Saúde quilombola e COP30: avanços e retrocessos
Enquanto fica cada vez mais claro o papel das comunidades tradicionais na proteção do clima, Brasil pode dar um passo crucial ao implementar política de saúde para quilombolas. Mas mesmo após reuniões históricas, projeto tarda a sair do papel – por quê?
Publicado 11/11/2025 às 09:36 - Atualizado 11/11/2025 às 15:54

A 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), começou no dia 6 de novembro e se realiza ao longo das próximas duas semanas, pela primeira vez no Brasil, na cidade de Belém na Amazônia. Esta está sendo chamada de “A COP da implementação” e a “COP da Participação Social”, entre outros títulos. É um evento crucial no cenário global de combate aos impactos das mudanças climáticas em curso, com enormes repercussões na saúde mundial. Mas se a crise ambiental afeta em especial a saúde de populações tradicionais, como as comunidades quilombolas, como o Brasil se prepara para protegê-las?
Inúmeras pesquisas de campo evidenciam que a saúde das populações quilombolas apresenta indicadores epidemiológicos piores que o restante da população nacional. Em 2023, a partir do reconhecimento da realidade quilombola pelo Estado, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) mobilizou suas bases e organizou, acompanhada do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e diversos movimentos, a Primeira Conferência Nacional Livre de Saúde Quilombola, que teve como tema “A Saúde Quilombola Como Política Pública: Em defesa da democracia, do direito à terra e por um novo modelo de saúde dentro dos territórios quilombolas”.
A conferência foi um marco histórico, visto ter sido a primeira vez que os quilombolas de todo o Brasil se reuniram para debater e propor diretrizes para a sua saúde. A principal proposta da conferência foi a criação da Política Nacional de Saúde Quilombola (PNASQ), que foi aprovada na plenária da 17ª Conferência Nacional de Saúde. A então ministra da Saúde Nísia Trindade assumiu publicamente o compromisso com a criação da política. Em agosto de 2025, foi realizado o 1º Seminário Nacional de Saúde Quilombola, promovido pelo Ministério da Saúde (MS), para qualificar a proposta da PNASQ e promover debates sobre os desafios e potencialidades da implementação no SUS.
No Seminário, foi empossado o GT de Saúde Quilombola “Graça Epifânio”, que tem como prioridade de atuação a criação, a implementação e o monitoramento da PNASQ. Após o Seminário, as discussões sobre a Política avançaram internamente no MS e o GT ainda não foi convocado para a primeira reunião oficial.
Mas na quinta-feira, dia 6 de novembro, os quilombolas foram surpreendidos com um retrocesso significativo em relação à PNASQ. A CONAQ lançou uma nota pública cobrando do CNS e do MS esclarecimentos sobre a ausência da pauta da PNASQ na 372ª Reunião Ordinária do CNS, uma vez que o tema havia sido anunciado como parte das ações do Novembro Negro, mas não apareceu na agenda oficial. A ausência desse passo importante para o avanço da concretização da PNASQ no SUS é grave, e motivo de preocupação sobre o nível do comprometimento do MS com a saúde da população negra.
As áreas quilombolas – tituladas e mesmo as não tituladas – estão entre as mais preservadas em todos os biomas. Seu conhecimento tradicional sobre os territórios promove a sustentabilidade e o bem viver. Mas apesar disso eles estão entre os grupos com piores indicadores epidemiológicos e sanitários. A PNASQ é fundamental para garantir melhoria na saúde e qualidade de vida, contribuindo para a sustentabilidade das comunidades e dos territórios. Não é momento de titubear sobre esta importante pauta.
