Pode haver saúde mental em tempos de guerra?
Em Gaza, um palhaço faz crianças sorrirem – e, em meio aos escombros, celebram-se casamentos. Não estará na psiquiatria um antídoto para o sofrimento causado por conflitos. Mas, como sugere Franco Rotelli, na resistência da “sensatez do pequeno ato da vida”
Publicado 25/06/2025 às 06:00 - Atualizado 25/06/2025 às 10:27

Por Cláudia Braga, para a coluna Cuidar das pessoas. Cuidar das cidades
Se eu morrer,
você tem que viver
para contar
a minha história
para vender as minhas coisas
para comprar algum papel
e quaisquer fios,
para fazer uma pipa
(faça-a branca com uma longa cauda)
para que uma criança,
em algum lugar de Gaza,
olhando o céu
nos olhos
em espera por seu pai que
se foi em uma chama
sem se despedir de ninguém
nem mesmo de sua própria carne
nem mesmo de si mesmo
veja a pipa, a minha
pipa que você fez,
voar lá no alto
e pense por um momento
que um anjo está ali
para trazer de volta o amor.
Se eu morrer,
faça com que eu traga esperança
faça com que eu seja uma história!
(Trata-se da última poesia de Refaat Alareer,
poeta palestino morto em um bombardeio na
Faixa de Gaza em 06 de dezembro de 2023)
Em 1994, o mundo vivia a Guerra da Bósnia, conflito armado que ocorreu entre 1992 e 1995 e envolveu os grupos étnicos da região: sérvios cristãos ortodoxos, croatas católicos romanos e bósnios muçulmanos. Foi nessa guerra que se deu o Cerco a Sarajevo, quando a cidade foi cercada, bombardeada e teve a entrada de insumos básicos, como comida, bloqueada. Mais de 200 mil pessoas morreram e cerca de 1,5 milhão de pessoas foram deslocadas, em números que variam conforme a fonte.
Foi nesse contexto que o psiquiatra italiano Franco Rotelli, em 1994, afirmou: “Não temos um entendimento sobre a guerra que seja adequado. Porque não temos um pensamento da normalidade, porque não temos um pensamento sobre a riqueza do cotidiano, sobre a riqueza da, assim chamada, ‘banal cotidianidade’ do bem e do mal”¹. Rotelli, na busca por situar os termos de seu pensamento sobre o conflito, esclarece que não crê “nas guerras étnicas, as guerras são sempre políticas”, recordando que “também a psiquiatria não existe, se não como articulação da política” e que “a política não pode, então, nunca ser reduzida à psiquiatria”.
Estranho seria se a psiquiatria não identificasse transtornos mentais
Uma revisão da literatura sobre a saúde mental em Gaza identificou na população de Gaza “altas taxas de transtorno de estresse pós-traumático, depressão, ansiedade, e transtornos agudos de estresse entre crianças, adultos e idosos”. Os dados mostraram que 54% das crianças em Gaza experimentaram transtorno de estresse pós-traumático, além de “depressão (41%) e ansiedade (34%), devido a eventos traumáticos como bombardeios e perda de entes queridos”. Talvez o espantoso seja esse número não ser ainda maior.
Os autores do estudo compreendem que essa “alta prevalência de transtornos mentais é dada pela violência, perda e deslocamento”, e ressaltam que “as barreiras para responder às necessidades de saúde mental da população incluem a destruição da infraestrutura de saúde”.
É relevante que estudos tratem da saúde mental das pessoas em Gaza porque é preciso, por todos os meios, chamar atenção para a situação da Palestina. Agora, se tal leitura é certamente limitada, também é certo que um pensamento sobre o que é a vida – ou melhor, a sobrevivência – das pessoas em Gaza não virá da psiquiatria enquanto instituição. Não é nela que encontraremos qualquer linha de pensamento para saber mais sobre saúde mental nesse contexto, muito menos quaisquer respostas à realidade e necessidades reais das pessoas.
A experiência humana de extremo sofrimento imposta às pessoas que ainda estão vivas em Gaza – sem esquecer que se estima que ao menos 55 mil palestinos já foram mortos por ações militares do Estado de Israel em suas decisões como país – se dá por uma guerra política. E já sabemos que a política não pode ser reduzida à psiquiatria.
