Saúde mental no trabalho: não basta o mindfulness
Governo Federal definiu que empregadores devem promover bem-estar psíquico. Mas sem a participação dos trabalhadores, medidas não passarão de “ofurô corporativo”. Terapia online e salas de descompressão não transformam condições de trabalho adoecedoras
Publicado 07/11/2025 às 11:30 - Atualizado 07/11/2025 às 13:45

Por Carolina de Moura Grando, Ejivaldo do Espírito Santo, Elionara de Souza Ribeiro, Gabriel Diogo Martins e Ingridy Pereira da Silva, da Equipe de Saúde do Trabalhador do Sindsep-SP
Título original: Quem adoece também cuida? Rede Somos e potenciais armadilhas dos riscos psicossociais na NR-1
A atualização da Norma Regulamentadora 01 (NR-1), que entra em vigor em 25 de maio de 2026, inclui os riscos psicossociais como responsabilidade das empresas na gestão de riscos. Apesar da oportunidade apresentada pela atualização em um momento no qual os transtornos mentais são a principal causa de afastamentos do trabalho, autores, profissionais e sindicalistas do campo da Saúde do Trabalhador têm demonstrado preocupações sobre sua implementação.
Sem a norma apresentar uma definição do que constituem riscos psicossociais ou oferecer maiores orientações sobre estes, sobretudo como mapeá-los ou atuar sobre eles, apresenta–se o risco de intervenções meramente paliativas, como o oferecimento de psicoterapias plataformizadas, aplicativos de mindfullness ou salas de descompressão.
No Congresso do DIESAT, na roda de conversa sobre Saúde Mental no Ambiente de Trabalho, no dia 25 de abril de 2025, a médica Márcia Bandini apontou as potenciais armadilhas da aplicação da NR-01, entre elas a implementação de práticas que denominou “ofurô corporativo”, que atuam apenas na superficialidade dos problemas vividos e centram-se na transformação individual.
Conforme apontam Vieira e Santos (2024), as intervenções “gestadas nos marcos ideológicos do regime de acumulação capitalista e da governamentalidade neoliberal”, “longe de transformarem as situações de trabalho, dissimulam o papel dos fatores relativos ao trabalho sobre a saúde, superestimam as ações realizadas sob moldes individualizantes e ampliam as pressões sobre os trabalhadores. (Vieira; Santos, 2024, p.2)
O caso da Prefeitura de São Paulo
O cenário atual da Prefeitura Municipal de São Paulo, enquanto empregadora, dialoga com esses alertas e nos convida a pensar as consequências de deixar sob a definição do empregador, sem a voz ativa contínua dos trabalhadores, o que constituirá o enfrentamento aos riscos psicossociais.
Em 2023 a campanha salarial do Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (SINDSEP-SP), construída em conjunto com a categoria a partir de assembleias, apresentou nove demandas relativas a condições de trabalho e saúde, dentre as quais a “construção de uma política efetiva de saúde do trabalhador, considerando os desgastes físicos, mentais e quadros de adoecimento do funcionalismo, englobando ações de prevenção, promoção, readaptação e reabilitação das(os) trabalhadoras(es) do serviço público municipal” e também “a criação de um Programa de Saúde Mental que abranja todas as categorias e unidades de trabalho”, incluindo também a pauta do combate às violências institucionais, assédio moral e assédio sexual.
A resposta da gestão municipal foi a constituição de um Grupo de Trabalho de Saúde Mental, regulamentado pela portaria Nº 68 de 2023 da Secretaria Municipal de Gestão (SEGES) e prorrogado por portarias subsequentes. Houve também a criação de um Núcleo de Orientação e Proteção em Saúde Mental dos Servidores – Rede SOMOS, regulamentado pela portaria nº 56/ SEGES/2023, tendo por objetivo “implantar políticas, programas e projetos voltados às ações educativas, preventivas e de promoção à saúde mental do servidor público municipal” (São Paulo, 2023), sob a Coordenação de Gestão de Saúde do Servidor (COGESS).
O Grupo de Trabalho, que nunca teve acesso aos dados sobre adoecimentos e comunicações de acidente de trabalho solicitados à Prefeitura, resultou na construção de um relatório com 69 propostas de ações construídas pelo SINDSEP e outras entidades sindicais, classificadas entre: a) Ações voltadas ao acompanhamento da saúde do servidor; b) Ações de assistência a serem desenvolvidas pelo Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM) e Secretaria Municipal de Saúde (SMS); c) Ações a serem desenvolvidas por COGESS e SEGES; d) Ações voltadas às condições de trabalho. O relatório com todos os comentários nunca foi publicado pela municipalidade.
