Podem as Novas Tecnologias em Saúde unir Brasil e China?
Hoje, a cooperação tecnológica entre os dois países ainda é tímida nessa área. Mas trata-se de uma parceria de imenso potencial – e que pode impulsionar a reforma dos sistemas de saúde de dois importantes membros dos BRICS
Publicado 13/03/2025 às 12:05

Título original: Fundamentos comuns entre Brasil e China para as Novas Tecnologias em Saúde –Apontamentos para uma Bioética do Encontro
Por Luiz Vianna Sobrinho, autor convidado
A relação entre o Brasil e a China começa a dar sinais de que, enfim, entraremos em uma promissora fase de entendimento para troca de conhecimentos e transferência de tecnologia na área da saúde. Sabemos que as últimas duas décadas selaram o reposicionamento da China como nosso principal investidor e parceiro comercial, independentemente da participação no bloco dos BRICS, destacando sua ascensão de forma evidente como nova potência tecnológica e econômica mundial.
Essa mudança atingiu também os países da África e da América Latina sendo, em grande medida, impulsionada nos últimos anos pelo vigor financeiro do programa da Nova Rota de Seda, ou Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês). No nosso caso, no entanto, cabe observar que houve uma grande concentração de investimentos na área de infraestrutura de energia, mineração, transporte e commodities do agronegócio (como detalha o excelente levantamento desse período pela equipe da FGV-Rio(1)).
Porém, foram pouco expressivos, até o advento da pandemia do covid-19, as parcerias para o desenvolvimento de vacinas, os investimentos e transações comerciais entre nosso parque hospitalar e nossa indústria biomédica e de insumos de saúde com a China, o país que vem liderando o desenvolvimento das Novas Tecnologias de Saúde (NTS).
Vimos que nos primeiros dois anos do atual governo, foram firmados acordos estratégicos para projetos de inovação tecnológica na saúde já no início de 2023, quando da primeira visita oficial do presidente Lula à China(2); e uma nova rodada de acertos para um grande plano de cooperação entre os dois países, na recente visita do presidente Xi Jiping ao Brasil, em novembro de 2024(3).
Nesse período, lançamos a ideia da Reforma Sanitária Digital em alguns artigos: uma projeção dos históricos objetivos de nossa Reforma Sanitária, em transformações sociais mais profundas a partir da ação ampliada na saúde, incluindo a questão climática e ambiental e o combate à pobreza(4). Também idealizamos a condução pelo governo federal de ações coordenadas, interministeriais, de grande abrangência em todo o território nacional, mas alavancadas pelo estratégico domínio e tratamento da informação pelas tecnologias de Inteligência Artificial (IA). Além de um projeto sanitário, há uma necessidade urgente de nos posicionar em outro nível de independência tecnológica no futuro próximo que se anuncia, o da Era Digital(5).
Está próxima a chegada das NTS ao país?
Assim, soa como um sinal de chegada das NTS a notícia de que o novo ministro da saúde, Alexandre Padilha planeja solicitar financiamento ao Novo Banco de Desenvolvimento (o banco dos BRICS) para implantação de um hospital digital na cidade de São Paulo(6).
No mesmo momento, Padilha enviou para uma visita à China a responsável pela Secretaria de Informação e Saúde Digital (SEIDIGI) do seu ministério, Ana Estela Haddad, acompanhada de uma equipe de médicos da Universidade de São Paulo. O que se promete, no anúncio dessa empreitada, é uma nova etapa no amadurecimento do Programa de Saúde Digital do Sistema Único de Saúde (SUS), agora com a transferência de tecnologia chinesa em um mais forte e declarado alinhamento geopolítico.
No curso dos últimos anos, a China se tornou um dos principais polos mundiais na pesquisa e desenvolvimento das NTS, notadamente a genômica, a robótica e os modelos de inteligência artificial (IA)(7); não apenas na assistência à saúde, a dinâmica de implementação das tecnologias de IA(8) tem-se demonstrado revolucionária na resolução de problemas macroeconômicos e sistêmicos, como o combate à fome e pobreza extrema(9), o que torna sua parceria ainda mais atraente para o Brasil, pela declarada prioridade da atual política de Estado(10).
