Saúde digital: Agora Tem… mais do mesmo?
Sem horizonte, governo apresenta programa para atenção especializada como se alegasse: “não há alternativa”. À digitalização do SUS, sugere a plataformização sem diálogo com o controle social. Haverá outro caminho que não o de pactuar com os andares de cima?
Publicado 18/06/2025 às 08:38

É chegada a metade de 2025, terceiro ano do governo Lula III. O exercício de uma análise conjuntural abrangente, atrelada à avaliação teórico-política crítica, mostra uma plêiade de desconcertos, negociatas pelo alto (alô Pé-de-Meia), ausência de projeto nacional claro e expectativas sem lastro popular – em paralelo, a busca por uma campanha publicitária que emplaque.
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No campo da saúde, estamos com os olhos voltados para “saúde digital”, em razão da nossa atuação na Câmara Técnica de Saúde Digital e Comunicação em Saúde, do Conselho Nacional de Saúde – e nos parece que o caráter sistêmico da chamada “transformação digital da saúde” (junto de todas as suas consequências para o SUS) segue confinado em uma lógica tecnocrática.
Para além das dificuldades em superar a fragmentação das informações em saúde, e apesar das boas intenções, as ações do governo caminham para atualização dos contratos em favor dos setores privados e das elites médicas, da expansão da precarização de trabalhadores da saúde e do recrudescimento da lógica médico-centrada e hospitalocêntrica, sem impor freios à expansão da mercadorização. Além, é claro, de uma condução das políticas de digitalização permeada por constrangimentos imperialistas, sem sinais de grandes resistências e enfrentamentos – tal como em outras esferas governamentais.
No caso das práticas em curso na Câmara Técnica, por exemplo, ao contrário da retirada da solicitação de análise de um convite para que o Brasil participe do Conselho de Investidores da HealthAI (entidade internacional privada voltada à padronização de mecanismos regulatórios na seara do que se chama de inteligência artificial), era dever da Secretaria de Informação de Saúde Digital (SEIDIGI) prestar informes sobre tal decisão, assim como voltar a pautar a discussão no espaço do “controle social”. Um think tank global não é mais indicado que o conjunto das contribuições críticas do CNS para essa discussão.
Mais recentemente, observamos debates, defesas e aplausos em resposta à Medida Provisória n.º 1.301/25 – aquela que estabelece o Programa Agora Tem Especialistas. Sem contraditar a premência da oferta de atenção especializada, ressaltamos que a MP altera a lei orgânica do SUS, em especial o Art. 47, e impacta a seara do “digital” quando comenta sobre o sistema de dados públicos a ser mantido pelo Ministério da Saúde (MS), contendo informações sobre o tempo médio de espera para a realização de consultas, procedimentos, exames e demais ações e serviços.
Nesse sentido, a competência para a regulamentação do sistema, especialmente quanto à interoperabilidade, é atribuída ao MS – que deve atuar segundo a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Até aí, okay. Mas, não podemos esquecer que toda a celeuma da interoperabilidade envolve a Rede Nacional de Dados em Saúde, estruturada durante o governo anterior, por meio de solução de armazenamento em nuvem estadunidense, e com vocação para laboratório de inovação aberta (leia-se, “privada”, nos moldes do texto de 2021 da Política Nacional de Informação e Informática em Saúde). Agora, viriam também as operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde, não ressalvados pela portaria.
A Estratégia de Saúde Digital 2020-2028 trouxe um direcionamento indubitável à privatização “por dentro do SUS” e, até o presente momento, se mantém neste governo. A primeira pergunta que fazemos então é: o que esperar desse fluxo de dados correndo nas mãos de mais players do setor privado que historicamente jogam contra a natureza pública e universalista do SUS? Mesmo porque, não se trata apenas de dados úteis ao mercado, mas do constrangimento ao desenho de políticas inteiras – que incluem também outros ministérios.
Ao contrário de uma preocupação “superada”, como disse o atual Ministro da Saúde Alexandre Padilha, a nós assusta que essa mecânica de fruição de créditos financeiros a serem compensados por meio de renúncia fiscal esteja fundamentalmente atrelada à participação do setor privado. Tal como nos importa que a “transformação digital da saúde” seja não só um meio de fortalecer o setor privado em detrimento do público, mas um caminho absolutamente estratégico na “plataformização” do Estado brasileiro.
Em “Doutrina do Choque” (2007), Naomi Klein analisa como políticas econômicas neoliberais são frequentemente impostas em países após grandes crises ou desastres, aproveitando a urgência e desorientação para implementar reformas que favorecem corporações e o “mercado livre”. Embora os principais exemplos utilizados por Klein sejam desastres de grande magnitude, a jornalista insiste que não é preciso algo como o furacão Katrina para que se abra uma janela de oportunidades para a “terapia do choque econômico”. Se a janela for a urgência do problema a ser resolvido, os “terapeutas” podem aproveitar a conjuntura favorável e presentear a população com seu cavalo(s) de Troia.