Já a Rede SOMOS se constituiu a partir de representantes da COGESS e interlocutores, servidores designados pelas unidades de recursos humanos (URH) para acolherem seus colegas e mediarem questões relacionadas à saúde mental. A rede formou 286 interlocutores, que realizaram, até o momento, segundo divulgação em formação online realizada no dia 21 de janeiro de 2025, 508 encaminhamentos para atendimento na clínica-escola da UNINOVE. Além disso, no mesmo evento, a Rede SOMOS apresentou ter realizado 06 lives temáticas até janeiro de 2025. O SINDSEP-SP acompanhou as formações dos dias 21 de janeiro de 2025 e 26 de fevereiro de 2025, nas quais o papel do trabalho no processo saúde-doença foi brevemente mencionado, sendo pouco enfatizado, ainda menos sob a luz da realidade do serviço público municipal.
“Tensão pré-perícia”
Na contramão do discurso de um empregador preocupado com seus funcionários, em 24 de janeiro de 2025 foi publicado pela Prefeitura Municipal de São Paulo o Decreto nº. 64.014, que regulamenta a concessão aos servidores municipais de todas as formas de licença médica, readaptação funcional, aposentadorias por incapacidade permanente e exames de ingresso.
O novo decreto revogou completamente o anterior, o Decreto nº 58.225/2018, e apontou para uma postura mais centralizadora da Coordenadoria quanto à saúde dos servidores, com licenças sendo periciadas com maior frequência, a partir de prazos menores. As licenças concedidas pelas chefias imediatas, por exemplo, reduziram pela metade.
A Coordenadoria também ampliou todos os prazos aos quais deve atender, por vezes até mesmo retirando a previsão de prazos por completo, enquanto a maior parte dos prazos aos quais os servidores devem atender foram reduzidos. Há, ainda, ênfase na penalização dos trabalhadores que os descumprirem, mas sem indicação de qualquer possibilidade de responsabilização quando a própria Coordenadoria o faz.
O decreto também traz mudanças significativas no que concerne a readaptação funcional, que, além de eliminar a possibilidade de restrição de função, inserem novos mecanismos para seu funcionamento. Algumas alterações trazem vitórias, condizentes com demandas feitas pelos sindicatos representantes da categoria, como a criação da Comissão de Avaliação de Compatibilidade de Atividades da Readaptação Funcional que parece ser, finalmente, o início de um caminho para que a readaptação seja mais efetiva, sobretudo ao contar com a representação de servidores da mesma categoria do readaptado, potencialmente mais familiarizados com sua realidade.
Apesar dos potenciais benefícios da mudança, o decreto abre também a possibilidade do servidor solicitar revogação de sua readaptação, o que, ao considerarem-se os prejuízos trazidos pela Lei 18.221 de 27/12/2024, que altera a jornada e restringe a autonomia de escolha de unidade de lotação de professores readaptados, pode levar a casos de servidores que, visando evitar tais impactos, poderão ocultar suas dores, sofrimentos e quadros de saúde para fazer tal solicitação.
Quando somamos a essa hipótese: o aumento da frequência do periciamento; a ampliação da necessidade de perícia de ingresso para servidores em atividade nos casos em que há histórico de licenças superiores a 15 dias, ou de readaptações; e as potenciais reduções no número de dias concedidos quando solicitada a extensão da licença médica, identifica-se a produção de um cenário favorável ao presenteísmo, ou seja, a servidores que, mesmo adoecidos, forçam-se a comparecer ao trabalho, aumentando os riscos e agravos à sua própria saúde e a de terceiros.
Não se pode perder de vista, ainda, que as bonificações por resultado na Prefeitura ainda desconsideram, nos critérios de assiduidade, os dias ausentes por licença médica comum. Além disso, a Lei 17.722/2021, regulamentada pelo Decreto 62.555/2023, criou um periodo aquisitivo e concessivo de férias que desconsidera a data de ingresso dos servidores, algo nunca antes visto no ordenamento jurídico brasileiro, possibilitando a redução do período de férias em caso de licenças.
