Quando nascer e parir viram mercadoria

Socióloga e parteira examina o trabalho envolvido no parto e como a lógica da produtividade invadiu maternidades, multiplicando cesáreas. Vê o fetichismo em torno das tecnologias do parto – e como cria-se a ideia de risco para vender procedimentos

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Anna Fielder em entrevista a Ana Vračar, no People’s Health Dispatch | Tradução: Gabriela Leite

Sob a influência do capitalismo, todos os aspectos da vida humana – incluindo o parto – são moldados por sua lógica. No entanto, em comparação com outras áreas da saúde e cuidados, o impacto do capitalismo nas práticas de parto permanece pouco explorado. Nesta entrevista, a socióloga e ex-parteira Anna Fielder, autora britânica de Going Into Labour [“Em trabalho de parto”, em tradução livre], examina como o capitalismo influencia o trabalho de parto e o nascimento, e como esses espaços também se tornaram locais de resistência.

O que a levou a escrever este livro?

Acho que isso começou há muito tempo. Minha mãe era parteira, então cresci em uma família onde o parto sempre fez parte da vida e das conversas. Mais tarde, me tornei parteira na Inglaterra e, enquanto me capacitava e trabalhava na área, me envolvi com a política da obstetrícia.

Percebi que já havia um forte foco, nas discussões sobre cuidados no parto, nos efeitos do patriarcado – que eram e continuam sendo importantes. Com o tempo, especialmente nas últimas décadas, houve um crescente reconhecimento de que o racismo sistêmico está profundamente enraizado no que chamamos de serviços de maternidade. E digo “chamados” serviços de maternidade porque nem todos que dão à luz se identificam como mães, então o termo em si carrega suposições que não refletem a experiência de todos. Além disso, muitas vezes questiono se esses serviços realmente apoiam as mães da maneira que deveriam.

Há trabalhos incríveis sendo feitos hoje, por exemplo, por estudiosos Maori em Aotearoa, Nova Zelândia, onde moro atualmente, e por povos indígenas ao redor do mundo – sobre o parto em comunidades indígenas. Também há pesquisas importantes sobre como a cis-heteronormatividade molda os serviços de saúde, incluindo os chamados cuidados de maternidade.

Mas o que frequentemente falta nas discussões sobre os chamados serviços de maternidade é a referência ao capitalismo. Embora às vezes falemos sobre a mercantilização do parto ou a influência do lucro na saúde, raramente há uma análise direta do capitalismo em relação ao parto. O capitalismo não é apenas uma influência externa; é um sistema vasto e em expansão – uma totalidade, como Marx descreveu – dentro do qual as pessoas vivem, trabalham e também dão à luz. E, no entanto, quando examinei a literatura sobre parto, o capitalismo mal era mencionado. Nos espaços de política de parto em que estava envolvida, a palavra capitalismo quase nunca era usada, e Marx era referenciado ainda menos.

Ao mesmo tempo, em círculos políticos de esquerda, nos quais estive envolvida desde o final da adolescência e início dos 20 anos, havia muitas discussões sobre trabalho – mas nunca sobre o trabalho de parto. O trabalho sempre era enquadrado em um sentido diferente, embora incrivelmente importante – através da lente do trabalho assalariado, da produção industrial e da exploração econômica. Parecia-me que esses dois mundos – a política do parto e o pensamento marxista – nunca se encontravam.

Mas, quando analisei os problemas no parto e nos serviços de maternidade, percebi que não podemos entender completamente essas questões sem abordar o capitalismo. Muitos dos esforços para melhorar os cuidados de maternidade, erradicar práticas coercitivas e tornar o parto mais seguro parecem dolorosamente lentos para surtir efeito, além de muito desafiadores. Parte do motivo, sinto, é que precisamos realmente enfrentar o papel que o capitalismo desempenha na criação dessas condições.

Este projeto começou como uma tese, mas depois se tornou um livro, porque estava determinada a unir esses dois mundos. Queria entender e articular as múltiplas maneiras pelas quais o capitalismo molda os problemas que ainda assombram os chamados serviços de maternidade hoje.

