Plano Diretor de Epidemiologia e sua necessária politização

Após 20 anos, Ministério da Saúde e Abrasco lançam novo documento que dá os parâmetros a estudos e políticas no campo. Momento não é fortuito: busca incidir nas condições de vida das populações vulneráveis, deterioradas pelo neoliberalismo e as crises que gera

Créditos: Tomaz Silva/Agência Brasil
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Depois do trauma coletivo da pandemia de covid-19, a epidemiologia tornou-se uma especialidade científica mais familiar do público geral. A partir dos dados semanais de infecções, adoecimentos e mortes, nos acostumamos a lidar diariamente com este tripé essencial de uma área cujo objeto de estudo é a saúde de um conjunto populacional.

Diante deste resumo simplificado, a apresentação do 5º Plano Diretor para o desenvolvimento da Epidemiologia no Brasil – 2025-2029, elaborado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em parceria direta com o Ministério da Saúde, parece uma consequência óbvia daquele momento. No entanto, há muito mais em disputa, como deixaram claro vários especialistas que se encontraram na Faculdade de Saúde Pública da USP no dia 17 de junho para a apresentação do Plano.

Em sua fala, Marilisa Barros, médica, sanitarista e professora da Unicamp, foi direto ao ponto. “Vivemos no contexto do golpe de 2016, eleições de 2018, desmonte do Estado e negacionismo, que dirigiu o país na pandemia. Não faria sentido um Plano de Diretor de Epidemiologia naquele contexto. E se a extrema-direita não perdesse a eleição de 2022 tampouco haveria Plano. No próximo ano teremos ideia de para onde poderemos caminhar”.

Ou seja, o Plano Diretor não é um documento frio sobre ações básicas de vigilância em saúde e monitoramento de situações diversas de adoecimento. Como deixa clara a própria introdução do documento oficial, sua ideia está muito além da produção de boletins de dados e estatísticas.

“Nas últimas décadas, a expansão das políticas neoliberais, no contexto de financeirização do modo de produção capitalista, implicou concentração de renda, aumento da pobreza, precarização do trabalho, aprofundamento das iniquidades sociais em saúde e desinvestimento em políticas de saúde e bem-estar social”, contextualiza.

Portanto, não é nada casual o momento em que surge o 5º Plano. Ele dista exatos 20 anos do último, apresentado em 2005. Os outros datam de 1989, 1994 e 2000, de modo que está diretamente ligado à criação do SUS e ao processo de redemocratização do país, época em que também se afirmou a Saúde Coletiva como campo de conhecimento científico essencial às políticas do setor.

Elaboração participativa

O Plano começou a se delinear exatamente após a vitória de Lula sobre Bolsonaro, em grupos de trabalho da Abrasco. Em agosto de 2023, uma oficina em Brasília formou os grupos de trabalho e comissões, compostas 105 membros de 55 instituições de ensino e pesquisa, e representação nas cinco regiões do país. Já em 2024, um congresso deu encaminhamento ao trabalho ora apresentado à sociedade.

Suas três áreas temáticas são formação, pesquisa e participação em políticas públicas. “O 5o Plano tem novos problemas para lidar, mas parte de um patamar melhor, onde há mais formação profissional no país. As avaliações das políticas de saúde ainda são precárias e o plano compensa 20 anos de defasagem e junta gerações, de modo que aproveita as formulações anteriores e os novos profissionais formados desde então”, analisou Guilherme Werneck, professor da UERJ e Diretor do Departamento de Ações Estratégicas de Epidemiologia e Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério.

Como explicou Maria Rita Donalisio, professora do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, o documento estabelece parâmetros que já podem ser prontamente adotados por entes federativos dos três níveis. Além disso, luta para consolidar a inserção deste tipo de profissional no SUS. “Os assuntos são transversais e tais políticas devem ser inseridas em políticas setoriais. Sistemas de informação do país estão fragmentados. Até hoje o ministério se esforça para juntar tudo isso.”

Em linhas gerais, analisar necessidades em saúde de populações mais vulneráveis incide diretamente no sistema político e econômico, onde prevalece uma agenda responsável pelo seu processo de saúde-doença.

“Identificamos insuficiência de pesquisa sobre modelo econômico e suas abordagens teóricas, propostas metodológicas e avaliações de impacto de saúde, com reduzido número de estudos e escasso conhecimento sobre populações vulnerabilizadas, como indígenas, de rua, carcerária, LGBTQ”, antecipou Claudia Leite Moraes, professora do Departamento de Epidemiologia da UERJ.

No entanto, é impossível não se questionar se um país que voltou a ser dominado politicamente por uma direta oligárquica, o que se reflete fortemente nos governos estaduais e prefeituras, levará a sério uma visão de saúde pública tão crítica como a expressada no Plano Diretor.

“Devemos reforçar pesquisas que enfatizem origens das desigualdades socioeconômicas originadas no capitalismo, fortes produtoras de desigualdade. Reforça-se a necessidade de ampliar número de pesquisas nos focos mencionados. Condições de vida e saúde da população mais marginalizada devem ser foco prioritário”, resumiu Claudia.

“Por uma epidemiologia crítica”

Como ressaltado em diversas falas dos especialistas presentes, a análise do modo de vida de qualquer sociedade é essencial à epidemiologia. Um dos grandes sanitaristas do país, Naomar de Almeida Filho, do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, encerrou o encontro com o lançamento de seu livro, que não deixa dúvidas a respeito do que deve ser alvo desta área do conhecimento.

Epidemiologia no pós-pandemia – de ciência tímida a ciência emergente traz à tona debates que vão muito além de uma mera abordagem técnica da saúde pública. “Um Plano Diretor tem finalidade de organizar ações e também provocar aberturas para discussões temáticas, questionamentos e reflexões necessárias para que a prática política não seja só empírica, mas tenha a racionalidade crítica construtiva necessária”, discursou.

Em sua fala, também explicou o curioso título de sua obra. Para ele, a epidemiologia foi, até a pandemia, um campo pouco popular de conhecimento. No entanto, tal momento a colocou sob holofotes, a ponto de diversos profissionais de outras áreas se apresentarem ao público como especialistas da área.

“Houve uma específica apropriação da ‘grife epidemiológica’ pelos cientistas de dados. Isso permite antecipar futuras disputas políticas pelo discurso e produção de narrativa legitimada sob o processo de transformação de dados em informação, e depois em conhecimentos referentes ao processo da saúde-enfermidade-cuidado-população, que é o objeto da epidemiologia.”

Sua fala acompanhou a tônica de todo o evento, dentro do qual Marilisa Barros defendeu abertamente uma “politização da epidemiologia”. Nesse sentido, cabe refletir sobre a conjuntura que se vive, na qual, poucos dias depois, o chanceler brasileiro Celso Amorim, ao analisar os conflitos no Oriente Médio, admitiu que “a ordem global dos últimos 80 anos acabou e teremos de aprender a lidar com isso”.

Em escala menor do que as grandes disputas geopolíticas, evidentemente, a epidemiologia tende a se revelar campo de batalha da famigerada “polarização”, neste caso, em torno da produção de dados e estatísticas de saúde pública, e sua subsequente utilização pelo poder público.

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