Destaca-se, sobre a frequência do periciamento, que ainda que este não pareça, o aumento por si só, representa uma intimidação àqueles servidores que realmente apresentam quadros de saúde, sabe-se que a perícia médica, sobretudo em quadros de transtornos mentais, tende a ser um evento estressor e angustiante, sempre permeado pelo medo da eventual negativa, por vezes chegando a piorar os sintomas apresentados. Não é incomum, em atendimentos feitos no sindicato, ouvirmos servidores que consideram exonerar-se para não serem mais submetidos às experiências de perícia. Acerca disso, Paparelli, Coelho, Gimenes e Gibellini (2023) apontam, sobre uma intervenção em grupo com professores municipais:
“As perícias médicas ocupam um lugar de destaque nas falas dos participantes dos grupos. Um deles chegou a referir-se a um fenômeno que designa como “tensão pré-perícia”, caracterizada por intensa ansiedade, inquietação ou sensação de estar “com os nervos à flor da pele”, cansaço fácil, dificuldade de concentrar-se, sensação de “branco na mente”; irritabilidade, “pavio curto”; tensão muscular, dificuldade de relaxar; alteração do sono (dificuldade de pegar no sono ou mantê-lo), o que caracteriza uma verdadeira síndrome ansiosa.”
Essa “tensão pré-perícia” nomeada pelas autoras é também frequentemente observada nos atendimentos e acompanhamentos realizados pela equipe da Secretaria de Políticas de Saúde do Trabalhador do SINDSEP-SP.
O desincentivo à licença médica é ainda mais preocupante quando a gestão pouco se responsabiliza pela efetiva promoção de condições de trabalho protetivas e saudáveis. São raras as reformas e melhorias de equipamento, com exceção quando antecedem a entrada de organizações sociais, e pouco se observa a organização e as relações de trabalho como produtoras de adoecimento, o que se faz evidente no baixíssimo índice de reconhecimento de Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT) para transtornos mentais relacionados ao trabalho. Em linhas gerais, entende-se o novo decreto e a Lei 18.221/2024 como uma resposta a um momento no qual cada vez mais servidores adoecem, mas parece mais tentar dominar do que de fato solucionar o problema, salvo pequenas exceções.
Limites e potenciais da Rede SOMOS
A Rede SOMOS, instrumento que deveria atuar na promoção da saúde mental dos servidores no município, ainda se mostra incipiente e pouco robusta para atender o avanço galopante dos quadros de adoecimento. O discurso presente nas formações acompanhadas pelo sindicato enfatiza os aspectos individuais dos processos de adoecimento, o que se repete ao abordar suas estratégias de enfrentamento, remetendo a “um modelo hegemônico de qualidade de vida no trabalho, cujo caráter assistencialista se propõe a restaurar ‘corpo-mente’, focalizando o indivíduo e sua produtividade. Os trabalhadores permanecem alheios ao processo, sendo objetos e alvos das intervenções, além de serem responsabilizados pelo fracasso, no trabalho e na gestão de suas emoções, e serem cobrados por cuidarem de si próprios para que possam estar em condições de trabalhar” (Vieira; Santos; 2024). Não é explicitada também qualquer autonomia da Rede SOMOS de intervir em processos de trabalho e formas de organização de trabalho potencialmente nocivas à saúde mental.
Paparelli, Sato e Oliveira (2011), destacam que:
“Ao mesmo tempo em que cresce a constatação, por meio de estudos e dos relatos das vivências de trabalhadores e trabalhadoras, de que o trabalho (tal qual se configura em suas condições e organização) frequentemente produz adoecimentos, desvaloriza-se a força dessa determinação, como se fosse possível reduzi-la às características dos que adoecem, corroborando um processo conhecido como ‘culpabilização da vítima’.”
Em síntese, enquanto a Rede SOMOS enfatiza medidas centradas nos indivíduos, as ações voltadas à transformação das condições e organização do trabalho são desfavorecidas, como aquelas propostas pelo GT com as entidades sindicais. Já as leis e decretos que podem incentivar o presenteísmo e as posturas gerencialistas avançam, potencialmente agravando os quadros de adoecimento mental que, supostamente, se pretende prevenir.
O mesmo órgão responsável pela “tensão pré-perícia” e pela restrição do reconhecimento de doença do trabalho por assédio moral em seus protocolos técnicos¹ é, então, aquele que, no momento seguinte, faz recomendações sobre sono, atividade física e alimentação para a promoção da saúde mental. Estabelece-se, então, a contradição de uma Prefeitura que adoece seus funcionários e decide, sem participação ativa de seus trabalhadores, como protegê-los desse adoecimento (e em realidade muitas vezes apenas orientando-os a se proteger), para então, finalmente, periciá-los e decidir se é ou não o responsável por seus agravos.