Sendo assim, complementando os diversos acordos já existentes e em andamento entre os nossos países, esperamos que o ingresso de fato das NTS seja algo inexorável. Mas ressaltamos que se trata de tema da maior urgência o acerto da perspectiva de sua implementação no nosso sistema de saúde, considerando que, por si, já esperamos grande impacto para as mesmas, principalmente nos conflitos advindos do uso de IA(11). Não lidaremos com a materialidade de minérios, eletricidade, vagões de trem ou produtos agrícolas; mas com as nuances das relações intersubjetivas, com ferramentas cognitivas, com instrumentação do afeto, do sofrimento e de valores históricos e sociais, que se complementam e interagem no complexo campo da saúde.
Logo, devemos buscar as bases em nossas distintas culturas para a formulação de uma abordagem bioética comum entre Brasil e China, no intuito de fundamentar o aporte dessas NTS no florescimento da Era Digital no SUS.
Apontaremos uma lista de motivações para buscar reunir em um mesmo corpo teórico – mas de aplicação prática, como cabe à bioética – fundamentos que tomem um corpo justificado e comum aos dois países, para a reflexão, a crítica e a prescrição ou normatização das NTS. Essa justificativa é o somatório ou, mais propriamente, a confluência de fatores históricos e sociais que se agregam na geopolítica atual, não só abrindo a possibilidade de novos encontros e rearranjos sociotécnicos, mas exigindo a rápida adaptação sociocultural às transformações deste contexto. Assim, enumeramos alguns apontamentos para iniciar um trabalho que possa trazer orientações para as aplicações na área da saúde:
1. Uma parceria hoje modesta, mas de enorme potencial
Como já explicitado, observamos a situação histórica de notável crescimento nas relações econômicas, culturais e comerciais entre o Brasil e a China nas últimas duas décadas (1). No entanto, nessa avaliação, constatamos que é ainda modesta a participação da área da saúde e quase inexistente a parceria para o ingresso das NTS, processo esse que é de grande interesse para o desenvolvimento da Saúde Digital no SUS.
Isso embora a China já se apresente como nova potência mundial, demonstrando os requisitos para se posicionar como liderança em investimentos econômicos e tecnológicos para atrair os interesses do nosso incipiente ingresso na era digital.
A questão geopolítica que envolve a participação de forma explícita e declarada do Brasil na BRI tem relação direta com a rivalidade e disputa pela hegemonia entre a China e os EUA(12). Embora nossa relação diplomática tenha amadurecido com a consistência do BRICS e esboce novas possibilidades de expansão política e comercial, declarada ou não, com a política chinesa da BRI, Pautasso defende que “compete ao Brasil conduzir o interesse chinês de inserir o conjunto da América Latina nos projetos da Nova Rota da Seda na direção de seus objetivos na região. […] sendo uma oportunidade para impulsionar iniciativas de integração regional e superar gargalos no setor de infraestrutura, que há mais de 40 anos tem menos de 2% do PIB em investimentos(13, p.166)”.
2. O notável salto chinês
O que se anuncia na perspectiva da China tem se destacado no mundo. Em importante publicação recente, de imprescindível leitura, o professor Evandro Carvalho nos apresenta um extenso panorama da história recente da China(14); desde sua evolução socioeconômica após o “século das humilhações”, as guerras do século XX e, por fim, a revolução socialista de Mao Zedong, até as reformas inovadoras de Deng Xiaoping, que conduziram ao momento atual, com um modelo próprio de economia de mercado socialista(14, p.170).
A complexidade do sistema de governança baseado na gigantesca estrutura partidária que traça as diretrizes para a gestão administrativa dos órgãos de governo, de forte caráter republicano, vem empreendendo “uma transformação do socialismo com características chinesas para um sistema político tipicamente chinês com características socialistas”(14, p.185).
Toda uma terceira parte do livro é dedicada à avaliação do momento atual da China, onde o país se apresenta como a nova potência para o futuro, sob a liderança de Xi Jinping, onde ficamos com a impressão de que a tradição da sabedoria milenar chinesa se equipare ou mesmo já supere a força do recente marxismo. A primeira, enraizando o conceito de “Estado-família”; o segundo influenciando as ideias socialistas da “República Popular”.