Pois, é difícil não fazer paralelos. O novo programa está sendo construído também mediante certa excepcionalidade. No começo do mês, o MS publicou uma Declaração de Situação de Urgência em Saúde Pública, formalizada “em razão da manutenção prolongada do tempo de espera para procedimentos especializados eletivos e seus impactos na assistência, na morbimortalidade, na equidade e na capacidade de resposta do Sistema Único de Saúde – SUS com vistas a combater potencial evolução para uma Emergência em Saúde Pública e desassistência em todo território nacional”. Tal ato garante o estabelecimento imediato de todas as medidas previstas na MP.
Detalhe: tudo sem diálogos consistentes com os movimentos sociais da saúde e o controle social, como se depreende de alegações gravadas na oportunidade da 367ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde, bem como em uma importante cobertura aqui realizada. Perguntas não faltam. Como crer que algo que começa dessa forma, nos seus passos seguintes terá o real e verdadeiro compromisso com a participação popular? Como crer que a construção histórica do SUS em seus princípios balizadores será defendida, ou melhor, fortalecida na condição de ponte para outro projeto de sociedade? O que representa o movimento sanitário neste momento tão delicado? Sabemos que se esse conjunto de medidas fosse tomado em um governo à direita, as reclamações, notas de repúdio etc. seriam garantidas. Mas em geral o que vimos foram manifestações condescendentes, com raras exceções.
Logicamente, ninguém questiona a necessidade de acesso da população à atenção especializada, drasticamente agravado pela pandemia de covid-19. Mas, não podemos mais avaliar o mérito desses “programas” apenas pelas intenções ou pelos ganhos imediatos e sazonais; isso não contenta mais o povo e não ilude mais os comprometidos com os SUS. Como sabemos, neste século, os maiores dirigentes do MS foram os sanitaristas alinhados ao lulismo, então é também urgente nos perguntarmos: o que foi feito de mudança estrutural nos mais de 15 anos de Ministério da Saúde para que (não) chegássemos ao atual cenário de urgência? Justificar que agora é preciso algo emergencial e que “não há alternativa” para tal a não ser um abraço amigo com o privado? Sinceramente, das duas uma: ou continuam enganados ou continuam enganando!
Entendendo que o que vem sendo chamado de saúde digital não compreende apenas aspectos tecnológicos forjados sob o manto da inovação empreendedora, quem deveria estar na linha de frente dos questionamentos? Sem espaço para condescendências: deveria estar na linha de frente quem entende que o SUS é uma grande conquista não integralmente realizada e sob ataque há décadas, e que sobretudo ele deve servir de esteio para as lutas por um outro Brasil, radicalmente igualitário. Está cada vez mais nítido que o sanitarismo alinhado ao governo não representa mais esse horizonte.
A indignação exige confronto de ideias e despersonalização das críticas. Ficar na zona de conforto burocratizada oferecendo recursos à iniciativa privada é rolar a bola de neve e fingir que não está ficando gigantesca. Ela está, aliás. 2026 vem logo ali e não vai adiantar dizer que tem sempre uma opção menos pior – as pessoas cansam, a militância passa a desconfiar e a fascistização rola solta. Esse silêncio e essa passividade só reforçam a lógica de pactos pelo alto e de acomodação que inviabilizam a prática da participação popular.
Desde a vitória eleitoral, perdemos a chance de levantar a voz, repactuar não com os andares de cima, mas com as classes subalternizadas, um outro projeto de país. Projeto com vistas a desafiar esse status quo que só serve a quem não absorveu que os arranjos do pós 2ª Guerra Mundial já não dão conta da crise sistêmica em que estamos.
O que se denomina de saúde digital pode ser uma ferramenta de transformação, mas não no jogo que vem sendo jogado – sem projeto e horizonte real de transformação da realidade brasileira. Se, ao que parece, o conserto liberal fez gerações crerem que o Estado de bem-estar era o ideal a se buscar, hoje tanto uma profunda autocrítica das posições teóricas e políticas, quanto o cenário mundial em que estamos, mostram que é preciso se reinventar.
A necessidade em torno dos procedimentos especializados deveria pautar a urgência da reinvenção do movimento sanitário – e não do aprofundamento da privatização e dos pactos já conhecidos. Então, com avidez pelas críticas de camaradas, esperamos também pelas manifestações de quem achou tudo isso sem sentido e pela aglutinação das pessoas dispostas ao chamado.
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