Saúde mental no trabalho: pelo que lutamos?
No ano passado, país registrou 400 mil afastamentos por saúde mental. Enfrentaremos a questão com mais diagnósticos, “mindfulness” ou repensando coletivamente relações laborais? Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador será espaço dessa disputa
Publicado 20/02/2025 às 09:41 - Atualizado 20/02/2025 às 11:52

Conheça a coluna de Cláudia Braga no Outra Saúde
O Ministério da Previdência Social divulgou que, em 2024, foram registrados no país mais de 400 mil casos de afastamentos do trabalho por problemas relacionados à saúde mental – número que representa a soma dos afastamentos atribuídos a diagnósticos de transtornos ansiosos, episódios depressivos, estresse e outros. No ano anterior, em 2023, mais de 288 mil pessoas foram afastadas por problemas de saúde mental, enquanto, em 2022, foram 208 mil.
Os números impressionam e convocam os que atuam nas agendas da saúde mental e do mundo do trabalho a refletir e agir.
O que precisamos definir é quais termos mobilizar para entender esse cenário. Devemos compreendê-lo como um problema individual? Como uma relação linear de causa e consequência em que a causa é o trabalho e a consequência, um diagnóstico psiquiátrico – que levaria ao afastamento daquilo que seria a causa do sofrimento? Se for isso, haveria algo específico no trabalho que causaria sofrimento? E quais seriam as respostas que, nesses termos, cabem à pessoa que está sofrendo?
Ou vamos entender como um problema complexo e coletivo? Uma situação que demanda repensar e reconstruir as relações constituídas sobre o trabalho e no trabalho? Um problema que demonstra que cuidar da saúde mental no trabalho é ato que vai além da saúde – e que nos revela a necessidade de questionar a estrutura do trabalho e as estruturas sociais? Se quisermos transformar esse cenário é preciso encararmos criticamente o que esses números sobre afastamento expressam.
Ainda cabe uma observação: teríamos que ir além e questionar o que estamos definindo socialmente enquanto um problema de saúde mental. De um lado, há uma discussão necessária a ser feita sobre patologização da vida e, de outro, note-se que, nesse aumento explosivo de afastamentos do trabalho por problemas relacionados à saúde mental, os diagnósticos de ansiedade e depressão correspondem à maior parte dos casos.
Ora, se tomarmos como base o Relatório sobre Saúde Mental no Mundo, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2022, ali também consta que o número de diagnósticos de ansiedade e depressão aumentou de maneira geral e globalmente após a pandemia. Por que? Não há uma única resposta. Seja lá quais forem as respostas, importa não tomar esses diagnósticos de afastamento como verdade absoluta.
Mudar o trabalho para proteger a saúde mental
Os desafios para promover saúde mental no trabalho são globais. Por isso, em 2022 a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou, conjuntamente com a OMS, o documento Diretrizes sobre Saúde Mental no Trabalho. Esse documento entende o trabalho como um determinante social da saúde mental e que, enquanto tal, pode ser tanto um fator de proteção quanto de risco.
A partir desse referencial, sustentado por documentos anteriores da OIT e pela literatura, o documento reconhece dez categorias de, assim denominados, “riscos psicossociais”, entre os quais: forma do trabalho, carga e ritmo de trabalho, baixa ou nula participação do trabalhador na tomada de decisões, ambiente e condições, cultura institucional e relações interpessoais no trabalho. E esses fatores precisam ser considerados em contexto ampliado, pois recessões econômicas, instabilidade financeira, possibilidade de perda do emprego, contratos informais e precários, além de iniquidades sociais e discriminação, também influenciam a saúde mental no trabalho.
Com base nessa compreensão, o documento avança em sua proposta, recomendando intervenções para a organização do trabalho, atenção direta ao trabalhador e retorno ao trabalho, além incentivar a participação de pessoas com problemas de saúde mental no mundo do trabalho. Também enfatiza o papel do governo em conjunto com organizações sociais para criar políticas que promovam saúde mental e locais de trabalho solidários.
Dito de outra maneira, o que a OIT e OMS reforçam é a necessidade de tomada de ação, pois o trabalho, que pode ser importante para a experiência de saúde mental e para ampliação da vida, também pode ampliar a vulnerabilidade vivida quando a estrutura, ambiente e relações de trabalho trazem insegurança e perpetuam violências.
Os caminhos criados pelo Brasil para promover saúde mental precisam ser próprios, considerando características e desafios locais, com respostas para os trabalhadores domésticos e informais, que representam 6 milhões e 39 milhões de pessoas, respectivamente, e respostas nos múltiplos cenários de trabalho, como no campo. Ainda, não é possível ignorar, em especial nos grandes centros urbanos, os problemas enormes enfrentados cotidianamente pelos trabalhadores no deslocamento do e para o trabalho: como sentir bem-estar no trabalho quando estar ali requer duas, três horas de transporte em condições indignas? E como experimentar saúde mental quando a preocupação é assegurar dois empregos porque a conta precisa fechar no final do mês?
De fato, é fundamental agir para promover “condições de trabalho seguras, solidárias e decentes para todos”, como OIT e OMS assinalam. Mas é preciso ter em vista que a promoção da saúde mental, incluindo no trabalho, não se realiza se as condições gerais de vida não forem transformadas.
