Saúde mental: pensar a renda e o trabalho

Projetos de economia solidária, que promovem autonomia dos usuários, foram notável inovação da luta antimanicomial. Mas recorde de afastamentos por problemas psíquicos nos deve fazer lembrar: é preciso ir bem além da geração de empregos

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Por Laura Carneiro Amieiro, autora convidada

Uma das mais interessantes estratégias surgidas para atender às demandas que surgem da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), em meio aos processos da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, foi o estímulo à criação de projetos de economia solidária pelos usuários dos serviços de saúde mental.

Sabendo que o país ainda enfrenta uma série de desigualdades sociais, com poucas oportunidades para pessoas sem acesso a demandas básicas de sobrevivência, os programas de geração de renda e trabalho podem ser alternativa para a autonomia e a qualidade de vida dessa parcela da população. O recurso tem fundamento nas ideias do economista Paul Singer, que preconiza que “a economia solidária é uma resposta organizada à exclusão gerada pelo mercado de trabalho formal”.

As cooperativas sociais trazem em sua estrutura a capacidade de produzir autonomia por meio da geração de renda que não se orienta pela obtenção do lucro, mas pela oportunidade de promover um trabalho democrático e menos alienado, que efetivamente pense na dignidade dos participantes, para além do retorno financeiro.                                                        

No campo da saúde mental, as cooperativas sociais têm um longo histórico de experiências exitosas, e encontram na Lei nº 9.867/99 um respaldo para a organização do seu funcionamento. Essa lei reconhece a sua importância junto ao público denominado “pessoas em desvantagem”, que inclui indivíduos com deficiências físicas, psíquicas, egressas de prisões ou que passam por condenações alternativas, além de jovens em vulnerabilidade social.

Esse recurso pode ser um caminho para se pensar na superação das ameaças de manicomialização do CAPS, já que representa uma alternativa para fora dos serviços, podendo resistir ao movimento de porta giratória dos usuários. Também expande o caminho para superar a dependência, por vezes cronificada, do uso de benefícios sociais: na experiência da loucura, resistente aos moldes de trabalho do sistema capitalista, existe uma dificuldade no encaixe junto ao mercado formal de trabalho.

Trabalho e saúde mental: histórico contraditório

Pensar estratégias para que a reabilitação social efetivamente aconteça é um direito de quem faz tratamento em saúde mental e um dever do Estado. Há que se considerar, no entanto, que historicamente o trabalho já ocupou um lugar protagonista nas tentativas de adaptação de tratamento em saúde mental, com ideais hoje considerados superados. 

A laborterapia tinha como proposta a cura pelo trabalho e foi utilizada nas chamadas Colônias de Alienados, famosas no Brasil desde os anos 1890. Nessa época, a partir da ideia de que o ócio leva à loucura, pessoas tidas como doentes mentais incuráveis eram levadas aos campos para cumprir exaustivas jornadas de trabalhos agrícolas. Ali, passavam a ser exploradas como mão-de-obra sem remuneração.

Outra ideia que ganhou fama foi a da arteterapia, que reduzia as produções artísticas e criativas de asilados em hospitais a mero trabalho terapêutico, muitas vezes tido como excêntrico ou até mesmo misterioso. Tais noções desconsideram o trabalho de cada sujeito como emancipatório e retiram o protagonismo da pessoa de sua produção, mantendo-o como um objeto de estudo ou de alienação.

Foi a partir da experiência institucional conduzida pelo psicoterapeuta catalão François Tosquelles na França, em meados do século passado, que algo começou a mudar: estamos falando do Clube Terapêutico Paul Balvet. Ali ficou acordado que as práticas artísticas e de trabalho seriam totalmente autogestionadas, o que rompeu com a lógica de tutela e irracionalidade de seus participantes, que prevalece nas chamadas instituições totais. 

Na Itália, em meio à experiência de fechamento do manicômio da cidade de Trieste, comandada pelo psiquiatra Franco Basaglia, as cooperativas sociais tomaram a cidade, não se fechando nos hospitais, o que serviu de inspiração para o processo brasileiro na década de 1970.

Trajetória de êxitos no país

No Brasil, a história de experiências como essas se inicia em 1946, quando a médica Nise da Silveira funda a Seção de Terapêutica Ocupacional da Colônia de Alienados do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Esse trabalho gerou um marco histórico no cuidado em saúde mental do país, e mesmo com suas limitações, fez uma virada no reconhecimento do valor da produção das pessoas internas de hospícios. 

Ao longo do processo da Reforma Psiquiátrica, a partir da máxima “nada sobre nós sem nós”, aclamada nas Conferências Nacionais de Saúde Mental, pudemos testemunhar a criação de vastas experiências exitosas vindas desse encontro entre a saúde mental e a geração de renda.

É o caso de iniciativas como a Libersol, de Curitiba (PR), a Geração POA, localizada em Porto Alegre (RS), e a Ciranda Sumaúma, sediada na cidade de Rio Branco (AC), e Trabalharte em Juiz de Fora (MG). Projetos como esses sustentam um movimento de produção autônoma de trabalho artístico e de geração de renda, já não mais como terapêutica ou como um trabalho pela cura, mas como produção de cidadania e sentido de vida. 

Somamos como exemplo também as irreverentes iniciativas carnavalescas. No Rio de Janeiro, há o Loucura Suburbana e o Tá Pirando, Pirado, Pirou – além de inúmeros outros blocos, espalhados por todo o país. Todos demonstram na prática que “dá para fazer” (mote que referencia o filme de mesmo nome, que conta a experiência de Trieste) ações criativas em saúde mental, incluindo uma questão fundamental do nosso território: a geração de renda e reabilitação social. 

Tais medidas promovem verdadeira transformação entre os  participantes de seus projetos: podem ter a possibilidade de abandonar o estigma de pacientes psiquiátricos, que passam a se identificar não mais como doentes mentais, mas como artistas, marceneiros, artesãos, enfim, cidadãos.

Não bastam novos postos de trabalho

Hoje, porém, percebemos o quanto ainda é incipiente o resultado gerado pela caminhada desses atores no que diz respeito à produção real de autonomia e emancipação. 

A dificuldade em sustentar a competitividade no mercado de trabalho formal, somada à falta de investimento de capital faz com que as iniciativas estejam longe de encontrar o resultado que elas são capazes de produzir. É nesse sentido que buscamos fazer essa transição de compreensão da questão da saúde para além da ausência de doenças, mas como uma produção de vida em sua integralidade.

Não basta, no entanto, apenas criar novos postos de trabalho. A loucura parece trazer à tona uma experiência de vida radicalmente contrária à adaptação aos moldes atuais das produções de trabalho capitalistas, como uma denúncia às estruturas de sociais em vigência, ela não se adequa, e por isso mesmo pede atenção. 

Não podemos deixar de lado que hoje o Brasil lidera o número de afastamentos do trabalho por causas relacionadas à saúde mental no mundo, segundo o Ministério da Previdência Social. Isso nos aponta que escutar a loucura significa também pensar as atuais relações de trabalho, reconhecendo que pautas como o fim da escala 6×1 são urgentes. 

Esses números nos apontam que estar bem adequado ao sistema hoje não é resultado de um bom sinal de saúde mental. Pelo contrário, nos fazem questionar: é possível repensar nossos vínculos com o trabalho como um todo?

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