PL da Devastação, expressão do racismo ambiental
No Dia Internacional da Mulher Negra, Latinoamericana e Caribenha (25), é preciso levantar-se contra mais esse ataque ao meio ambiente e às comunidades tradicionais no Brasil. Lula deve vetá-lo, ou condenará territórios negros, quilombolas e indígenas
Publicado 24/07/2025 às 09:45 - Atualizado 24/07/2025 às 15:55

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Considerado pelos especialistas e ambientalistas o maior retrocesso ambiental no país desde o período inicial da redemocratização, o Projeto de Lei (PL) nº 2.159/2021, mais conhecido como “PL da Devastação”, foi aprovado rasteiramente, em sessão remota, realizada na madrugada do dia 17 de julho de 2025 pela Câmara dos Deputados, conduzida pelo presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), contando com, aproximadamente, 148 ausências.
O texto principal do “PL da Devastação” foi aprovado por 267 votos favoráveis a 116 votos contrários, tendo por apoio parlamentares pertencentes a partidos políticos do “Centrão”, de grandes ruralistas e, sobretudo, da extrema direita bolsonarista. Este PL chega a votação da Câmara após ser aprovado em 21 de maio de 2025 no Senado, sob a pressão do seu presidente Davi Alcolumbre (União-AP), ruralistas e bolsonaristas por 54 votos a favor a 13 votos contrários.
O texto do PL reformula as regras do licenciamento ambiental no Brasil, prevendo a isenção de licenças para alguns empreendimentos e setores econômicos como a agropecuária e mineração; confere aos estados e municípios o poder de conceder mais dispensas; cria o Licenciamento Ambiental Especial, o qual permite uma tramitação mais rápida para empreendimentos considerados estratégicos pelo governo federal; e desburocratiza o sistema, ao generalizar a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), um espécie de licenciamento autodeclaratório e automático, sem análise prévia ou controle de órgão ambiental. Trata-se, de fato, de um desmonte das diretrizes que são conhecidas e aplicadas hoje, abrindo um perigoso caminho para uma desregulação em larga escala do desmonte da política ambiental no país, seguindo célere o seu percurso de destruição.
Todavia, o PL aguarda, neste momento, a sanção do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele poderá vetar partes do processo, mas o que a grande maioria da sociedade civil espera é o veto presidencial completo ao PL. Não se descarta também que entidades, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, Ministério Público levem a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF), apontando as várias inconstitucionalidades que compõem o seu texto. Essa aprovação constituída na calada da noite, em um momento tão estratégico para o Brasil, já que nos encontramos a poucos meses da realização da COP30 – que ocorrerá de 10 a 21 de novembro de 2025, sediada em Belém/Pará –, intenta contra a imagem internacional do país, contra a figura do presidente Lula e consta também como um instrumento da oposição para as eleições de 2026.
A esperança democrática, verificada nos últimos 20 anos, parece estar enfrentando um refluxo conservador, especialmente após as eleições de 2018. Esse fenômeno é parte de uma tendência global de recessão democrática, marcada pelo crescimento do populismo, extremismo e autoritarismo. Por um lado, no despertar do século XXI, vimos surgir um alento a partir do Estado Democrático de Direito e das novas institucionalidades na conformação de temas como diversidade, equidade e biodiversidade. Mas também pudemos observar, em paralelo, um forte realinhamento político-ideológico, que é pragmático e, sobretudo, conservador, por estar consubstanciado num discurso terrivelmente religioso, fincado numa ideologia de um messianismo autoritário, vigente em grande parte das igrejas neopentecostais. Trata-se de um discurso que questiona os pilares fundamentais do constitucionalismo democrático, enfatizando a restrição das liberdades individuais em nome de uma dita manutenção da ordem e da moralidade, muito bem retratado no documentário “Apocalipse nos Trópicos”, dirigido por Petra Costa e lançado em 3 de julho de 2025.
A polarização verificada hoje no interior da sociedade brasileira, entre esquerda e direita (mal comparada às disputas futebolísticas apaixonadas como Fla x Flu e Ba x Vi) esvazia de sentido a força dos debates histórico-políticos que nos trouxe até aqui. Uma onda radicalmente conservadora caracterizada pela intolerância e rejeição ao pluralismo político, com uso de ameaças de violência e discursos de ódio, representa uma profunda erosão dos avanços. Interdita o debate construtivo na busca de soluções para questões complexas existentes no interior da sociedade brasileira, tais como as interseccionalidades entre raça, gênero, classe e ainda a justiça socioambiental.
O PL da Devastação não é apenas mais uma lei ambiental, ele representa um potente dispositivo de racialidade (conceito cunhado por Sueli Carneiro), capaz de a um só tempo destruir corpos, territórios e futuros. Sob a narrativa desenvolvimentista, o referido projeto de lei materializa os ideais do agronegócio, da mineração e do garimpo, maiores financiadores no Congresso. A proposição de mudanças na legislação de licenciamento ambiental tem por perspectiva flexibilizar regras para que os grandes empreendimentos ligados ao agronegócio, mineração e infraestrutura possam ser aprovados sem grandes dificuldades. Em consequência, poderá acelerar desmatamentos, conflitos fundiários, aumento da poluição em áreas periféricas, e até mesmo os impactos das mudanças climáticas, afetando sobremaneira as terras indígenas, quilombolas e de todas as outras comunidades tradicionais, agravando problemas de saúde e beneficiando setores econômicos em detrimento da garantia dos direitos humanos.
