Saúde, meio ambiente e a luta contra o desencanto

O novo presidente da Abrasco fala sobre o futuro da entidade e suas perspectivas diante de um país e um mundo em crise. Sustenta: o Brasil pode ter papel crucial em aprofundar a compreensão da Saúde Coletiva, com a defesa do planeta no horizonte

Rômulo Paes de Sousa, novo presidente da Abrasco
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Rômulo Paes em entrevista a Gabriel Brito

“São tempos de desencanto”. É assim que Rômulo Paes de Sousa, novo presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), define a atualidade, marcada pela crise estrutural de um capitalismo que leva o planeta ao colapso climático. Diante de tamanho dilema histórico, o campo da saúde teria caminhos alternativos a oferecer? Sim, diz ao Outra Saúde, desde que consiga aliar o acesso a serviços de saúde com uma agenda de renovação do conceito da democracia e sua produção política.

Não é pouca coisa, mas desde sua fundação, a Abrasco se propõe a pensar e realizar saúde numa perspectiva ampliada, necessariamente associada com o aprofundamento dos direitos sociais e a participação social. A própria criação do SUS está diretamente relacionada à produção científica da entidade criada em 1979 para superar o modelo de serviços de saúde imposto pela ditadura.

“A própria terminologia de saúde coletiva é uma formulação original onde nós temos, digamos assim, a aglutinação da epidemiologia, da política, planejamento e gestão e, por fim, ciências sociais aplicadas à saúde. Agora, mais recentemente, com uma contribuição mais decisiva da saúde e ambiente”, discorre Rômulo.

No entanto, como se vê nos fóruns internacionais, a exemplo da própria Organização Mundial da Saúde (OMS), tal caminho se vê sistematicamente bloqueado exatamente pelo sequestro da agenda política pelo capital, o que se reflete na vulnerabilidade cada vez mais gritante a novas tragédias como a pandemia.

Epidemiologista e especialista em política pública, Paes de Sousa destaca a ascensão da questão ambiental na formulação de saúde , tanto pela perspectiva da associação que agora preside quanto pelo avanço do debate nos órgãos responsáveis por políticas públicas. 

Essa nova postura se apresenta inclusive a partir do projeto “One Health”, apresentado pela OMS e replicado no Brasil com o recente lançamento do plano de ação Uma Só Saúde. O princípio em si soa promissor, mas cabe perguntar se é aplicável numa conjuntura política de Estados amplamente dominados pelo Capital e sua lógica de reprodução cada dia mais predatória, o que leva ao referido “desencanto”.

Rômulo parte sua reflexão de uma certa percepção de que a racionalidade técnica permitia a exploração da natureza em nome do modo de produção capitalista. “O desencantamento vem quando se percebe que isso não funciona. Pelo menos uma parte dos próprios grandes atores desse modelo econômico percebem que já não funciona. Essa é a grande discussão”, analisou.

Dessa forma, Rômulo afirma que é hora de o Brasil avançar em sua concepção de saúde. Apesar de ser uma das mais avançadas do mundo, por compreendê-la de forma associada a diversas dinâmicas de reprodução da vida social e econômica, o epidemiologista e sanitarista entende ser hora colocar o tema ambiental no centro da ideia de saúde coletiva.

“Não é uma formulação necessariamente nova, mas ganhou muita força, no caso do Brasil, por causa da pandemia e também do desastre no Rio Grande do Sul. Há, portanto, a necessidade de uma compreensão mais sofisticada dos temas ambientais no nosso modelo de saúde. Estamos devendo uma contribuição mais original sobre esse tema. Penso que tivemos uma contribuição muito decisiva internacionalmente, por exemplo, quando debatemos os determinantes sociais da saúde. O Brasil tem condições de incidir mais nos modelos apresentados e que ganham espaço na acumulação teórica internacional”, pontua ele.

Em sua visão, a Abrasco é um instrumento para avançar nesta produção de novos sentidos, tal como se viu na concepção do SUS e seu modelo universalista.