Então, na sua opinião, como o capitalismo molda as práticas contemporâneas de parto?

De muitas maneiras, e varia de lugar para lugar. Poucos serviços de saúde hoje, sejam empresas comerciais, serviços públicos ou no setor sem fins lucrativos, estão imunes a pressões do tipo capitalista, como manter custos o mais baixo possível enquanto a “produtividade” da força de trabalho é levada ao máximo. Isso pode realmente cobrar um preço dos trabalhadores da saúde, que são incrivelmente comprometidos com o bem-estar dos pacientes e já trabalham além do necessário para fornecer cuidados. Também é importante lembrar que mesmo os serviços de saúde do setor público são abastecidos com produtos farmacêuticos e equipamentos produzidos para gerar lucro. Tais pressões influenciam o parto de diferentes maneiras.

Uma dinâmica que quero destacar é discutida em um artigo de 2016 na The Lancet pela professora Suellen Miller e colegas, intitulado Beyond Too Little, Too Late and Too Much, Too Soon [“Para além da negligência e do excesso nos cuidados do parto”, em tradução livre]. Seu argumento destaca um desequilíbrio nos cuidados maternos: algumas pessoas recebem muito pouco, muito tarde, enquanto outras são submetidas a muito, muito cedo.

“Muito pouco, muito tarde” refere-se à falta de cuidados de maternidade bem estruturados – cuidados que são negados, indisponíveis ou não baseados em evidências. Isso leva a altas taxas de mortalidade e morbidade materna. Está particularmente associado ao Sul Global, mas também existe em países mais ricos. Por exemplo, também há desertos de maternidade nos EUA.

Por outro lado, “muito, muito cedo” está associado ao Norte Global – embora também seja aparente em países de renda média e em áreas do Sul Global de forma mais geral. Se refere ao uso excessivo de intervenções médicas que não são medicamente necessárias – por exemplo, cesarianas desnecessárias ou induções de parto que não melhoram os resultados de saúde. Essas intervenções podem causar danos, levando a complicações e, às vezes, a riscos de saúde a longo prazo.

Essa justaposição de extremos – algumas pessoas sendo negadas cuidados essenciais, enquanto outras são submetidas a intervenções excessivas e às vezes prejudiciais – revela desigualdades sistêmicas. Cheguei à conclusão – e é aqui que eu ampliaria o argumento de Miller e colegas – que tais desigualdades são ativamente geradas e exacerbadas pelo capitalismo. Erros acontecem nos cuidados do parto, e pode sempre haver momentos em que as intervenções são necessárias mas deixam de acontecer por diferentes razões; ou quando são usadas sem real necessidade. Esses problemas precisam ser abordados, mas o que está sendo enfatizado aqui não são tanto os erros individuais: é a lógica estrutural que impulsiona os padrões de uso. Isso não se trata simplesmente de decisões individuais, mas de forças estruturais que moldam os cuidados na gravidez e no parto.

O quadro “muito pouco e muito tarde” / “muito e muito cedo” é, na minha visão, um reflexo de como o capitalismo influencia e molda os cuidados de maternidade. Por um lado, os recursos são retidos em alguns contextos (especialmente quando não são considerados custo-efetivos ou quando não geram lucro). Por outro, são expandidos especialmente onde o lucro pode ser obtido. Não é tão simples assim – há outras dinâmicas em operação –, mas há um perigo muito real no capitalismo de que o lucro, e não as pessoas, seja priorizado.

O capitalismo também é moldado por dinâmicas coloniais e raciais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) relata que, em 2020, quase 95% das mortes maternas associadas à gravidez ocorreram em países classificados como de baixa e média-baixa renda. Nos EUA, a taxa de mortalidade materna de mulheres negras é cerca de três vezes maior que a de mulheres brancas. Outros países têm desigualdades devastadoras semelhantes, há coisas parecidas acontecendo em todo o mundo.

