Saúde animal: ação já, para evitar desastre
Autora alerta para efeitos da atividade econômica desregulamentada sobre a vida selvagem – disseminação de novos vírus e sumiço de espécies podem ser só o começo. Vigilância mais firme da agropecuária e do comércio de animais nunca foram tão urgentes
Publicado 23/05/2025 às 10:43 - Atualizado 23/05/2025 às 17:15

Por ThinkGlobalHealth | Tradução: Redação
Em um novo livro, The Elephant in the Room: How to Stop Making Ourselves and Other Animals Sick [N. T.: “O Elefante na Sala: Como Parar de Nos Deixar e Deixar Outros Animais Doentes”, ainda sem tradução para o português], a jornalista científica britânica Liz Kalaugher se dedica a alertar para os danos que a atividade econômica humana, cada vez mais desregulada em nosso tempo, vem causando à vida selvagem. Trata-se de uma dinâmica mortal: a ganância humana catalisa a disseminação de vírus que dizimam espécies inteiras. Por sua vez, a circulação dessas doenças permite que os agentes patogênicos sofram alterações relevantes e passem a representar graves ameaças à vida – e, ironicamente, à economia – do mundo.
Um dos casos mais notórios é o da gripe aviária. A doença circulava apenas entre aves selvagens, causando sintomas relativamente leves. Ao infectar aves de granjas comerciais, que vivem estressadas e em péssimas condições, o agente causador passou por mudanças genéticas que o tornaram mais virulento. Fortalecido, volta a atingir duramente as aves selvagens, causando mortandade na casa dos milhões – e podendo resultar em uma nova pandemia, com graves consequências para a humanidade.
No entanto, há o que fazer para interromper esse ciclo, que prejudica todos os envolvidos. A entrevistada propõe: “Em um sentido mais amplo, governos […] podem regular o comércio de animais selvagens para impedir a disseminação de patógenos. Também podem melhorar a regulamentação da agropecuária, garantindo que fazendas tenham biossegurança e não criem ou espalhem doenças. Outra frente é combater as práticas que causam mudanças climáticas, como o desmatamento.”
A seguir, leia a entrevista da autora para o veículo norte-americano Think Global Health, traduzida para o português, em que ela “traz insights valiosos enquanto humanos, animais domésticos e a vida selvagem enfrentam surtos de doenças como Marburg, Ebola, mpox (varíola dos macacos) e gripe aviária” e explica “como a intensificação das mudanças climáticas e o aumento da industrialização podem acelerar o transbordamento de doenças zoonóticas e desencadear a próxima pandemia”.
Think Global Health: Na introdução do livro, você escreve que “o elefante na sala somos nós”. A humanidade influenciou o planeta tanto positiva quanto negativamente. Qual seria a principal lição que você espera que os leitores absorvam sobre seu impacto no planeta e na vida selvagem?
Kalaugher: Quase sem perceber, os humanos têm tido um impacto bastante negativo na saúde da vida selvagem. Nas últimas décadas, pesquisadores começaram a mapear o quão extenso tem sido esse efeito. É difícil: na natureza, quando os animais morrem, você pode não perceber imediatamente um pequeno declínio. Se os humanos não estiverem presentes, talvez você nem note. Nas regiões tropicais, por exemplo, os cadáveres dos animais podem se decompor e desaparecer rapidamente.
Só agora as pesquisas estão conseguindo registrar a dimensão do dano, especialmente considerando nosso modelo de criação e comercialização de animais ao redor do mundo, além das mudanças climáticas e da destruição de habitats. Nossas práticas alteraram ecossistemas e forçaram os animais a viverem mais próximos uns dos outros, causando estresse.
Este livro usa uma lente histórica para transmitir alertas sobre vírus zoonóticos modernos — aqueles que passam entre espécies — e os riscos associados a esses eventos de transbordamento (“spillover”). De todos os casos que você identificou, qual oferece a lição mais útil e por quê?
O mais imediatamente relevante é o vírus da gripe aviária. Ele existe há muito tempo, mas não causava grandes problemas para as aves selvagens. Era apenas uma doença intestinal que as deixava um pouco doentes, mas elas se recuperavam. Depois, o vírus chegou a granjas avícolas. Essas aves têm menos diversidade genética que as selvagens e vivem estressadas devido às condições de confinamento. Isso permitiu que o vírus se espalhasse rapidamente entre os frangos.
Os vírus da gripe podem mutar muito rápido. Eles fazem algo chamado reassortment (rearranjo), que permite que misturem e combinem seus componentes se as aves forem infectadas por cepas ligeiramente diferentes. Isso fez o vírus evoluir para uma forma altamente patogênica da gripe aviária, que depois se espalhou de volta para aves selvagens e pelo mundo.
Além disso, esse surto conseguiu se transmitir para vacas nos EUA. Depois, de vacas para fazendeiros, e até para alguns gatos de fazenda.
Uma vacina para humanos contra essa cepa está em desenvolvimento, mas a gripe aviária pode se tornar um grande problema se o vírus se adaptar para transmissão entre pessoas.
Em abril, negociadores internacionais finalizaram o texto do Acordo das Pandemias da Organização Mundial da Saúde (OMS), e a Assembleia Mundial da Saúde votará o acordo em maio. O conceito de One Health permeia este livro e é um pilar do acordo. Por que você acha importante implementar essa abordagem abrangente em políticas internacionais?