A seguir, a íntegra da entrevista com Rômulo Paes de Sousa.

Quais suas expectativas e ambições na presidência da Abrasco? Como que a associação pode contribuir para a promoção do direito à saúde no Brasil?

É uma gestão de continuidade em relação à gestão anterior, coordenada por Rosana Onocko.

A primeira questão é a defesa da democracia. Esse é um tema muito importante, não apenas porque nós somos uma entidade da sociedade civil, mas também porque os temas da saúde e a própria construção do SUS são muito vinculadas à luta democrática no Brasil. A possibilidade de um serviço público voltado para a saúde, capilarizado, amplo, abrangente, integral, só foi possível porque houve um movimento social muito forte no Brasil, uma articulação tanto da academia quanto das forças políticas partidárias organizadas. 

De certa forma, esse projeto de uma sociedade de bem-estar, pela qual a saúde é uma espécie de modelo, inclusive para as outras áreas, só foi possível porque veio no curso de uma visão de um país democrático, um país onde a solidariedade social se impõe diante das outras alternativas de organização social que existem no mundo. A saúde no Brasil deve muito à democracia, mas a democracia também deve muito ao movimento de saúde no Brasil.

A segunda coisa importante é que os temas da saúde passaram a ser aglutinadores e mobilizadores do ecossistema da direita brasileira e de um radicalismo político, inclusive no mundo. Assuntos como doenças mentais, vacinas, planejamento familiar… Vários temas que são históricos, embora tenham interconexão com outras áreas, passaram a ser também instrumentos de aglutinação da direita brasileira, ou da extrema-direita, mais especificamente. 

Isso também nos coloca o risco de haver uma certa regressividade em relação a vários direitos sociais já constituídos. Inclusive, todo esse tema relacionado à violência e como lidar com ela é intrinsecamente da saúde. Portanto, nos interessa, obviamente, ter uma voz ativa nesse debate.

Outro ponto fundamental está ligado ao direito constitucional à saúde. O SUS, embora possa ser o sistema mais robusto de que o Brasil dispõe, não tem sua integridade garantida de forma absoluta, pois depende de uma espécie de vigilância do movimento social e uma disputa orçamentária permanente.

Veja que uma questão muito importante, por exemplo, é que parte do orçamento da saúde, justamente em referência a investimentos, é sequestrado pelo Congresso Nacional, a partir de emendas parlamentares, nas quais 60% são aquelas vinculadas à saúde. Isso compromete não apenas o orçamento, mas um fundamento básico do SUS e seus pilares de política republicana – isto é, a impessoalidade, a referência numa base técnica adequada, a integralidade e a isonomia. E isso acaba se perdendo porque a lógica da construção do desenho e da implementação das emendas parlamentares foge a tais fundamentos, já que há uma discricionariedade na alocação desses recursos.

Isso implica para nós uma vigilância e uma intervenção, como especialistas e profissionais da área, mas também como usuários do sistema. Portanto, a questão do direito constitucional à saúde não é um tema tranquilo, acaba sendo um objeto, sobretudo a questão orçamentária, de interesse de grupos diversos e ameaças à funcionalidade do sistema.

Por fim, há o componente essencial da política de ciência, tecnologia e inovação. Há uma experiência muito recente que todos tivemos, vinculada à pandemia de covid-19. A dependência do país para obter desde coisas muito simples, como máscaras, até coisas mais complexas, como vacina. Esse acontecimento mostrou para o Brasil e o mundo a forma desigual como esses bens essenciais de saúde são apropriados. Ficou evidente em emergências sanitárias catastróficas, como a pandemia, e agora a mpox. Novamente, vários países começam a capturar as vacinas disponíveis e as regiões que necessitam de uma intervenção mais forte para bloquear o vírus ficam sem condições de fazê-lo, porque não há vacinas disponíveis.

Apesar dos embates aqui descritos, estaríamos num momento de avanço do movimento sanitarista brasileiro?