A fetichização da tecnologia no parto

Um dos capítulos do seu livro explora o conceito de fetichismo da mercadoria e como ele se aplica à tecnologia médica no parto. Você poderia explicar como esse conceito opera no contexto do parto? Como o aumento da dependência da tecnologia médica moldou o parto nas últimas décadas?

No capítulo, exploro o conceito de fetichismo de diferentes maneiras. É um termo com múltiplas interpretações.

De uma perspectiva marxista, o fetichismo da mercadoria refere-se a como um objeto – uma mercadoria – aparece como algo que tem poderes místicos e valor em si mesmo, porque as relações sociais através das quais foi criado não são vistas. O trabalho das muitas pessoas ao redor do mundo que participaram de sua produção – que, por assim dizer, a trouxeram à vida – são tornadas invisíveis. Intimamente relacionado a isso está a ideia de que certos objetos são imbuídos de poderes quase mágicos que não possuem inerentemente. Também há interpretações psicanalíticas do fetichismo, mas, para os propósitos do parto, me concentro em como esses conceitos se aplicam à tecnologia médica.

Uma suposição predominante na sociedade capitalista é que a tecnologia eliminará a incerteza no parto, tornando-o inerentemente mais seguro e previsível. Essa é uma forma de fetichismo tecnológico – a crença de que a mera presença da tecnologia médica automaticamente melhora os resultados, que ela tem esse tipo de poder mágico de tornar o parto seguro para nós.

Para ser clara, o uso correto de algumas tecnologias pode salvar vidas. Uma cesariana executada no momento correto, por exemplo, pode ser crucial. Sou incrivelmente grata por ter acesso seguro à cirurgia cesariana quando necessário. Mas também estamos testemunhando um aumento no uso rotineiro de tecnologias médicas no parto, incluindo cesarianas realizadas em casos em que não são medicamente necessárias e podem nem mesmo ser desejadas pela pessoa que está dando à luz. 

A OMS observa que os especialistas costumavam sugerir uma taxa ideal de cesariana em torno de 10-15%. Em muitos países agora, bem mais de 40% de todos os nascimentos – às vezes mais de 50% [N. da T.: é o caso do Brasil, que teve taxa de 59,7% em 2023] – acontecem por cesariana. Isso levanta sérias preocupações. Quando uma grande cirurgia abdominal é realizada sem necessidade, expõe o paciente a riscos como infecção da ferida, complicações em futuras gestações e potencial ruptura uterina durante um futuro trabalho de parto que poderia ser evitado.

Novamente, para ser clara, não me oponho à tecnologia no parto. O capitalismo também não tem monopólio sobre as tecnologias de parto – as pessoas sempre usaram ferramentas, remédios herbais, bancos de parto e outros auxílios que podem muito bem ser considerados tecnologias – para apoiar a gravidez e o parto. Mas o que me interessa é como muitas tecnologias obstétricas hoje foram imbuídas desse status quase místico, como se elas sozinhas pudessem resolver os desafios do parto.

Isso nos leva de volta à compreensão marxista do fetichismo. Quais são as relações sociais sob o capitalismo que deram às tecnologias médicas esse status elevado, onde seu uso é frequentemente assumido como inerentemente superior? É simplesmente porque as pessoas que empurram bebês para fora de seus próprios corpos geram menos lucro para as multinacionais de tecnologia médica e/ou farmacêuticas? Certamente há dinheiro a ser ganho à medida que esses dispositivos, tecnologias e equipamentos são produzidos, vendidos e usados. As políticas das empresas de seguros de saúde – incluindo as taxas de pagamento para diferentes procedimentos – também podem influenciar nas taxas de cesáreas. Mas há mais do que isso, não apenas – como é comumente assumido – o fato de que algumas mulheres realmente querem ter partos cirúrgicos, embora esse seja o caso.