One Health é crucial para prevenir pandemias, porque só protegendo habitats e analisando a interação entre doenças da vida selvagem e aquelas que saltam para humanos podemos evitar que novas doenças nos afetem.
É promissor que o acordo inclua One Health e, esperamos, seja o começo de um trabalho melhor na prevenção de pandemias — o que pode salvar não só vidas, mas também economizar dinheiro. O custo anual para prevenir pandemias é de cerca de US$20 bilhões globalmente. Isso é um décimo da produtividade econômica perdida anualmente para doenças virais desde a gripe de 1918, que saltou de animais.
Alguns casos que você mencionou mostram os efeitos negativos da interferência humana. Você pode explicar brevemente o que aconteceu com o tigre-da-tasmânia?
O último tigre-da-tasmânia conhecido morreu em setembro de 1936 em um zoológico em Hobart, Tasmânia. Alguns acreditam que ainda existam hoje e alegam tê-los avistado, mas nada foi confirmado.
Fazendeiros de ovelhas perseguiram os tigres-da-tasmânia porque achavam que os marsupiais estavam matando seus rebanhos, mas, analisando a anatomia de suas mandíbulas, os verdadeiros culpados provavelmente eram cães selvagens.
A Companhia de Van Diemen’s Land e depois o governo da Tasmânia colocaram uma recompensa pela cabeça dos tigres. Os registros mostram que eles de repente ficaram mais fáceis de capturar — até que não restou nenhum.
Uma doença começou a se espalhar entre os tigres, deixando-os tão doentes que explicava por que foram caçados com facilidade. Surtos também atingiram zoológicos — o que tratadores pensavam ser feridas de brigas era, na verdade, uma doença que deixava sua pele ensanguentada. Tudo isso levou, tragicamente, à sua extinção.
Se líderes tivessem percebido a tempo, poderiam ter criado um programa de reprodução em cativeiro e salvado a espécie, mas isso não aconteceu.
O livro também destaca um grande sucesso da intervenção humana: o surto de peste bovina na África. O que aconteceu lá?
A peste bovina (ou rinderpest) existe desde a antiguidade, e a hipótese atual é que o vírus surgiu na Ásia Central e se espalhou através de exércitos.
No final do século XIX, soldados italianos levaram a doença para a África Oriental ao transportar gado para a Eritreia, tanto para transportar armamentos quanto para servir de alimento. Como a doença não existia naquela região antes, o sistema imunológico dos animais locais não estava adaptado, e o vírus se espalhou rapidamente.
A peste bovina matou enormes quantidades de gado, o que significou que pessoas que dependiam desses animais para subsistência também morreram, e as perdas ainda desestruturaram sociedades inteiras.
A África do Sul iniciou esforços de erradicação com medidas como abates, que por si só foram disruptivos, mas a doença permaneceu endêmica na vida selvagem e no gado da África Oriental. Autoridades criaram múltiplos programas para alcançar a erradicação total. Duas vezes acharam que estavam perto do sucesso, mas quando estavam para celebrar, o veterinário britânico Richard Kock redescobriu o vírus em animais selvagens. Felizmente, decidiram continuar o financiamento. Em junho de 2011, conseguiram erradicar o vírus completamente do planeta.
É apenas o segundo vírus, depois da varíola, e o primeiro vírus de vida selvagem a ser erradicado.
Mas a eliminação da peste bovina pode ter causado um problema com outra doença, a peste dos pequenos ruminantes (PPR), uma infecção relacionada que afeta ovelhas e cabras e se espalha pela África. Quando esses animais pegavam peste bovina, ganhavam imunidade contra a PPR. Agora, a PPR chegou até a China. Na Mongólia, atacou o antílope saiga, uma espécie ameaçada. Isso é algo que precisamos monitorar agora.
O que esses exemplos mostram sobre a dualidade da interferência humana na natureza, especialmente durante surtos?
Os humanos podem ser uma força para o bem ou para o mal.
Em ambos os casos, nós provavelmente começamos o problema. Mas, com o tigre-da-tasmânia, tivemos a chance de salvar a espécie e a perdemos. Com a peste bovina, conseguimos erradicar o vírus, mas foi necessário um trabalho imenso e um custo altíssimo.
Prevenção é melhor que cura, e é muito mais fácil se não causarmos os problemas em primeiro lugar.
O livro também discute soluções possíveis e mudanças para nos proteger e proteger a vida selvagem. Quais você acha que são os primeiros passos mais viáveis?
No curto prazo, as soluções mais viáveis são individuais, como adotar dietas baseadas em plantas para reduzir a pressão sobre habitats e evitar produtos da pecuária. Também optar por viagens sustentáveis, como usar trens em vez de aviões e bicicletas ou caminhadas para trajetos curtos.
Outro passo, já que há pouca conscientização, é falar sobre os danos que podem ser evitados por uma abordagem de One Health, especialmente pressionando representantes governamentais para mostrar a demanda por políticas que melhorem a saúde da vida selvagem e nos protejam.
Em um sentido mais amplo, governos que acolherem essa demanda podem regular o comércio de animais selvagens para impedir a disseminação de patógenos. Também podem melhorar a regulamentação da agropecuária, garantindo que fazendas tenham biossegurança e não criem ou espalhem doenças. Outra frente é combater as práticas que causam mudanças climáticas, como o desmatamento.Lembre-se: “Doenças são como ervas daninhas: prosperam em ambientes perturbados”. Sempre que um ecossistema é alterado, maior a chance de uma doença emergir.
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