O Brasil precisa superar a dependência e, embora tenha crescido muito, em termos de produção científica, ainda temos uma dependência tecnológica muito grande. Precisamos rever isso, não só ampliando a nossa competência, mas também ampliando a nossa capacidade de produção. Existem boas iniciativas recentes do Ministério da Saúde, mas nós precisamos ir muito além.

Precisamos de políticas educacionais socialmente referenciadas para fortalecer e expandir a formação em saúde, comprometida com as demandas em saúde da população brasileira. Tais políticas têm vários ângulos, algumas mais vinculadas estritamente ao nosso campo de atuação, as disciplinas da saúde coletiva. Hoje, nós possuímos 94 programas de pós-graduação em saúde coletiva em todo o território nacional. Assim, há um crescimento excepcional da área e nós, inclusive, temos uma presença muito grande na produção científica brasileira.

Uma das revistas mais relevantes de divulgação científica é a Ciência e Saúde Coletiva, uma das revistas da Abrasco. Nós temos muito orgulho disso e é uma coisa que precisamos fortalecer. Há também a questão da defesa do ensino técnico. O SUS possui uma cadeia produtiva muito sofisticada em termos de atividade profissional. Nós temos várias especialidades, não somente especialidades médicas, mas com várias competências dentro do SUS. E aí nós precisamos ter uma formação que vai desde o nível técnico a áreas mais especializadas.

Nesse sentido, também desenvolvemos competência para avaliar a qualidade desse ensino, em parceria com várias entidades da área. E, por fim, nós temos compromissos internos da Abrasco vinculados aos seus valores históricos e compromissos sociais de transformação, independência, transparência e democracia.

Dentro das várias instâncias que a Abrasco possui, seus grupos de trabalho, seus grupos de assessoramento, também tem uma política que reflita a sua agenda mais ampla no sentido da inclusão, da representação e da expressão da diversidade, obviamente contra o preconceito e outras formas ultrajantes de relacionamentos interpessoais.

Eis o resumo do que nós pretendemos fazer.

Ainda sobre a Abrasco, por que uma associação de saúde coletiva? O que isso carrega em sua origem, concepção e sentido histórico?

A Abrasco existe há 45 anos. Ela surgiu em 1979, ano da Anistia, um momento de reflexão na América Latina sobre a abrangência do Estado, até onde ele deveria atuar e a saúde era um dos temas centrais. A ideia da saúde coletiva se colocou na Europa após a Segunda Guerra Mundial, no sentido de a saúde se apresentar como um direito social fundamental, que evoluiu na construção de sistemas nacionais em vários países. 

De uma certa forma, o período de ditadura militar no Brasil travou esta discussão, já que a própria disputa pela forma de organização política do país teve um efeito de atração de toda a inteligência nacional. Mas, mesmo assim, nos anos 70, com a ditadura em pleno vigor, surge um movimento muito interconectado com um debate na América Latina sobre o papel do Estado em relação à saúde.

Neste momento, o Brasil começou a desenvolver um conjunto teórico muito sofisticado sobre como deveria ser a abordagem dos temas da saúde, uma formulação original, em certa medida, produzida na América Latina, que vai apresentar muitas contribuições para um debate que acontecia no mundo inteiro. No caso brasileiro, pela candência da questão democrática, apareceu em vários momentos de elaboração da Constituição o slogan “saúde é democracia, democracia é saúde”, consigna fundamental que expressa a nossa concepção de saúde coletiva.

Em suma, a organização de um modelo de serviços de saúde por parte do Estado surgiu fortemente vinculada a uma dimensão política, de maneira que a realização dessas possibilidades não se daria em qualquer contexto. Além disso, sua própria expressão, desenho e conteúdo dependia muito da interação entre o Estado e a sociedade civil. Ou seja, somente em um ambiente democrático seria possível forjar um sistema que tivesse todos os componentes essenciais para um bom atendimento à população, tanto na promoção como prevenção, atenção e recuperação.