Deixe-me dar um exemplo do que quero dizer, e há muitos outros ao redor do mundo. Um estudo de 2018 realizado em Deli, Índia, observou que há uma taxa notavelmente maior de cesáreas em hospitais privados, em comparação com os públicos. Ele sugeriu que interesses comerciais influenciam indiretamente nessa tendência. Obstetras da saúde privada podem estar lidando com altas cargas de pacientes com apoio limitado de equipe. Um obstetra citado no estudo afirmou: “Um parto normal me custa pelo menos uma noite, às vezes duas noites. Se eu fizer 10-15 partos normais em um mês, quase nunca durmo em casa. Se eu fizer 15 cesáreas, não chego tarde para o café”. Algo semelhante está acontecendo em diferentes países.

Em alguns contextos, as cesarianas podem ser usadas para o gerenciamento de recursos hospitalares. Se a falta de leitos em uma ala de parto cria pressão para liberar espaço, pode se tornar mais fácil ou conveniente realizar um parto cirúrgico do que esperar que o ele progrida em seu próprio tempo. Isso não quer dizer que as cesarianas sejam realizadas de forma descuidada, mas sim que pressões sistêmicas influenciam a tomada de decisão de maneiras que nem sempre estão alinhadas com cuidados centrados na pessoa.

Para retornar à ideia de fetichismo tecnológico, estou interessada em que não falemos apenas sobre haver muitas (ou poucas) cesarianas ou induções de parto. Meu interesse é que falemos sobre – e tornemos visíveis – as pressões, relações e dinâmicas que são claramente de natureza capitalista, que estão influenciando esses padrões.

O mesmo se aplica quando há acesso insuficiente a, por exemplo, cesarianas seguras. Vamos começar a falar sobre as dinâmicas e relações do capitalismo que contribuem para o fechamento de maternidades, ou a dificuldade em abrir novas unidades em áreas onde não podem operar com lucro, mas que, no entanto, atendem a uma necessidade humana. Não vamos fetichizar a tecnologia, o equipamento, como se agisse por conta própria.

No mesmo capítulo, você também discute como a introdução do manejo ativo do parto, bem como o aumento de cesarianas, remodelaram a estrutura do parto. Como essa mudança impactou quem tem voz, quem tem autoridade no espaço do parto e quem mais interage com a pessoa que está dando à luz?

O manejo ativo do parto foi um protocolo desenvolvido pelo obstetra de Dublin Kieran O’Driscoll no National Maternity Hospital em Dublin, Irlanda. Essa abordagem rígida envolvia confirmação médica do trabalho de parto, registro da dilatação do colo do útero, ruptura da bolsa se a dilatação não progredisse como esperado, administração de ocitocina sintética para acelerar o parto em certos casos e realização de uma cesariana se o nascimento não fosse iminente em 12 horas.

Embora esse método tenha sido enquadrado como o manejo ativo do parto no sentido do nascimento, também servia para controlar o trabalho dos profissionais de parto. De muitas maneiras, espelhava os princípios tayloristas de gestão do trabalho – divisões hierárquicas do trabalho e divisão de tarefas em processos estritamente cronometrados para aumentar a produtividade.

O próprio O’Driscoll reconheceu o aspecto econômico em seu trabalho. Em seu livro, ele escreveu que, após a introdução do manejo ativo onde trabalhava, o “custo unitário de produção” – o número de bebês nascidos por salários pagos às enfermeiras – era três vezes maior em outros hospitais em comparação com a unidade em que trabalhava. No entanto, ele observou que os salários das enfermeiras permaneciam os mesmos.

Isso revela como o trabalho na ala de parto estava sendo otimizado para eficiência, e não para melhores cuidados. Elementos do manejo ativo do parto ainda são usados hoje, embora nem sempre na forma exata de O’Driscoll. No entanto, agora vemos uma ênfase semelhante na eficiência de curto prazo através do aumento do uso de cesarianas. Também é interessante que parte do protocolo inicial de manejo ativo do parto de O’Driscoll era que a mulher em trabalho de parto tivesse cuidados individualizados – com uma enfermeira, por exemplo, presente com ela no quarto durante todo o trabalho de parto. Esse é um aspecto de seu trabalho que raramente é lembrado hoje, pois as unidades de parto costumam estar tão ocupadas que parteiras e enfermeiras frequentemente cuidam de várias pessoas ao mesmo tempo.

