Quando o MST ensinou que Democracia é Saúde
Movimento completa 40 anos e seu nascimento guarda paralelos com a criação do SUS. Ao se organizar, camponeses se depararam com as injustiças da saúde privada. Mas também com a centralidade do cuidado construído coletivamente – marca das mulheres nessa luta
Publicado 23/10/2025 às 11:52 - Atualizado 23/10/2025 às 11:57

Título original: Saúde é Democracia: mulheres campesinas e MST há 40 anos na luta pela saúde e pela terra
Em celebração aos 40 anos da ocupação da Fazenda Annoni, marco importante da luta pela terra no Brasil, acontecerá uma roda de conversa sobre a relação entre a luta pela terra e a defesa do SUS. A atividade integrará a Feira Estadual da Reforma Agrária: “MST 40 anos”, que vai acontecer nos dias 24 e 25 de outubro, no Assentamento 16 de março, antiga Fazenda Annoni, atualmente município de Pontão, estado do Rio Grande do Sul. O convite para a roda de conversa apresenta aspectos importantes da concepção de saúde para o MST, suas lutas e perspectivas. Diz o convite:
Ao trazer os 40 anos da ocupação da Annoni como marco, reforçamos que a luta pela terra e a luta pela saúde são dimensões inseparáveis do projeto de Reforma Agrária Popular. O enfoque na saúde popular, vinculada à trajetória do MST, afirma que o cuidado coletivo se construiu desde os acampamentos precários até a conquista de práticas próprias de promoção da saúde e da defesa do SUS.
A saúde entrou na agenda do MST em duas dimensões: de um lado, a experiência com o empobrecimento decorrente de gastos com médicos e hospitais; de outro, a valorização da prevenção, como um conjunto de ações denominadas de saúde comunitária ou saúde popular. O Hospital dos Trabalhadores de Ronda Alta/RS foi uma das respostas às cobranças pelo atendimento no período anterior ao SUS. Nessa cidade, havia um terreno cercado para reunir o gado que era “recolhido” das propriedades rurais como forma de pagamento. Ou seja, frente à necessidade de um procedimento cirúrgico, era acertado o valor a ser pago e, na impossibilidade de pagamento, o bem – boi ou vaca – era usado. Um veículo de carga pequeno entrava na propriedade e depositava o pagamento em um terreno urbano. Não precisava muito tempo para que um caminhão maior carregasse tudo para o destino final: a fazenda do cobrador.
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Sem um sistema público de saúde e sem conseguir acessar cuidados médicos/hospitalares, as pessoas morriam por causas evitáveis. Comprar o acesso à saúde gerava o empobrecimento das famílias. O parto em casa, por exemplo, sem assistência adequada e sem garantia de acesso a serviços hospitalares determinava morte de mulheres e crianças. Como alternativa ao pagamento, as internações aconteciam nos hospitais de caridade, na condição de não contribuintes da previdência; ou seja, como indigentes.
Ao mesmo tempo, com os acampamentos, havia a necessidade de enfrentar a falta de saneamento e doenças decorrentes da falta de água e de alimento adequado. Além das famílias precisarem cuidar e manejar, per ipsum, os diferentes tipos de adoecimento. Saúde, que não estava na pauta inicial das famílias Sem Terra, surge a partir dessas necessidades da realidade. O cuidado surge desde uma perspectiva dialógica, construída coletivamente, mobilizando sempre pessoas acampadas com diferentes habilidades e conhecimentos ancestrais no cuidado da saúde e das pessoas. A proposição dessas ações de saúde se configurou em um processo político de mobilização da consciência crítico-reflexiva no interior do MST, e foi mediado por diferentes atores.
A discussão da saúde e a ampliação da luta para além do atendimento médico-hospitalar deve-se a participação da mulher, é a marca do feminino na luta. O atendimento – especialmente as cobranças em hospitais – era uma pauta de mobilização dos homens, mas saúde com essa compreensão integrada dos cuidados populares e do direito ao acesso ao sistema de serviços de saúde foi uma demanda feminina.
Predominou, nas pautas do MST, a ideia da saúde focada no acesso ao hospital. Nesse contexto, a mulher, que historicamente foi responsável pelo cuidado dos filhos, que lidou com os benzimentos e fez uso dos fitoterápicos, estava muito mais preparada para a organização das reivindicações em torno da saúde. Foi a experiência feminina na ampliação do cuidado que carregou a pauta da saúde na história do movimento social.