Portanto, o nosso modelo de saúde surge num contexto de reflexão profunda sobre o papel da sociedade, da sua forma de organização social e política e dos componentes essenciais para essa agenda, na qual a população não é apenas um objeto de intervenção, mas também sujeito com capacidade de intervenção. Consequentemente, a participação social no SUS se tornou uma das mais avançadas nos sistemas de saúde contemporâneos.

A própria terminologia de saúde coletiva é uma formulação original onde nós temos, digamos assim, a aglutinação da epidemiologia, da política, planejamento e gestão e, por fim, ciências sociais aplicadas à saúde. Agora, mais recentemente, com uma contribuição mais decisiva da saúde e ambiente, elas se apresentam como disciplinas que têm uma metodologia, linguagem própria, léxico científico e cooperações próprios.

Entretanto, elas estão interligadas porque todas têm uma contribuição decisiva para o entendimento do que vem a ser a saúde enquanto campo de saber e conhecimento, assim como estado geral das condições de vida de uma população. A saúde coletiva, na verdade, é expressão de confluência de várias disciplinas e, por conseguinte, várias cooperações, atrizes e atores que a forjam. Ela é olhada num contexto mais amplo, mais extenso, não apenas nos seus serviços de atendimento médico, mas também atividades correlatas. E aí vamos mais adiante quando nós pensamos na proteção social num sentido mais amplo, que envolta inclusive outras áreas.

Posto tudo isso, a Abrasco teve um papel decisivo na constituição do SUS como formuladora e combatente pró-SUS, um agente político potente que conseguiu mobilizar a academia, conseguiu mobilizar a sociedade civil, conseguiu mobilizar governos subnacionais, articulando isso tudo na defesa de um sistema que verteu o SUS e também emprestando seus quadros para o desenho e implementação dessas políticas, como se vê na direção do ministério da Saúde, através da ministra, vários secretários, secretárias, que são membros da Abrasco, assim como em governos estaduais.

A Abrasco aglutina pessoas que implementam, pensam e ensinam política de saúde e temas correlatos à política de saúde. Mas além de governos estamos nos demais lugares onde isso se manifesta, como na academia, na sociedade civil, nos organismos internacionais, como a OPAS, hoje presidida por Jarbas Barbosa, outro abrasquiano.

Esse é um dos grandes momentos da história da entidade, tanto em termos de posicionamento como no sentido de ocupar espaços fundamentais da saúde pública e coletiva.

Recentemente, o governo e seu ministério da saúde lançaram o plano de ação Uma só saúde, que fala num aprofundamento da coordenação de iniciativas referentes a saúde humana, animal e vegetal, o que significa se tratar de uma política intersetorial. Como observa essa iniciativa, também preconizada na OMS através do conceito denominado One Health?

É um debate forte no mundo inteiro e ganhou muita força no curso da pandemia. Não é uma formulação necessariamente nova, mas ganhou muita força, no caso do Brasil, por causa da pandemia e também do desastre no Rio Grande do Sul. Há, portanto, a necessidade de uma compreensão mais sofisticada dos temas ambientais no nosso modelo de saúde. E aí eu afirmo que nós estamos devendo uma contribuição mais original sobre esse tema. Penso que tivemos uma contribuição muito decisiva internacionalmente, por exemplo, quando debatemos os determinantes sociais da saúde. Tivemos uma participação, inclusive, na própria formulação que a Organização Mundial da Saúde utiliza. É uma contribuição teórica brasileira de peso. E há uma contribuição também teórica muito relevante do Brasil também em termos de políticas de saúde sobre o debate de equidade.

Mas na questão ambiental estamos ainda devendo. O Brasil tem condições de incidir mais nos modelos apresentados e que ganham espaço na acumulação teórica internacional. De certa forma, o plano de ação do ministério é muito positivo e serve como apelo a todos os pensadores, pesquisadores e operadores de saúde. É hora de enriquecer a nossa tradição de saúde coletiva a partir de novas elaborações sobre a relação entre saúde e ambiente, assim como economia, tal como já foi feito com a questão social.