O monitor fetal eletrônico – outro equipamento médico – é particularmente interessante em termos de fetichismo tecnológico. É amplamente reconhecido que, uma vez que o monitor está em uso, a atenção na sala de parto tende a se voltar para a tela e o que está acontecendo lá, em vez de para a pessoa que está dando à luz. O indivíduo que está dando à luz é tornado quase invisível, enquanto a tecnologia assume o centro do palco.

No entanto, o que sabemos a partir de pesquisas é que resultados positivos no parto estão fortemente ligados a relações de cuidado. Relações de apoio contínuas – por exemplo, entre a pessoa que está dando à luz e uma parteira de confiança – reduzem as taxas de cesariana e outras intervenções médicas e melhoram os resultados de saúde. Relações fortes e acolhedoras que incutem confiança na pessoa que está dando à luz são incrivelmente importantes. Mas elas levam tempo para serem construídas e cultivadas, e isso requer investimento no trabalho dos profissionais de parto (e esses profissionais muitas vezes são mulheres), o que nem sempre está prontamente disponível no clima atual.

Parto, escolha e risco

O parto hoje é frequentemente enquadrado dentro de um discurso de gerenciamento de risco. Claro, o parto sempre carrega um elemento de incerteza, como você discute, mas a maneira como o risco é enfatizado agora parece ser algo diferente. Como esse foco no gerenciamento de risco no parto se conecta às abordagens capitalistas do trabalho e da produtividade?

Sim, o risco está muito ligado à incerteza, como você apontou. O parto sempre carregou um elemento de incerteza, mas diferentes sociedades enquadraram isso de maneiras diferentes – às vezes em termos de perigo, destino, vontade divina ou talvez acaso. Hoje, no entanto, o discurso dominante é o de risco.

A análise de risco é um conceito que frequentemente associo mais ao setor financeiro e às companhias de seguros do que a outras áreas do capitalismo. Envolve a avaliação constante de probabilidades – a probabilidade de que um evento indesejado possa ocorrer – e a implementação de mecanismos para minimizar perdas potenciais.

Mas gerenciar risco não é o mesmo que criar saúde. Essa distinção é crítica. Alguns argumentam que a estrutura baseada em risco não pertence às salas de parto, pois fundamentalmente altera a experiência da gravidez e do parto de maneiras particulares. No entanto, é difícil imaginar o parto contemporâneo sem esse discurso de risco tecido em todos os aspectos dos cuidados.

Vou ler uma passagem do meu livro para ilustrar:

Hoje, fenômenos tão diversos quanto estresse emocional, condição médica pré-existente, estar grávida de gêmeos ou trigêmeos, comer determinados alimentos, beber álcool, conceber dentro de meses de uma gravidez anterior, conceber muitos anos após uma gravidez anterior, estados emocionais específicos, ser “muito jovem”, ser “muito velha”, ser “muito magra”, ser “muito baixa”, ser “muito grande”, ter um código postal específico, comer alcaçuz e muito mais, foram avaliados como fatores de aumento do risco (de uma coisa ou outra) dentro da gravidez.

Quase tudo relacionado à gravidez é agora visto como arriscado de uma forma ou de outra. As gestações são frequentemente categorizadas como de baixo risco ou alto risco – mas nunca como “sem risco”. Espera-se dos profissionais de parto, por sua vez, que ajam para mitigar constantemente o risco – não apenas em termos de resultados de saúde para a pessoa que está dando à luz ou para o bebê, mas também em termos de risco legal. O medo de litígios é um fator significativo, pois os provedores de saúde se preocupam em ser processados, e as instituições buscam minimizar a responsabilidade.