Um projeto de desenvolvimento socioeconômico que consegue retirar da linha de pobreza um contingente de 800 milhões de cidadãos em quatro décadas(9) é um feito que deve ser analisado e entrar para a história em sua devida proporção, algo que a mídia ocidental ainda não realizou. Esse foi o resultado alcançado pela China, a partir do “acúmulo de todo um novo acervo em matéria de planificação econômica, organização e racionalização da produção em grande escala”, que o economista Elias Jabbour conceituou como Nova Economia do Projetamento (15, p.31).
Para alguns, esse salto equivaleria a uma segunda revolução(14, p.158). Após um período de grandes dificuldades na sua industrialização, com uma política de reforma e abertura da economia, a gestão socialista do mercado apresentou resultados incontestáveis de sucesso. Entre 1952 e 2018, conseguiu elevar o PIB em 174 vezes, tornando-se o segundo maior do mundo. O cálculo do PIB per capita da sua imensa população registrou um aumento de 70 vezes, a receita fiscal aumentou, em média, 12,5% ao ano e o valor agregado industrial aumentou 970 vezes, com aumento do comércio de mercadorias na ordem de 2.380 vezes.
Paralelamente, no desenvolvimento social, além do resultado inédito de quase erradicação da pobreza extrema, observou-se redução da taxa de mortalidade infantil de 48% para 6,1%; aumentou a expectativa de vida de 35 para 77 anos; a taxa de conclusão da escolaridade obrigatória de nove anos atingiu 94,2% da população, com taxa bruta de matrícula no ensino superior em torno de 48%. Em 2023, o PIB ajustado pela paridade do poder de compra atingiu 18,82%, o maior do mundo(14, p.382-389).
3. Avanços também na área da Saúde
Na área da saúde, a organização do sistema de informação, que já vinha sendo implantado há mais de uma década(8), demonstrou sua eficiência ao mundo por ocasião da pandemia de covid-19. Com as medidas de controle adotadas, a China teve uma das menores mortalidades per capita entre todos os países, sendo 100 vezes menor do que a dos Estados Unidos(16).
Esse foi um dos resultados mais expressivos da grande Reforma Sanitária que se iniciou há mais de uma década. Como consequência da rápida industrialização da virada do século, da elevação da taxa de população urbana e da demanda por cuidados e assistência médica de maior complexidade, chegou-se à percepção de que havia grande limitação no acesso aos serviços. Essa situação vinha impondo, com grande frequência, gastos catastróficos e empobrecimento a uma faixa significativa da população.
Mas foi outra epidemia que acendeu o alerta do governo, ainda na presidência de Hu Jintao a do surto de Síndrome Respiratória Aguda Grave (em inglês, SARS) em 2003, que se espalhou da China para grande parte do mundo e causou grandes perdas econômicas. Após uma sequência de grandes debates nacionais, o governo apontou para um programa que começava pela expansão do seguro de cobertura universal, aumentando o subsídio público aos hospitais, priorizando a oferta de serviços básicos parta todos; estabeleceu uma lista nacional de medicamentos essenciais, facilitando também o financiamento da oferta; aumentou a rede de assistência de atenção primária e iniciou um amplo processo de reformas dos grandes hospitais públicos.
O acesso à cobertura básica de saúde subsidiada pelo Estado chegou então a atingir 1,3 bilhão de pessoas nos primeiros anos após o lançamento da Reforma de 2009(17). Entre 2008 e 2017, as despesas governamentais com saúde em assistência médica quadruplicaram de ¥ 359 bilhões para ¥ 1,52 trilhão, aumentando sua participação nos gastos totais do governo, de 5,7% para 7,5%, e a participação do PIB, de 1,1% para 1,8%; demonstrando um aumento real da participação na economia.
A Reforma trouxe grande parte dos frutos esperados em suas principais metas: (1) expandiu a rede de cobertura pelo seguro subsidiado pelo governo, reduzindo o risco de gastos catastróficos; (2) aumentou a utilização de serviços essenciais, por um contingente maior da população de baixa renda; e (3) priorizou a transformação de recursos em serviços eficazes por meio da reforma sistêmica da prestação de assistência médica. Ao final de pouco mais de uma década, conseguiu-se indicadores semelhantes aos de outros países de economia avançada, como a expectativa de vida média de 77 anos, a mortalidade materna de 18,3 por 100.000 nascidos vivos e a mortalidade de crianças menores de 5 anos de 6,1 por 1.000 nascidos vivos(18).