O movimento das Margaridas, que foi o movimento autônomo de mulheres mais antigo do RS e provavelmente do Brasil, nasceu um pouco antes do SUS. Para o movimento de mulheres campesinas, “é impossível pensar a vida sem saúde”, para elas, as duas – vida e saúde – não se ‘enquadram’ na lógica neoliberal da venda e do lucro. A partilha de entendimento circula nos encontros, debates, mobilizações e lutas das trabalhadoras rurais ao ecoarem “saúde não é negócio, é um direito nosso”. Também por isso, o tema da saúde é valorizado; palavras de ordem e cartazes das mulheres campesinas unem-se às proposições do MST que contribuem para reforma sanitária brasileira.
O movimento das mulheres campesinas marca a luta das mulheres por igualdade de direitos, especialmente à aposentadoria rural e ao acesso a incentivos para produção agrícola. Em relação à aposentadoria, a luta, há 40 anos, era pela aposentadoria integral para homens e mulheres: naquela época, homens do campo recebiam meio salário e mulheres trabalhadoras rurais não eram reconhecidas como trabalhadoras e, portanto, não recebiam aposentadoria.
No movimento de mulheres, partia-se de pautas específicas: direitos previdenciários, atenção integral e gratuita à saúde da mulher ou simplesmente atendimento gratuito à saúde. Essa perspectiva marcou a luta das Margaridas, que teve início, no RS, em 1983. O movimento se manteve até a conquista de vários direitos e se desfez no início dos anos 90.
O direito ao acesso à terra era também uma dessas frentes. O dia 17 de outubro marcou 40 anos da primeira grande mobilização: o movimento desafiava o machismo, pois à época as mulheres não podiam ser sindicalizadas, a não ser que fossem viúvas. Margarida é flor, semente, vida e homenagem à Margarida Alves, líder camponesa e diretora sindical assassinada em 1983, na Paraíba.
Saúde mental no MST e o sofrimento como sintoma do capitalismo
Embora a saúde mental não tenha destaque nas pautas do MST, a manutenção de um projeto de vida com uma possibilidade de viver melhor e as assembleias e decisões mais coletivas dos acampamentos contribuíam para o pertencimento a um coletivo e a um projeto comum. Ao mesmo tempo, os acampamentos eram (e ainda são) lugares de medo e tensão. Diversas mulheres referem “problemas de nervos” e dificuldade para dormir pela lembrança do barulho dos aviões e helicópteros que amedrontavam os acampados. Muitas ainda seguem medicadas para suportar as marcas dessas violências.
Atualmente, é provável que muitos problemas no campo da saúde mental estejam relacionados ao uso de agrotóxicos. Há, dentro do MST, uma interpretação de que saúde mental é incompatível com um sistema social excludente, xenofóbico, machista, violento e explorador. A falta de saúde mental é um sintoma da vida no capitalismo, sua abordagem precisa incluir a luta de classes.
Dessa forma, mesmo com os grandes avanços da ciência e do SUS, a medicina tende a reduzir-se a classificar, escolher um código de doença e medicalizar, para aceitar o mundo como ele está. O MST incentiva a produção agroecológica de alimentos, a organização e convivência em coletivos, núcleos, cooperativas e comunidades. Prioriza a formação política e técnica, a valorização de saberes ancestrais, a preservação da cultura. Enfrenta e contradiz a hegemonia do pensamento capitalista e, ao fazer isso, anuncia o preludio de outra forma de viver e de cuidar.
Passados 40 anos, o direito à saúde e a democracia seguem como uma só luta. A pandemia, as enchentes, a ameaça a vida no planeta, o avanço do agronegócio, o domínio da falsa informação, as mortes determinadas pela forma de produção com veneno exigem a articulação entre o direito à assistência à saúde e o direito à vida.
O convite para a reflexão a respeito do SUS em sua relação com o MST, nos convida a
…celebrar as conquistas de 40 anos de lutas do MST; valorizar a contribuição do MST na luta pela saúde no Brasil; reafirmar a saúde como direito e prática coletiva, articulada à reforma agrária popular; fortalecer o diálogo entre saberes populares e práticas acadêmicas na defesa do SUS; mapear a trajetória da saúde popular nas lutas do MST, da ocupação da Annoni à atualidade; valorizar experiências de cuidado comunitário e práticas populares de saúde; projetar desafios futuros para a organização popular em saúde; reafirmar a contribuição do MST na construção da saúde popular e na defesa do SUS como patrimônio do povo brasileiro.
Democracia é Saúde, marca da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, segue mobilizando as discussões que o MST propõe para celebrar 40 anos: “Saúde é a capacidade de lutar contra tudo que nos oprime”.
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