Isso também se conecta com o fetichismo tecnológico. Nos cuidados de parto capitalistas contemporâneos, uma das principais maneiras de gerenciar o risco é através do uso crescente de tecnologias médicas – tecnologias que são mercantilizadas e produzidas para gerar lucro. No entanto, muitas dessas tecnologias vêm com riscos próprios. Em resposta, novas tecnologias são introduzidas para gerenciar os riscos criados por intervenções anteriores, criando um ciclo contínuo de intervenção e expansão tecnológica.

Esse ciclo não diz respeito apenas à segurança – mas também à expansão de mercados. Novas designações de risco geram demanda por novos produtos, procedimentos e produtos farmacêuticos, apoiando o crescimento de uma indústria em constante expansão em torno do parto. Se isso realmente torna o parto mais seguro é uma questão completamente diferente. Muitos agora reconhecem que o foco implacável no risco pode criar ansiedade para as pessoas que estão dando à luz – tornando-se um fator de risco por si só.

Os outros dois temas-chave em seu livro são evidência e escolha. Eu gostaria de focar mais na escolha porque ela frequentemente surge como uma questão central em discussões sobre a saúde das mulheres e a saúde em geral. Você poderia me guiar sobre como aborda isso em seu livro e por que a escolha é tão importante nas práticas de parto hoje?

Acho que a escolha é incrivelmente importante no parto, mas acho que preferiria chamar de tomada de decisão ou mesmo de autodeterminação em vez de “escolha”.

Conheci o discurso da “escolha no parto” no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, quando minha mãe estava envolvida em ativismo em torno da questão. Frequentemente falamos sobre escolha em relação ao aborto, e isso é extremamente importante, mas a ideia de escolha no parto é frequentemente negligenciada. O que me surpreende é que muitos de nós lutamos pelo direito da pessoa que está gestando decidir se deseja continuar uma gravidez, enquanto nem sempre reconhecemos que, se uma pessoa escolher fazer isso, ela também deveria poder escolher o que deseja em termos de cuidados no parto.

Ser capaz de determinar o que acontece durante o parto é um grande determinante do bem-estar. Quando se nega essa possibilidade às pessoas, as taxas de trauma aumentam significativamente. No entanto, quando os ativistas do parto começaram a fazer campanha pela escolha, a conversa acabou por se fundir com a linguagem da escolha do consumidor, refletindo a ascensão do neoliberalismo. Isso criou uma suposição falsa: de que você pode simplesmente “escolher” um parto específico, como selecionar uma marca de feijão enlatado no supermercado. E o parto não funciona assim.

É muito importante que as pessoas tenham controle sobre as condições em que dão à luz, mas nem sempre podemos controlar os resultados. Também raramente é reconhecido que nem todas têm escolhas – muitas pessoas não podem preferir nada – e as divisões em quem decide e quem não decide, ou entre a compreensão de escolhas certas e erradas, são profundamente moldadas pelo capitalismo.

Além disso, há também o fato de que a escolha às vezes foi enquadrada como um argumento contra intervenções – “Eu escolho não passar pela intervenção X ou Y”. Embora optar por não participar possa ser importante, temos que nos perguntar por que as pessoas precisam fazer essas negativas. Para mim, a questão aqui se torna como podemos melhorar a qualidade dos cuidados para todos, em vez de simplesmente enfatizar a escolha individual de ter algo diferente.

Também precisamos reconhecer que tomar decisões durante o parto é quase sempre mais difícil do que em outros momentos da vida. É por isso que precisamos de relações fortes e de confiança entre os profissionais de parto e aqueles que estão dando à luz (bem como suas pessoas de apoio); relações que foram desenvolvidas e cultivadas bem antes do parto começar, garantindo que as pessoas que estão dando à luz tenham o apoio de que precisam para tomar essas decisões.

Infelizmente, os profissionais de parto – como muitos trabalhadores da saúde – enfrentam problemas graves nas últimas décadas devido à austeridade e processos similares. No entanto, muitos também estão liderando campanhas tanto por suas próprias condições de trabalho quanto por melhores cuidados para seus pacientes. Como você vê os profissionais de parto se organizando hoje e como eles podem trabalhar com a comunidade em geral para lutar contra a mercantilização do parto?