Portanto, é válido pensar que o Uma Só Saúde é uma atualização mais do que oportuna dos conceitos de saúde coletiva.

Sim, e penso que tal movimento tem exatamente essa pretensão, isto é, gerar a atualização dos modelos, uma vez que a dimensão ambiental estava subestimada. Nesse sentido, o plano de ação é positivo e representa a possibilidade de contribuirmos bem mais rumo a um modelo de saúde que precisa ser operacionalizado. Nós precisamos ter uma capacidade de não só representar a realidade, como também converter isso em políticas públicas.

Há uma convergência quanto à necessidade dessa dimensão estar melhor representada e conectar-se à inter-relação entre a espécie humana e as demais espécies. Mas nós precisamos debater mais, nos debruçar mais sobre esse modelo e apresentar a nossa contribuição. Em outras palavras, ainda há espaço para o melhoramento do modelo.

Sem meias palavras, esta elaboração que sustenta a ideia de One Health não se chocaria de forma inevitável com o próprio modelo de desenvolvimento econômico e mais diretamente o capitalismo, isto é, nosso modo de vida, produção e sociabilidade?

Sim, os modelos teóricos da saúde coletiva são profundamente críticos, porque, na verdade, a produção das condições de vida depende, obviamente, do modelo econômico adotado. E se os modelos são críticos, o grau de aprofundamento da abordagem crítica depende exatamente de nós termos à disposição as variáveis e componentes mais relevantes da vida social e coletiva.

Tais modelos analíticos são todos críticos ao modo de produção. E aqui preciso ser mais específico a respeito da minha compreensão. Penso que vivemos uma certa era do desencanto, que tem a ver com o seguinte: durante muito tempo, houve uma certa visão do modo de produção capitalista de que nós tínhamos uma racionalidade técnica que permitia a exploração da natureza de uma forma compatível com a nossa sobrevivência como espécie e a sobrevivência das outras espécies. O desencantamento vem quando se percebe que isso não funciona. Pelo menos uma parte dos próprios grandes atores desse modelo econômico percebem que já não funciona.

Na verdade, nós estamos esgotando a nossa capacidade de produção de bens e serviços em função do modelo de exploração dos bens naturais, da natureza, de forma não racional e inconsequente. Tal desencantamento, a partir da perda da certeza de que nós tínhamos uma racionalidade superior, que garantiria a nossa sobrevivência, onde a tecnologia sempre seria solução, inclusive para corrigir os erros do processo de exploração da natureza, está batendo no teto.

Essa é a grande discussão. E aí, portanto, vão aparecer novos modelos críticos da própria discussão sobre qual é o sentido, por exemplo, do próprio desenvolvimento econômico. Essas agendas globais, como a Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável da ONU,  já são uma reação crítica à lógica de desenvolvimento presente de forma absoluta nas últimas centenas de anos. Estamos num momento onde parte do planeta compreende que as estratégias de produção de bens e serviços e de consumo estão no limite que comprometerá a nossa própria sobrevivência e a sobrevivência de outras espécies de uma forma maciça.

Assim, os modelos teóricos para a saúde coletiva ou para a saúde pública precisam ser críticos porque, ainda que não consigam de imediato alterar esse curso, conseguem impactar na forma com que a política pública se realiza. E, progressivamente, a lógica de produção e consumo comece a se alterar.

Por exemplo, todo esse movimento de sustentabilidade tem muito a ver com a crítica aqui debatida e isso é positivo. Ainda que muitos achem insuficiente, que é preciso ir além da sustentabilidade, a dimensão política das nossas escolhas fica melhor exposta.

No plano global, tal conceito e seu fundo crítico também são preconizados pela OMS, que tenta criar uma maior unidade entre os países no enfrentamento a pandemias e promover políticas de equidade em saúde entre países de diferentes condições. Mas as articulações recentes têm sido emperradas por divergências entre países, especialmente os mais ricos, aparentemente preocupados em proteger interesses do seu grande capital do setor. Como analisa esta “paralisia” diante do que debatemos aqui e da sua própria afirmação de “tempos de desencanto”?