As lacunas no programa da Reforma, no entanto, ainda parecem tão grandes quanto as dimensões do país. A situação da assistência sanitária, desde a atenção primária, no entanto, vem demonstrando dificuldade em oferecer serviços de saúde com equidade. A China conta com grande contingente populacional onde há grande disparidade no desenvolvimento regional; sua extensão continental, que conta com zonas remotas e rurais, e com áreas de intensa concentração populacional e tecnológica, ainda são um desafio para a gestão do sistema(18).
Somado a isso, a urbanização da população, o modelo de vida da industrialização com ainda altos índices de tabagismo, dieta inadequada e poluição tem mantido elevadas as taxas de morbimortalidade por doenças cardiovasculares(19). A permanência de fatores agravantes para as Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNT) associada ao envelhecimento e urbanização da população exige medidas e ajustes que estão dentro do plano de metas Healthy China 2030, lançado em 2016 pela gestão de Xi Jinping(18).
4. Pode a Saúde Digital destravar impasses nos sistemas de saúde?
Nesse contexto, é do nosso interesse trazer para a reflexão as dificuldades encontradas pelos nossos países com seus respectivos projetos de Reformas dos sistemas de saúde. Assim, ambos temos dimensões continentais, mas com grandes populações e grandes disparidades de desenvolvimentos regionais; enfrentamos um processo de industrialização mais recente, com semelhança na taxa de envelhecimento da população e na carga de DCNT.
Embora devamos atentar que haja diferenças cruciais na formação do governo e controle do Estado, no nível de desenvolvimento econômico (que já foi o inverso há cinco décadas!(13)), e em tradições histórico-culturais que nos definem, podemos argumentar a favor de dois pontos importantes de interesse comum: primeiro, nossa comunhão política em oferecer um sistema de saúde com equidade, voltado primordialmente para os interesses da coletividade; e, neste momento, na importância que vemos na capacidade e potência das NTS para a revolução tecnológica que projetamos para os nossos sistemas de saúde(18)(20).
O acesso às tecnologias de IA e seu emprego nas diversas áreas da produção e da vida em comunidade vem transformando rapidamente não somente o processo do trabalho, mas todos os aspectos das relações sociais e intersubjetivas como ocorre sempre nas interações sociotécnicas(21). A particularidade que se apresenta nesse estágio de desenvolvimento tecnológico, no entanto, está relacionada à primazia que os dados e a informação vêm exercendo sobre a realidade(22), tensionando a subjetividade e seus valores em direção a uma completa redução analítica da vida e do humano à leitura da realidade objetiva(23).
As possibilidades de expansão das nossas capacidades pela proteticidade e recursividade de nossos artefatos técnicos não é fato novo na história tecnológica da humanidade(24); mas as tensões causadas pela substituição da nossa cognição, pela fragmentação informacional do sujeito e pela aclamada possibilidade de destruição ou superação de nossa distinção ontológica, são marcos da Era Digital que suscitam um forte estímulo ao questionamento filosófico.
O debate ético, em torno das questões levantadas pelas tecnologias de IA, também tem características semelhantes no ambiente do pensamento acadêmico chinês. As mesmas questões que têm motivado os argumentos regulatórios no ocidente, como a privacidade, a segurança, a transparência, a equidade, a autonomia, as relações de trabalho e a responsabilidade também são as mais frequentes nas publicações de pesquisas com as tecnologias de IA(25). Nesse ponto, a China desenvolveu uma estrutura forte de regulamentação e normatização do uso de IA, que vem observada como modelo pelas agências europeias e demais ocidentais(8) (26).
No entanto, fundamentos importantes e inexpugnáveis da filogênese de sua civilização, como as milenares éticas advindas do confucionismo, do taoísmo e do budismo sustentam uma raiz moral que não é centrada propriamente na percepção ocidental do humano; o que expõem por que os chineses demonstram menos temor e receio nos processos de simbiose com as tecnologias de IA e na aceitação desta como agente moral, resultando em um ambiente mais receptivo para o emprego das NTS do que no ocidente(27, p.5).
5. Solução para um imbróglio geopolítico
Por fim, mas não menos importante, está o imbróglio geopolítico que se apresenta entre nossos países, frente às disputas econômicas que embaralham os acordos diplomáticos que buscam fugir do domínio imperialista histórico das potências do Norte para um multilateralismo. Nossa relação, particularmente entre Brasil e China, encontra-se fortalecida dentro do grupo do BRICS, mas destaca-se com certa obviedade a preponderância da China e a pujança de sua economia, como polo de tecnologia e fonte de investimento.