Já está acontecendo. Uma consequência de um sistema que gera ativamente fetichismo tecnológico é que, enquanto superenfatizamos a tecnologia, não temos profissionais de parto suficientes. Essa é uma questão global – muitas áreas, mesmo no Norte Global, carecem de instalações básicas de maternidade, e há uma grave escassez de parteiras.

Por exemplo, na Nova Zelândia, da última vez que verifiquei, havia um déficit relativo de força de trabalho de 40% na obstetrícia. O sistema precisa de 40% a mais de parteiras, das quais não dispõe, apenas para estar adequadamente equipado. As parteiras estão trabalhando com cargas excessivas de casos, prolongadas além de sua capacidade, e as vimos entrando em greve em vários países. Parteiras não entram em greve facilmente, mas quando entram, é porque as coisas chegaram ao fundo do poço.

É por isso que é tão encorajador ver bebês, famílias se juntando a piquetes, reconhecendo que as condições em que as parteiras trabalham são as condições em que as pessoas dão à luz, e vice-versa. Esse é um espaço real para solidariedade, para conexão, para entendimentos compartilhados se desenvolverem e florescerem, e vai além da obstetrícia. Investimento em profissionais de parto de forma ampla – doulas e enfermeiras, por exemplo – é essencial. Não amo a palavra “investimento” porque é uma terminologia capitalista, mas vivendo em uma sociedade capitalista, não podemos evitá-la completamente agora.

Em termos práticos, precisamos de financiamento e recursos para garantir que os profissionais de parto possam trabalhar sem esgotamento. Isso é especialmente crucial para que possam trabalhar de maneira individual com cada grávida e para garantir profissionais de parto baseados na comunidade que fornecem continuidade de cuidados para aquelas que estão dando à luz. Continuidade de cuidados significa que as pessoas dão à luz com um profissional de parto que conhecem e confiam, em vez de sentir que estão em uma esteira hospitalar atendida por trabalhadores que nunca conheceram antes.

Essa construção de relacionamento realmente ajuda as pessoas. Se alguém conhece e confia no profissional de saúde que está presente durante o parto, isso evita que a experiência pareça um processo de esteira – um problema comum nos cuidados perinatais, às vezes chamado de condições de “fábrica de bebês”. Se você tem uma relação de confiança entre a pessoa que está dando à luz e o profissional de parto, as pessoas se sentem muito mais seguras; e quando se sentem seguras, o parto funciona melhor, a fisiologia funciona melhor. Não vou entrar nos mecanismos fisiológicos pelos quais isso acontece, mas eles são fascinantes.

É por isso que uma ênfase na continuidade dos cuidados de obstetrícia é tão importante. Não apenas devemos proteger os modelos existentes desse tipo de cuidado, mas também devemos expandi-los – garantindo que existam em condições onde as parteiras não estejam sobrecarregadas com cargas de casos impossíveis. É fundamental que as cargas de trabalho das parteiras se tornem sustentáveis.

Resistir à maior privatização dos serviços de saúde materna e reprodutiva também é essencial. E há uma ligação direta entre o acesso ao aborto e o acesso a cuidados seguros na gravidez, parto e pós-parto – essas questões não podem ser tratadas isoladamente. Quando o acesso ao aborto é restrito, as taxas de mortalidade materna aumentam, deixando claro que essas não são preocupações separadas, mas aspectos profundamente interconectados da saúde. É fundamental reconhecer e abordar essas conexões para criar um sistema de saúde que realmente apoie as pessoas que estão dando à luz e as gerações futuras.

É por isso que é crucial construir conexões entre diferentes lutas – entre campanhas por cuidados seguros no parto, por acesso a cuidados seguros de aborto, movimentos contra a violência obstétrica e esforços mais amplos para desafiar o capitalismo como um sistema. Muitas dessas lutas podem parecer díspares ou desconectadas à primeira vista, mas estão fundamentalmente ligadas através das estruturas que moldam nosso mundo.

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