Durante a pandemia, e aí volto ao tema, houve um grande questionamento sobre a capacidade da OMS de ser instância de governança global em relação à saúde. Em parte, eu tenho acordo com isso, acho que há aspectos onde as agências multilaterais têm dificuldade de realizar a governança global, mas a questão da governança global é mais ampla. Ela envolve não apenas áreas da saúde, mas também a capacidade de os países buscarem um entendimento sobre questões de interesse mútuo. E esse espaço é comprometido há muito tempo por causa das potências maiores, que têm maior capacidade de mobilizar os demais países em função de seus interesses.

O Brasil sempre teve um papel muito estratégico porque é um país grande o bastante para mobilizar vários parceiros e funcionar como uma espécie de pêndulo em relação a vários temas que dividiam os países em relação a qualquer questão. A própria montagem, por exemplo, da Agenda 21 do Brasil foi fundamental, não só porque a RIO+20 se deu aqui, como uma instância fundadora da agenda, mas também para a capacidade política do Brasil de mobilizar os vários blocos que vão se constituindo em função de cada tema.

Sabemos que a governança global na saúde precisa ser revista porque, na verdade, a governança global em outros temas, como segurança, por exemplo, ou na própria composição das várias instâncias do sistema ONU, precisam também passar por revisão.

Portanto, a governança global está em xeque. Isso é fato. A questão de interesse dos países em proteger as suas indústrias nacionais, sobretudo quando se projetam para fora. Aqui, entramos na questão da China e seu procedimento, inicialmente como espaço de produção de bens para o Ocidente, mas que depois se converteu numa grande potência, inclusive científica e tecnológica.

Hoje, se nós olharmos a relevância da China na produção de conhecimento, é algo impressionante e, inclusive, faz parte de toda essa disputa que países do Ocidente têm feito em relação à China, a fim de induzir uma contenção do crescimento de sua relevância para o mundo. Coloca para o Brasil uma responsabilidade muito grande de buscar um papel de articulação global que possa ajudar, inclusive, a mediar muitos conflitos. Não esse, especificamente, porque os embates entre China e Estados Unidos e parte da Europa são muito consideráveis. Aqui, temos dois tipos de interesse. Um é o de preservar a renda das suas produções. O segundo é a captura do estoque disponível para garantir a segurança das populações nacionais. São esses os dois grandes polos de interesse: interesses econômicos e políticos. E qualquer instância da governança global sempre estará profundamente limitada para enfrentar esses dois fenômenos.

Qual era a forma de fazer isso? Porque a pandemia foi uma grande oportunidade, por sua extensão, intensidade, dimensão catastrófica, de produzir mais solidariedade entre os países. E isso não ocorreu. A emergência dos fundos para esse tipo de coisa acabou se mostrando muito insuficiente, o que está de novo colocado. Vamos ter de avançar muito na produção de mais entendimento para que a conjuntura se altere. A única forma que eu vejo de nós termos resultados bem-sucedidos é trabalhar os blocos de países que têm interesses comuns e possam, na verdade, eles próprios exercerem um papel de produção relevante de bens essenciais para a saúde.

E aí nós vamos ter problemas, porque, por exemplo, a Índia, que é um dos países fundamentais, no caso da pandemia, em função de seus interesses econômicos, acabou exportando mais vacinas e deixando uma parcela enorme de sua população muito desprotegida.

Portanto, é preciso construir blocos, mas os atores envolvidos neste bloco também têm uma capacidade de atuar para além dos interesses econômicos imediatos das suas grandes corporações. Porque, senão, nós vamos repetir por muitas vezes os equívocos cometidos na pandemia. Fala-se que numa catástrofe o legado imediato é o aprendizado. A ver. Podemos até ter um aprendizado tecnológico, mas não tivemos um aprendizado político e filosófico, fundamentais para a produção de um planeta mais solidário e menos desigual.

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