Não se pode desconsiderar, também, o risco de que uma menor procura por afastamentos decorrente de acirramentos dos processos periciais ou por receios vinculados às novas legislações produza a impressão de efetividade das medidas paliativas que vem sendo tomadas pela gestão.
Apesar das críticas realizadas, a Rede SOMOS conta com profissionais competentes e apresenta importante potencial de romper com o modelo paliativo. Para tal, é importante a garantia de autonomia dos profissionais e a viabilização da efetiva atuação sobre situações produtoras de sofrimento no trabalho.
Ações voltadas à saúde mental devem ser construídas, implementadas e avaliadas com constante participação de trabalhadores e seus representantes e não devem focalizar a avaliação psicológica de sujeitos, mas sim a avaliação do ambiente e da organização do trabalho nos processos saúde-doença, buscando a efetivação de condições materiais, ritmos e cargas de trabalho adequadas, com atividades providas de sentido e relações interpessoais que enfatizam a cooperação ao invés da competitividade.
Dessa forma, entende-se que se os sindicatos não se apropriarem da necessidade de que ações preventivas tenham seu foco na transformação dos processos de trabalho, corre-se o risco da “captura da temática e para o consequente encaminhamento do tema sob moldes individualizantes que operam em favor da rentabilização do capital, embora se apresentem como medidas voltadas para o bem-estar e para a saúde dos trabalhadores” (Vieira; Santos, 2024).
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.419, de 27 de agosto de 2024. Aprova a nova redação do capítulo “1.5 Gerenciamento de riscos ocupacionais” e altera o “Anexo I – Termos e definições” da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1) – Disposições Gerais e Gerenciamento de Riscos Ocupacionais. Diário Oficial da União de 28 ago. 2024 – Seção 1.
PAPARELLI, R.; SATO, L.; OLIVEIRA, F. DE. A saúde mental relacionada ao trabalho e os desafios aos profissionais da saú- de. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 36, n. 123, p. 118–127, jan. 2011.
PAPARELLI, R; M.D.M, COELHO; D, GIMENES; M.M, GIBELLINI. Clínica do desgaste mental no trabalho: Apontamentos sobre Transtornos Mentais em Educadores (as) da Rede Pública de Ensino Paulistana. In: LIMA, C. F. (org.). Seminários: trabalho e saúde dos professores: precarização, adoecimento e caminhos para a mudança. São Paulo: Fundacentro, 2023. p. 137.
SÃO PAULO. Decreto Nº 58.225 de 09 de maio de 2018. Regulamenta a concessão aos servidores municipais das licenças que especifica, de readaptação, de restrição de função e de aposentadoria por invalidez, […], conforme previsto na legislação específica. Diário Oficial da Cidade de São Paulo, 10 mai. 2018, p.01.
SÃO PAULO. Lei 17.722 de 07 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a valorização do Vale-Alimentação e do Auxílio-Refeição, […] institui a Gratificação por Local de Trabalho nas unidades da Saúde; regulamenta e cria gratificação para a função de pregoeiro e agente de contratação. Diário Oficial da Cidade de São Paulo, 08 dez.2021, p.08.
SÃO PAULO. Lei 18.221 de 27 de dezembro de 2024. Introduz alterações na legislação de pessoal do Município de São Paulo, […] e introduz outras disposições. Edição Extra do Diário Oficial da Cidade de São Paulo, 27 dez. 2024. p.07.
SÃO PAULO. Decreto Nº 64.014 de 24 de janeiro de 2025. Regulamenta a concessão aos servidores municipais de licença para tratamento de saúde, […], entre outros, conforme previsto na legislação específica. Diário Oficial da Cidade de São Paulo, 27 jan.2025, p.01.
SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Gestão. Portaria nº 56 de 26 de setembro de 2023. Dispõe sobre o Programa de Orienta- ção e Proteção em Saúde Mental dos Servidores – REDE SOMOS. Diário Oficial da Cidade de São Paulo, 28 set. 2023, p. 05-06.
SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Gestão. Portaria nº 68 de 06 de novembro de 2023. Dispõe sobre instituição de Grupo de Trabalho para discutir políticas de saúde mental para servidores. Diário Oficial da Cidade de São Paulo, 09 nov. 2023, p. 14.
VIEIRA, C. E. C.; SANTOS, N. C. T. Fatores de risco psicossociais relacionados ao trabalho: uma análise contemporânea. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 49, 2024.
O texto foi originalmente publicado na edição nº 49 da revista Trabalho e Saúde, do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat).
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