Cabe salientar que no texto do PL são mencionados apenas os territórios indígenas e quilombolas que são considerados homologados e demarcados. Sendo assim, todos os demais vinte e seis segmentos de povos e comunidades tradicionais – a exemplo de ribeirinhos, extrativistas, fecho e fundo de pasto, pescadores, marisqueiras, quebradeiras de coco babaçu, povos de terreiros etc. – são desconsiderados, ignorados e invisibilizados. A gravidade ainda gira em torno do fato de que dos dois segmentos citados, estão incluídos apenas 40% dos territórios indígenas e 4% dos territórios quilombolas, uma vez que 60% dos territórios indígenas e 96% dos territórios quilombolas são reconhecidos, mas ainda não foram homologados e demarcados, conforme aponta o Instituto Socioambiental (ISA).
O dia 25 de julho de 2025, Dia Internacional da Mulher Negra, Latinoamericana e Caribenha, é uma data fundamental para discutirmos as interseccionalidades que envolvem o papel central das mulheres negras, mas também quilombolas e indígenas, enquanto expressão central nesse debate ambiental, por representarem a figura das guardiãs da biodiversidade, do ativismo comunitário e defensoras dos seus territórios.
O referido PL, ao enfraquecer o licenciamento ambiental, ataca diretamente os modos de vida e trabalho tradicionais protegidos por essas mulheres. Como violência epistêmica, ignora saberes ancestrais que são essenciais para a conservação real dos sistemas de manejo de sobrevivência coletiva e comunitária que a legislação branca não reconhece. Sem um licenciamento rigoroso, podemos vislumbrar um aumento considerável das contaminações de rios e de solos em que são cultivadas plantas e árvores medicinais, destruindo a base material dos processos de cura e cuidado em saúde, a rigor, liderados por essas mulheres, bem como promovendo a insegurança alimentar.
O PL da Devastação representa, sem sombra de dúvida, a maior expressão do racismo ambiental, uma das faces mais cruéis do racismo estrutural, porque nega o direito à vida digna em um território saudável. O racismo ambiental é um conceito fundamental para entender como as crises climáticas e a degradação socioambiental afetam desproporcionalmente populações racializadas e periféricas, reforçando desigualdades históricas. Sua relação com a construção de territórios saudáveis e sustentáveis é direta, pois evidencia como o acesso a um ambiente equilibrado é também uma questão de justiça étnico-racial e de classe.
As injustiças socioambientais no Brasil e na América Latina, portanto, são profundamente gestadas na intersecção das desigualdades entre raça, classe e gênero. E o Brasil, por ser um país profundamente desigual e marcado pelo legado colonial e escravocrata, tem um padrão de injustiça ambiental racializado, embora muitas análises sobre os conflitos ambientais ignorem a dimensão racial, focando apenas na dimensão da classe social.
A aprovação do PL nos dá a previsão de um futuro assombroso, em que se figurará uma distribuição desigual de cargas poluentes (lixões, indústrias tóxicas, produtos químicos poluentes, uso de agrotóxicos, barragens de rejeitos etc.) em territórios de maioria negra, indígena e periférico, com negação sistemática de direitos básicos (água potável, saneamento, áreas verdes etc.) e de extrema violência territorial, encurralando, expurgando e expulsando comunidades inteiras de seus territórios tradicionais para dar lugar a megaempreendimentos (mineradoras, barragens, garimpo, parques eólicos etc.), ou simplesmente, porque tornam inabitáveis e insustentáveis estes lugares.
Na dimensão econômica, destaca-se que o PL é o avanço do capital sobre territórios negros, indígenas e tantos outros tradicionais, cuja linha de frente de confronto, luta e resistência é liderada, a rigor, pelas mulheres negras, quilombolas e indígenas. Neste contexto, essas mulheres, por sua própria conta e risco, tornam-se alvo duplo – seja como defensoras ambientais, seja como resistência ao patriarcado racista. São, portanto, esses corpos negros, quilombolas e indígenas os que mais sofrerão os impactos dessa investida devastação se esta Lei entrar em vigor integralmente.
Contudo, importante frisar que também vivenciamos um momento em que datas como o 25 de julho e o 19 de abril, dia dos povos indígenas, sugerem o reagrupamento e as mobilizações populares para um contraponto direto ao epistemicídio, reafirmando o papel das mulheres e os conhecimentos ancestrais comunitários que nos trouxe até aqui. Reconhecer e apoiar, nesta data, essas guardiãs negras é ao mesmo tempo, assentir que elas são memória viva da ancestralidade cujos saberes são a chave para a justiça socioambiental e étnico-racial e, sobretudo, que a luta é pela sobrevivência e bem-viver de todas, todos e todxs.
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