butantan. Não sei por exemplo, quais mercados pertencerão ao Butantan nem quanto o nosso instituto terá que remunerar seus sócios na forma de royalties ou outras modalidades de remuneração de direitos. Mas tenho certeza de que o Butantan apertou os seus sócios na defesa dos interesses do próprio instituto e do SUS.
Além disso, nesse arranjo há uma dimensão muito importante que deve ser mencionada. Ela diz respeito à propriedade do projeto, isto é, quem o elaborou. E no caso, foi o Butantan. Foi ele quem entendeu a necessidade de uma vacina com essas características, que foi atrás de conhecimento de bancada, estabeleceu uma rota de desenvolvimento autóctone, derivada de outros sucessos seus, como na vacina contra a Influenza, e localizou um parceiro para escalonar a produção numa escala de muitos milhões de doses. Esse contorno todo é que define o que chamo a propriedade do projeto.
Vamos pensar nos projetos das montadoras de automóveis no Brasil e na Embraer. No caso dos automóveis, os projetos são sempre das matrizes. Os carros são montados, embora tenha se desenvolvido por aqui uma quantidade importante de fabricantes de autopeças. A relevância e o sucesso da Embraer decorrem da propriedade do projeto. A empresa vai buscar muitos de seus componentes dentro e fora do país (por exemplo, as turbinas de seus aviões). Tem até fábricas no exterior. Mas a ideia e o desenvolvimento pertencem à empresa brasileira. Essa vacina contra a dengue, mutatis mutandis, é muito mais Embraer do que indústria automobilística.
Parabéns ao Butantan!
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