A disputa em torno da NR-01
No contexto das mudanças do mundo do trabalho e da experiência de sofrimento mental dos trabalhadores, duas iniciativas recentes postas no cenário nacional precisam ser mencionadas.
A Norma Regulamentadora nº 01 (NR-1), promovida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (TEM) e que trata do Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR) é um instrumento fundamental para a proteção e garantia dos direitos dos trabalhadores. Ocorre que a Portaria MTE nº 1.419 , de 27 de agosto de 2024, atualizou a NR-01, alterando a sua redação e incluindo, de maneira inédita, a identificação e gestão dos fatores de riscos psicossociais no ambiente de trabalho. A normativa, no entanto, não define o que seriam os riscos psicossociais, nem como esses fatores devem ser geridos.
Daí que está aberta a oportunidade para debate sobre que trabalho queremos e quais respostas para promoção de saúde mental no trabalho precisam ser desenvolvidas
Podemos entender, por exemplo, que relações de trabalho com imposição de metas inalcançáveis, processo de trabalho fragmentados, cargas horárias excessivas e salários reduzidos são riscos psicossociais. Se assim for, a reposta teria que envolver a ampliação da participação do trabalhador na tomada de decisões, a reorganização dos papeis de trabalho, a adoção de jornadas de trabalho e salário dignos, entre outras mudanças.
Outra via é a da individualização e descontextualização do sofrimento da estrutura de trabalho o que levaria à possível responsabilização do trabalhador pelo sofrimento vivido. Por isso a importância da reflexão sobre o tema — colocando em pauta os contratos de trabalho, a situação de flexibilização dos direitos trabalhistas, os impactos da não realização de acordos coletivos e o enfraquecimento das representações sindicais, entre outras questões — e de debate crítico sobre que Programa de Gerenciamento de Riscos interessa.
O fato é que está em aberta essa discussão e cabe fazer a boa disputa.
Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental: um cavalo de Tróia?
E, claro, a disputa está sendo feita.
Em março de 2024 foi sancionada a Lei 14.831/2024, que institui o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental e estabelece os requisitos para a concessão da certificação. Tal Certificado, com validade de dois anos, será concedido pelo governo e pode ser obtido por empresas que desenvolvam ações de promoção de saúde mental com “implementação de programas de promoção da saúde mental no ambiente de trabalho” e “oferta de acesso a recursos de apoio psicológico e psiquiátrico para seus trabalhadores”, entre outras diretrizes. A lei autoriza as empresas a utilizarem “o certificado em sua comunicação e em materiais promocionais”.
A Lei aparenta ser um avanço para promoção da saúde mental no trabalho. No entanto, o que se tem observado desde a sanção da Lei é a proliferação de plataformas do mundo corporativo que vendem iniciativas para empresas um pacote de medidas para obtenção do certificado; medidas que incluem “mindfulness” enquanto programas de saúde mental, “terapias online” para enfrentar o “estresse financeiro”, e “workshops sobre ansiedade”. Soluções que não apenas não enfrentam os problemas reais, como podem criar novos problemas – o que será do funcionário que se recusar a participar de um workshop? Uma busca rápida na internet ainda revela argumentos pró obtenção da certificação: “eficiência operacional e redução de absenteísmo” e “melhoria da reputação corporativa”.
Posto que a Lei está aí, resta questionar: qual é a instrução normativa que estabelece os indicadores para cumprimento das diretrizes da Lei? Qual é o método de certificação? Qual é o órgão regulador para concessão de tal certificação? Não há resposta para nenhuma dessas perguntas.
É preciso atenção para que esta Lei não se torne apenas um instrumento do marketing empresarial, desresponsabilizando-as pelas condições de trabalho e pela criação de novos problemas e sofrimentos para os trabalhadores.
Retomar as origens
É preciso lembrar: é parte da agenda política da saúde mental alinhada à reforma psiquiátrica brasileira a relação com mundo do trabalho. Portanto, a discussão sobre saúde mental e trabalho está longe de ser uma novidade para esse campo. Os exemplos práticos disso vão das inúmeras iniciativas desenvolvidas desde os serviços de saúde mental para promover o direito ao trabalho e à renda, à articulação histórica, em 2004, da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas com a perspectiva da economia solidária, tendo como horizonte garantir direito ao trabalho digno promovendo como valores e práticas a cooperação e a solidariedade.
Mas é possível ainda voltar algumas décadas. A Carta de Bauru, de 1987, afirmava: “O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”.
Aliás, respostas sobre saúde mental no trabalho que desconsideram as questões de classe, o racismo, a homofobia, o machismo, entre outros fatores que constituem as relações sociais – incluindo as de trabalho – apenas servem para não transformar nenhuma estrutura.
No limite, e retomando o início do texto, escolher os termos com os quais vamos olhar para esse cenário é definir qual é o nosso horizonte de transformação – se rebaixado ou se (ainda) é tempo de projetarmos sonhos de um mundo mais justo. O momento para revermos que saúde mental no trabalho queremos é pertinente. Em 2025 ocorrerá a 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (5ª CNSTT), que é organizada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e promovida pelo Ministério da Saúde. Esta aí uma boa oportunidade para, coletivamente, inventarmos um mundo em que o trabalho e saúde mental se articulem de tal modo em que o direito ao trabalho é cuidado e cuidado no trabalho é direito de todos.