A banalidade do cotidiano
Entre vídeos de bombardeios, de uma criança sendo incendiada, de pessoas desesperadas para suprir a necessidade básica humana de ter algo para comer, surge o vídeo de um casamento: um rapaz gravou cenas da preparação do casamento de seu amigo, que tomou a decisão de se casar em 2025, em Gaza. No vídeo compartilhado em redes sociais, ele aquece um ferro de passar na brasa de um fogareiro improvisado. Falta energia elétrica – mas a formalidade de um casamento pede uma camisa elegantemente bem passada.
Filmando a si mesmo dentro de um carro percorrendo ruas (seriam ruas?) daquilo que um dia foi uma cidade, ele atravessa escombros e encontra seu amigo. A continuidade é de um recorte de cenas sequenciais em que pessoas se abraçam, dançam e celebram a vida. Eles casam o amigo. A escolha é por sonhar e projetar um futuro, mesmo em meio ao presente genocídio.
Atravessando a insensatez que todos assistimos diariamente – e em algum momento precisaremos falar sobre o quão surreal é assistir em uma tela bombardeios e pessoas explodindo enquanto passamos manteiga no pão do outro lado do mesmo mundo – talvez se casar seja, para usar as palavras de Rotelli, “a sensatez do pequeno ato de vida”.
Talvez seja dessa mesma qualidade o gesto de um palhaço de se pintar e reunir um grupo de crianças na faixa de Gaza para elas brincarem e tão somente para isso: para brincarem e poderem ser crianças.
Talvez o gesto de resistência de viver a banalidade do cotidiano seja o único pensamento sensato.
Acordar, ir à escola, trabalhar, encontrar amigos e família, ter trocas sociais, ter uma casa para voltar no final do dia. Experimentar emoções, amar, desejar, se enfurecer por uma situação ou relação qualquer, sentir tédio, se frustrar, sofrer e se alegrar. Viver a segurança de que o amanhã e o depois de amanhã estarão ali, sonhar e imaginar futuros, agir no cotidiano com pequenos gestos e grandes decisões para caminhar em direção aos futuros sonhados. Tudo isso é necessário para experimentar o bem-estar. E quando tudo isso está ausente?
Talvez, como afirmava Rotelli em outro contexto, para as pessoas que vivem na pele as situações de guerras “o modo de fazer a guerra de resistência é viver o cotidiano: obstinar-se a recusar medidas de exceção, a emergência, repropor obsessivamente o valor concreto e inatacável da cotidianidade – que é ainda o único modo sensato de ser terapêutico”.
E para quem assiste à distância a um genocídio em curso e a tantas guerras (sempre) insensatas, resta algo de sensato a fazer?
Pensar e agir do outro lado do mesmo mundo
Não há resposta fora da política. Se a política não se reduz à psiquiatria, também ocorre que a saúde mental não se dá fora da política – da polis. É na polis, na cidade, nos encontros e trocas reais e afetivas que se faz saúde mental. E é possível saúde mental quando as oportunidades de encontro são impedidas e a subjetividade marcada pelo horror? É possível saúde mental quando a luta é pelo direito de viver amanhã?
Há quem esteja buscando, sim, construir sobre isso pensamento e ação de forma articulada – e aqui é preciso mencionar a atuação de Samah Jabr, psiquiatra e chefe da unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde da Autoridade Nacional Palestina, e do Desorientalismos.
Fato é que vivemos tempos de genocídio, guerras e conflitos armados, muitos deles esquecidos. Qual foi a última vez que vimos algo sobre a gente que vive na Síria, Sudão ou Mianmar? Fato é que toda guerra impacta pessoas; impacta gente que deixa de viver a banalidade do cotidiano. Destes fatos, mais perguntas do que respostas se colocam para nós.
Por fim, para os que conhecem a realidade dos manicômios e se aliam à luta antimanicomial, vale recordar o pensamento de Rotelli de que “não há diferença entre as estratégias de limpeza étnica e a ideia de manter em pé os manicômios”. Enfrentar todas as formas de opressão e todos aparatos que as sustentam, deste e do outro lado do mundo – que é o mesmo –, é o mínimo de sensato a fazer. Não há trocas reais e afetivas sem gente; e não há gente se à gente é negado o direito de existir e viver em um comum. Isto também é fato.
É preciso que as crianças em Gaza possam voltar a viver a banalidade do cotidiano e voltar a brincar, sendo as pipas que soltam no ar apenas pipas.
Notas
[1] Rotelli, Franco. Quando Napoleone si crede Napoleone [1994]. In: Rotelli, Franco. Quale psichiatria? Taccuino e lesione. Milano: Edizone AlphaBeta Verlag, 2021.
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