A criação da PNSIPN demorou cerca de dez anos. Os novos tempos e crises não permitem mais tal delonga. Não é hora de retroceder, o momento é de implementar. Na Segunda Década dos Afrodescendentes, no Mês da Consciência Negra, no momento em que o mundo volta os olhos para a importância dos povos e comunidades tradicionais na proteção do meio ambiente, que o Brasil preside a COP, que o governo federal reconhece que a maior parte da população da Amazônia é negra, que os quilombolas são guardiães da biodiversidade, que é lançada a Declaração de Belém sobre o Combate ao Racismo Ambiental e que o Plano de Ação de Saúde de Belém reitera a vulnerabilidade racial diante da crise climática, apontando como elementos essenciais para a construção de um futuro viável a justiça social e a equidade em saúde, é preciso que o Ministério da Saúde e as forças progressistas sejam exemplos para o mundo, se comprometam efetivamente com a saúde quilombola e garantam a criação da PNASQ ainda em 2025.
Saúde da população negra
Estamos na 2ª Década dos Afrodescendentes da ONU. O Brasil tem a maior população afrodescendente fora do continente africano e, portanto, tem um papel de destaque e protagonismo nessa iniciativa internacional. Nas últimas décadas o país tem tido avanço notável no que se refere a ações afirmativas e políticas públicas, como a criação do Programa Federal de Ações Afirmativas, das cotas raciais nas instituições públicas, do Ministério da Igualdade Racial (MIR), do programa Aquilomba Brasil, da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). No campo da saúde, os avanços neste terceiro governo Lula tem sido relevantes. Mas a maioria dos estados e município ainda não tomou passos concretos para a implementação da PNSIPN.
Os dados disponíveis apontam que a população negra apresenta indicadores biossociais muito piores que a população branca brasileira. No campo da saúde, por exemplo, o racismo institucional e a desumanização no atendimento têm grandes impactos nas mulheres negras, que apresentam os piores indicadores de acesso a pré-natal, mortalidade materna e violência obstétrica.
Segundo o Boletim Epidemiológico da Saúde da População Negra, as principais causas de mortalidade materna em 2020 foram hipertensão arterial, hemorragia e infecção puerperal, que responderam por cerca de 30% dos casos. Todas são causas evitáveis. Além disso, a covid-19 foi responsável por 22% dos óbitos maternos no país em 2020, sendo 63,4% dessas mortes entre mulheres negras. Além do acesso desigual às infraestruturas e aos serviços básicos de saúde e saneamento, as situações de vulnerabilidade social também afetam desproporcionalmente diferentes grupos populacionais, em especial a população negra.
Um dos grandes avanços em termos de políticas públicas conquistado pelo movimento negro foi a inclusão no Censo Demográfico de 2022, pela primeira vez, do levantamento total da população quilombola do país. O IBGE identificou 1.330.186 quilombolas, residindo em 1.700 municípios de 24 estados e no Distrito Federal, em quase 8 mil comunidades.
Saúde, clima e racismo
Em 1º de janeiro de 2025 foi iniciada a Segunda Década Internacional dos Afrodescendentes das Nações Unidas (ONU). Esta Década sucede a primeira (2015-2024) e tem como tema central “Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento”. Reconhecendo os impactos do racismo estrutural e ambiental na qualidade de vida e na saúde da população negra, o objetivo da ONU é intensificar o compromisso global para que as pessoas afrodescendentes em todo o mundo possam desfrutar plena e efetivamente dos benefícios do desenvolvimento sustentável e de todos os seus direitos humanos, promovendo o combate ao racismo e a todas as formas de discriminação étnico-racial.
Na primeira década, foram criados marcos legais de combate à discriminação e ampliado o debate sobre os impactos do racismo na sociedade. No entanto, os movimentos sociais e a academia apontaram que os resultados foram insuficientes para alcançar mudanças concretas e combater as iniquidades persistentes decorrentes da escravidão e do colonialismo. Por isso, na segunda década dos afrodescendentes é preciso avançar no reconhecimento das contribuições históricas e atuais das pessoas negras em todas as áreas de conhecimento, na promoção de medidas concretas para combater o racismo, a discriminação racial e a xenofobia, na busca por justiça reparatória, e na garantia do acesso equitativo à saúde, educação, emprego e participação plena nos processos de desenvolvimento sustentável.
