Por que rejeitar o ensino à distância em saúde?
Cedendo à pressão de grandes empresas do setor, Ministério da Educação liberou cursos remotos para especialidades como fisioterapia e terapia ocupacional, contrariando evidências básicas. Alega permitir a “inclusão”, mas amplia a precarização das profissões
Publicado 04/09/2025 às 11:21 - Atualizado 04/09/2025 às 18:33

Assinado em maio pelo presidente Lula, o Decreto 12.456 regulamenta o Ensino a Distância (EaD) no Brasil. Criticado por entidades de classe e especialistas variados de um lado, defendido por lobistas de interesses privados de outro, a medida repercutiu por conta da exclusão dos cursos de direito, medicina, enfermagem, odontologia e psicologia da modalidade.
Mas por que tais cursos se mantêm obrigatoriamente presenciais, enquanto uma grande maioria tem a semipresencialidade aprovada, com exigência de cerca de 20% da carga horária de forma presencial? Para Raphael Ferris, presidente do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da 3º Região (CREFITO-3), o Ministério da Educação (MEC) concilia de forma irresponsável interesses de classes profissionais e empresários do setor.
“A sociedade vai receber profissionais mal formados, que vão ocupar espaços de subemprego, incapazes de oferecer soluções de problemas de saúde, tanto no ambiente público quanto privado. Vamos formar profissionais para ter números e índices falsos de acesso ao ensino superior”, detonou.
Na entrevista ao Outra Saúde, Ferris mostra indignação com o tratamento preferencial dado pela pasta de Camilo Santana a categorias politicamente mais fortes, que explica a exclusão de certos cursos da modalidade, uma vez que contaram com forte oposição de suas entidades representativas.
“Fizemos diversos pareceres, com critérios de riscos, não só os conselhos de classe, mas o próprio Conselho Nacional de Saúde, Ministério da Saúde e outras entidades de ensino superior corroboraram tal posição.”
Para Ferris, é evidente que o EaD serve a interesses da educação superior comercial, sem compromisso com a sociedade e a qualidade do ensino. Audiência pública do Senado realizada em maio parece dar razão ao fisioterapeuta, e também mostra o cinismo de defensores de modalidades precarizadas de ensino. Dizem-se defensores dos pobres e povos tradicionais de áreas remotas, mas estão apenas a criar uma fronteira fácil de acumulação de riqueza por grupos capitalistas do ensino.

“O governo desconsiderou os resultados do Enade, indicador que avalia os estudantes e que teve resultados desastrosos para graduações à distância. A maioria dos cursos de graduação a distância não atingiu nem metade da nota. Não existe absolutamente nenhuma variável, nenhum índice que aponte que nós estamos indo para a direção correta”, complementou Raphael Ferris.
Afinal, se o interesse é incluir os excluídos, haveria outros caminhos, como o aumento de vagas em ensino público e gratuito, com apoio à manutenção desses estudantes. Além de carência de base técnica, defensores do EaD apenas instrumentalizam uma ideia de compromisso social para vender cursos medíocres de “R$ 59,90 ou R$ 100 mensais”, como diz Ferris, o que em sua análise diminui o interesse pelo ensino presencial.
Em sua visão, o engodo com os próprios alunos à distância pode torná-los futuros profissionais frustrados, com altas possibilidades de, no final das contas, sequer exercerem a profissão.
“É muito mal feito, sem pensar nas características exigidas para desenvolver a habilidade e competência de profissionais da saúde para garantir a segurança dos pacientes. Profissões como fisioterapia, terapia ocupacional, medicina veterinária tem seu escopo de atuação majoritariamente físico”, explicou.
Para ele, a carga de 30% de ensino in loco é insuficiente. “Isso é mais ou menos o tempo dedicado a atividades de campo e de estágio. Mas estágio é relação de cuidado. O estágio está muito mais próximo do exercício profissional do que da sala de aula. Como as pessoas vão para o campo de estágio atender pacientes sem ter aula prática?”, indaga.
Como mostrado no início da matéria, o veto ao EaD em especialidades como medicina, enfermagem e direito, que possuem fortes entidades de classe, é a evidência de uma fraude científica — argumento fortalecido pelas péssimas avaliações de alunos formados por esses cursos. Outro ponto importante a destacar é que o modelo presencial já contempla parte da grade curricular à distância. Afinal, as novas tecnologias de produção de ensino e transmissão de conteúdo não são ignoradas no processo formativo.
“Em nenhum lugar do mundo se tem um EaD e um semipresencial como no Brasil. Sem critério, com vagas indiscriminadas, sem fiscalização. Veja, ninguém é contra a tecnologia. Precisamos, inclusive, formar os docentes para utilizar a tecnologia e trazer a nova geração para um novo modelo. Porém, existem conceitos básicos da formação de um profissional da saúde impossíveis de se desenvolver à distância. Há cada vez mais procedimentos diagnósticos errados, o que está muito atrelado à má formação”, sintetiza Ferris.
No âmbito mais subjetivo, o Decreto tem um sentido reducionista da formação do profissional, uma vez que desconsidera a importância das interações sociais para o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos que vão além da mera técnica especializada.
“O curso superior existe não só para profissionalizar ou formar um profissional do ponto de vista técnico-científico. Ele também existe para formar um cidadão. Precisa de convivência, desenvolver habilidades para além do seu exercício de função, formar um ser pensante. Todos os indicadores mostram que estamos numa direção contrária de um país sério, com política educacional de futuro”, critica.
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