RS: Por que demora a reconstrução do SUS pós-enchentes?
Quinze meses após início das inundações, cidades gaúchas ainda têm dificuldade em reerguer equipamentos e filas estão enormes. Dogmas neoliberais de Eduardo Leite atrasam o processo. Mas há ensinamentos importantes, como a criação de unidades resilientes
Publicado 28/07/2025 às 08:44 - Atualizado 28/07/2025 às 08:49

As enchentes que mataram 184 pessoas no Rio Grande do Sul ainda contam 25 desaparecidos e deixaram cerca de 735 mil desalojados. O total de 2,4 milhões de afetados não só ficarão para sempre na memória coletiva como ainda afetam o cotidiano do Rio Grande do Sul.
É um capítulo brutal do “novo ciclo climático que veio para ficar e serve de exemplo para o Brasil todo”, como resumiu Diego Espíndola, diretor executivo do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Rio Grande do Sul – COSEMS/RS, ao Outra Saúde.
No entanto, sua mensagem ainda parece longe de assimilação pela classe política brasileira. Em âmbito estadual, a reconstrução caminha lentamente. Nacionalmente, a aprovação do PL da Devastação e possivelmente outros projetos de avanço do capital sobre territórios ainda não explorados economicamente parecem colocar o país numa rota suicida.
“O governo estadual não apresentou planos consistentes nem durante a pandemia nem após as enchentes. O ‘Plano Rio Grande’, proposto por entidades da sociedade civil para gerir recursos de reconstrução – inclusive na saúde – está parado. Enquanto isso, só um terço das 467 estruturas de saúde afetadas foi recuperado”, relata Rosângela Dornelles, conselheira e presidente da Comissão de Fiscalização do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul.
Médica do SUS em Canoas, uma das cidades mais destruídas em 2024 e importante polo econômico metropolitano, Dornelles traz um panorama social dramático. Foi causado, em boa parte, pela letargia de Eduardo Leite, um governador que, a despeito de ter falado em “Plano Marshall” enquanto a tragédia estava à flor da pele, não abre mão dos dogmas neoliberais na gestão do Estado.
A lentidão de Eduardo Leite
Como denunciado por Fernando Ritter, secretário de saúde de Porto Alegre, cidade comandada pelo aliado Sebastião Melo, Leite deixou de aplicar R$ 1,2 bilhão do piso mínimo de saúde. Ainda segundo Ritter, repassou serviços de média e alta complexidade para o município “sem estudo técnico aprofundado” e de forma “quase amadora”.
“O governo alega falta de recursos e dívidas acumuladas, mas contraditoriamente vemos investimentos em outras áreas, como carreiras públicas. Enquanto isso, a saúde sofre com a falta de leitos, equipamentos e profissionais. O governo federal tem feito sua parte: só em 2025, já repassou R$ 4,3 bilhões ao estado via fundo MAC (Média e Alta Complexidade), mas o governo estadual não complementa esse esforço”, explicou Rosângela Dornelles.
A crítica de que Leite prioriza o setor privado na reconstrução do estado é colocada por parlamentares e setores de esquerda gaúcha desde o início. No que se refere ao SUS, os reflexos são duramente sentidos pela população. Segundo Dornelles, há uma sobrecarga que beira o insuportável no sistema público de saúde, tanto para profissionais como usuários.
“Trabalho diretamente em uma emergência, então vejo o caos diariamente. O perfil epidemiológico mudou: doenças controladas voltaram com força, agravadas pelo negacionismo vacinal. Pacientes esperam horas por atendimento, e muitos desistem – alguns morrem antes de conseguir uma consulta com especialistas. A demora para cirurgias eletivas é absurda”, sintetiza.
“Os municípios mais afetados pelas enchentes – como Canoas e Eldorado do Sul – perderam unidades de saúde essenciais. Um exemplo dramático foi o Hospital de Pronto-Socorro (HPS) de Canoas, que atendia toda a região dos Vales do Sinos, do Caí e do Paranhana. Quando uma estrutura dessa magnitude desaparece, o impacto é sistêmico: as filas, que já eram longas desde a pandemia, explodiram”, completa.
Para piorar, o estado lida como peso da reforma do IPE Saúde, o plano de saúde de funcionários públicos, cujos reajustes nos preços fizeram parte dos usuários migrarem para o SUS. “Uma falência não comunicada”, segundo Fernando Ritter.
Membro também da Associação Vida e Justiça, que luta por reparações a familiares de vítimas de covid e portadores de suas sequelas, Rosângela Dornelles destaca que o estado se deparou com uma nova hecatombe sobre seu sistema de saúde sem terminar de superar o peso da anterior, a pandemia.
Diante da ação de Leite, “os municípios acabam investindo além do mínimo constitucional na média e alta complexidade, mas isso esvazia a Atenção Básica – o que só piora as filas e a qualidade do atendimento”.
Reconstrução até 2026
Apesar de tudo, a reconstrução dos equipamentos de saúde continua, também auxiliada pelo PAC, que em seu eixo de saúde prevê a construção de 800 novas UBS e reforma de outras milhares pelo país.
“Acredito que até o final do ano que vem teremos 100% das unidades de saúde do estado entregues. Muitas estão no PAC e outras também estão no projeto de reconstrução”, previu Diego Espíndola.
Aqui, o RS aparece como experiência fundamental para a criação de unidades resilientes, conceito recém adotado pelos governos e gestores. E, mais uma vez, a ação estatal se mostra fundamental para a adaptação do SUS ao novo ciclo climático referido por Espíndola.
“Apresentamos pesquisa de quanto as UBS consomem de energia para adotar uma matriz fotovoltaica, o que já conseguimos em 80% dos hospitais do estado. Tais projetos também podem ser financiados pelo Banrisul e nós queremos que esse projeto avance nas UBS, farmácias populares, CAPS e unidades de SAMU. São 15 mil unidades de saúde no estado e temos a chance de fazer essa ressignificação”, afirmou o diretor do Cosems-RS.
Para Rosângela Dornelles, os pactos políticos precisam ser reforçados. Resta saber se o apego ideológico a um modelo econômico em xeque por todo o mundo será deixado de lado pelo governador, que tenta se posicionar no cenário nacional sob o discurso de “fim da polarização”.
“Além das sequelas das enchentes, enfrentamos temperaturas extremas, surtos de doenças e desemprego – tudo isso pressiona o SUS. Enquanto o estado não assumir sua responsabilidade, continuaremos vendo usuários morrerem em filas e profissionais de saúde esgotados. A dignidade da população gaúcha está em jogo”, lamentou Rosângela Dornelles.
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