A COP30 e a Saúde
A COP30 é a reunião anual mais importante dos países signatários do Acordo de Paris (2015), focada em acelerar as ações necessárias para limitar o aumento da temperatura média global e promover a adaptação aos impactos climáticos já sentidos. A Amazônia, o palco escolhido pelo Brasil para o evento, tem grande repercussão pois visa destacar a importância das florestas, da biodiversidade, das nações em desenvolvimento e dos povos e comunidades tradicionais no combate à crise climática. Esta COP tem entre os seus objetivos centrais impulsionar a implementação de metas climáticas, a cooperação internacional, a participação social e o financiamento climático.
A crise climática é inegável, assim como é inevitável reconhecer que esta é a maior ameaça à saúde no século XXI. Para o Brasil, a COP30 é uma oportunidade histórica para colocar oficialmente a saúde no centro das decisões climáticas globais. Este ano, pela primeira vez a COP terá um dia totalmente dedicado à saúde, o dia 13 de novembro.
A relação entre clima e saúde é direta e complexa, mas seus impactos já são visíveis mundialmente no aumento das secas, inundações, tornados, furacões e outros eventos climáticos que afetam bilhões de pessoas. Porém, os impactos não são distribuídos igualmente entre as populações. Eles afetam desproporcionalmente os países de renda baixa, e os grupos mais vulnerabilizados como as populações pobres de zonas urbanas, os idosos, as crianças, as sociedades tradicionais como os indígenas e quilombolas, os agricultores de subsistência e as comunidades tradicionais costeiras, exigindo a implementação de políticas que promovam justiça climática e equidade em saúde.
A temperatura média perto da superfície atingiu 1,55ºC acima dos níveis pré-industriais. Este recorde tem sido parte de uma tendência contínua de aquecimento, com as temperaturas permanecendo acima desse limiar nos últimos anos. O aquecimento global, impulsionado em grande parte pelas atividades humanas, está levando a perigos simultâneos em toda a América Latina, incluindo ondas de calor, incêndios florestais e inundações. Estão devastando comunidades, interrompendo meios de subsistência e resultando em uma ampla gama de consequências para a saúde da população.
Os indivíduos estão cada vez mais expostos ao aumento do calor, eventos climáticos extremos e um risco elevado de transmissão de doenças infecciosas, como dengue, zika, chikungunya, leptospirose e doenças diarreicas. Além disso, o aumento de queimadas (naturais e provocadas) e da poluição do ar leva à exacerbação de doenças como asma e bronquite, e as ondas de calor provocam desidratação e aumento da mortalidade, especialmente entre os mais velhos, as crianças menores de 5 anos e os portadores de doenças crônicas, enquanto desastres naturais geram lesões, afogamentos e doenças mentais.
Todos esses fatores impactam diretamente os serviços de saúde, desde a falta de energia e as inundações repentinas nos hospitais e unidades de saúde, até o aumento das demandas populacionais devido aos novos cenários epidemiológicos.
A COP30 pode ser um momento fundamental para promover iniciativas concretas. Dentre as oferecidas pelo Brasil para o mundo, a mais importante é o Plano de Ação em Saúde de Belém para Adaptação do Setor da Saúde às Mudanças Climáticas. O Plano e seus documentos complementares, apresentam análises e medidas práticas para que os países adaptem seus sistemas de saúde, reduzam vulnerabilidades, promovam a saúde, a segurança alimentar, o saneamento, a participação social e o financiamento climático adequado, para fortalecer a infraestrutura e os serviços de saúde em relação aos riscos emergentes.
No entanto, apesar dos avanços, o Brasil enfrenta muitos desafios e barreiras na implementação de suas políticas climáticas e sociais devido à falta de priorização formal, pouca integração orçamentária, baixa capacitação de pessoal e reduzido envolvimento da sociedade na tomada de decisão sobre políticas públicas. A não criação da PNASQ é um exemplo disso.
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