De sua parte, parece claramente haver um maior interesse em fortalecer acordos através de seu novo programa da BRI(13) (14, p.437). O argumento para o multilateralismo e o respeito entre as particularidades de cada país é um dos pilares fundamentais de sua estrutura, onde se pretende erigir um novo modelo de “comunidade global de futuro compartilhado” abandonando “o velho caminho do hegemonismo e do imperialismo” (14, p.433-435).
Conglomerados de Estados-nações compartilhando o futuro, sem hegemonia exploradora por nenhuma das partes, materializam o conceito de Tiānxià(28), associado à civilização e ordem na filosofia chinesa clássica. Tem como objetivo maior na política “a garantia da ordem universal […] e o respeito à noção de soberania dos demais países, uma vez que a harmonia é a condição ontológica para a existência […] e um conceito de um desenvolvimento compartilhado e anti-imperialista” (15, p.23). Esse conceito pode embasar o modelo de relacionamento que perpassa as transações comerciais tanto dos BRICS quanto da BRI.
No caso do primeiro, no entanto, há tensões e diferenças nos embates políticos de países que ainda partilham do comportamento de liderança hegemônica e alianças ocasionais com o imperialismo, com é o caso, respectivamente da Rússia e da Índia. A óbvia centralidade no palco das relações na condução da BRI pela China pode ter o sentido de ser o eixo central de uma grande teia, onde se busca a harmonia e não o domínio(14, p.430-431).
Se já nos encontramos no momento histórico em que podemos pensar para além da configuração dos Estados-nação modernos e buscar uma planetarização é a grande questão que o filósofo da tecnologia, o chinês Yuk Hui, esmiúça em seu mais recente livro, uma “tentativa de busca por um Tractatus Politico-Technologicus” (24).Logo no início de sua introdução, ele se questiona qual seria o papel do pensamento não ocidental nesse processo de planetarização(24, p.6). Embora Hui não defenda explicitamente os modelos do BRICS e da BRI, soa estimulante como projeto político pensarmos hoje, na possibilidade de superação do Estado-nação por conjunturas planetárias alicerçadas nas relações comerciais e na harmonia – uma conjunção entre o universalismo kantiano e a Tiānxià.
Por uma “bioética do encontro” entre Brasil e China
Ao nosso ver, necessitamos de uma agenda ética unificada às duas culturas que, propriamente pela herança sócio-histórica marcadamente distinta, demarque os limites para o emprego das NTS, visando o cuidado e proteção do humano, que é o nosso fundamento comum; a chegada de tecnologias que são apresentadas pelo mercado e ao senso-comum como “sujeitos cognitivos” nos inspira a reunir argumentos que possam reforçar a defesa ético-política dos valores humanos que se pretendem universais(25) (26) (27), quiçá retornando até mesmo ao debate sobre os direitos fundamentais(23).
Surge assim a possibilidade, então, de uma “bioética do encontro” – na linha do conceito de uma abordagem global que avance além das questões biomédicas, na busca do equilíbrio entre a ética ecológica e a dominação econômica(28); com a validação da perspectiva de saúde como direito humano fundamental(29); mas sem pretender abarcar em um acordo programático a totalidade de um conglomerado que soaria utópico no momento atual, mas sim focalizando nas possibilidades reais que teremos nesse “encontro” entre Brasil e China.
No espaço dessa discussão, os encontros de saberes, culturas e visões de futuro: do Marxismo com o Confucionismo, das tecnologias digitais na medicina ocidental com as medicinas tradicionais, o ingresso das NTS que impulsionam o modelo chinês na nascente cultura em formação do SUS-Digital; num ambiente de desenvolvimento econômico e científico que caminhe na complexa diversidade humana, mas voltado para o valor coletivo do comum(30).
Saudamos, assim, a desafiadora possibilidade de desenvolvimento do SUS a partir da cooperação entre esses dois sistemas de saúde de grandes populações, com a integração de práticas com as NTS, através de abordagens ético-filosóficas alicerçadas em sabedorias e culturas milenares – a de origem greco-ocidental que nos conformou e a sabedoria clássica chinesa(31).
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