Patentes: uma proposta para a Ciência Aberta
Cientistas ousaram produzir medicamento em colaboração global, com o processo e as descobertas compartilhadas publicamente. Mas havia o risco de a indústria se apropriar dos resultados. Então, eles registraram o fármaco – mas proibiram sua exclusividade
Publicado 21/07/2025 às 09:33 - Atualizado 21/07/2025 às 15:24

Por Ed Griffen e Pascale Boulet, autores convidados
A relação entre propriedade intelectual (PI) e o acesso às inovações científicas sempre foi tumultuada. A distribuição desigual das vacinas de mRNA durante a pandemia de covid-19 colocou detentores de patentes contra defensores do acesso a medicamentos, confirmando esta realidade.
Na saúde global, o racionamento custa vidas. Um modelo estima que o acesso mais equitativo às vacinas contra a covid-19 poderia ter evitado cerca de 1,3 milhão de mortes no mundo.
Mas a pandemia também despertou um espírito de colaboração, distante do protecionismo que dominou as manchetes. Éramos um grupo de centenas de cientistas, repentinamente confinados que recorremos espontaneamente às redes sociais para desenvolver novos antivirais de forma colaborativa. Os resultados desses esforços não apenas exemplificam o potencial da ciência aberta, como também abrem caminhos para novas formas de gerenciar direitos de patentes que promovam o acesso a medicamentos, em vez de restringir.
Denominávamo-nos iniciativa Moonshot, compartilhávamos a visão de desenvolver um tratamento oral seguro, globalmente acessível e sem fins lucrativos para a infecção por SARS-CoV-2. Nosso objetivo era identificar novas moléculas capazes de bloquear a doença e desenvolver medicamentos que pudessem ser produzidos como genéricos imediatamente. Em vez de gerar receitas protegidas por patentes e outras formas de PI, qualquer novo medicamento estaria disponível para todos e acessível pelo menor preço sustentável.
Quando convocamos químicos medicinais de todo o mundo para enviar designs de moléculas com potencial para inibir o vírus, esperávamos algumas centenas de propostas. Recebemos mais de 18.000. As redes sociais nos permitiram compartilhar o progresso em tempo real com a mais ampla comunidade científica possível. A inteligência artificial nos ajudou a trabalhar mais rápido no design molecular e um financiamento da Wellcome nos ajudou a testar nossos melhores candidatos em laboratório.
Esforços abertos de descoberta de medicamentos costumam ser lentos, mas um de nossos pesquisadores descreveu nossa experiência como trabalhar em um trem expresso ao mesmo tempo em que íamos construindo os trilhos por onde ele passava.
E funcionou. Vários antivirais de amplo espectro — medicamentos potenciais que poderiam funcionar contra SARS-CoV-2 e vírus relacionados — foram identificados. A segurança e eficácia dos candidatos mais promissores foram testadas em estudos pré-clínicos e um deles, o DNDI-6510, avançou para estudos de toxicologia avançada e farmacocinética.
Mas, ao procurarmos fabricantes e doadores interessados em nosso composto de ciência aberta, ninguém quis investir em seu desenvolvimento. Uma preocupação prevaleceu: com tudo publicado abertamente em tempo real e sem patente, não tínhamos controle. Qualquer um poderia registrar uma patente própria cobrindo aspectos adicionais da formulação e comercializá-la exclusivamente. Os resultados de nossos esforços colaborativos abertos poderiam facilmente ser privatizados, tornando nossa visão de um medicamento acessível e barato inatingível.
O DNDI-6510 acabou falhando em estudos pré-clínicos mais avançados — um revés comum nessa fase de alto risco do desenvolvimento de medicamentos. Mas o composto Moonshot foi o ponto de partida para o trabalho de uma nova coalizão chamada consórcio ASAP — liderado por muitos dos pesquisadores da Moonshot e financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA. A estrutura de um segundo composto desenvolvido por pesquisadores da ASAP, o ASAP-0017445, com atividade potente contra MERS-CoV, SARS-CoV-2 e outros vírus da mesma família, foi recentemente divulgada no encontro da American Chemical Society Spring 2025, em San Diego.
Junto com nossos parceiros no consórcio ASAP, divulgamos a estrutura de nossa molécula antiviral de amplo espectro no domínio público, para que qualquer químico medicinal no planeta possa usá-la, melhorá-la e aproveitar ao máximo nossos dados de pesquisa. Com isso, mantemos o espírito de ciência aberta da Moonshot, reunindo as melhores mentes e quebrando barreiras que dificultam a inovação científica.
Mas como equilibrar essa abordagem de inovação aberta com a necessidade de impedir qualquer apropriação por interesses privados?
Escolhemos um caminho intermediário. Apresentamos uma patente “minimamente defensiva e maximamente permissiva”. Salvaguardas e compromissos vinculantes evitam abusos de nossa propriedade intelectual compartilhada e regulam o desenvolvimento e a comercialização de qualquer medicamento futuro resultante deste trabalho. Todos os parceiros da ASAP estão contratualmente obrigados a conceder licenças futuras para fabricar e comercializar esse possível medicamento de forma não exclusiva, permitindo a produção simultânea por múltiplos fabricantes. Isso nos dá alavancagem com potenciais parceiros industriais e doadores, garantindo que nosso futuro antiviral esteja disponível pelo menor preço sustentável, em quantidades suficientes, em todos os lugares e rapidamente.
Essa abordagem de licenças não exclusivas com foco no acesso já demonstrou sucesso em diversos medicamentos e doenças. O Medicines Patent Pool, por exemplo, aplicou estratégias semelhantes para fornecer medicamentos que salvaram milhões de vidas.
A novidade aqui é que antecipamos essas necessidades desde o início do processo de P&D. Incorporamos disposições para garantir a acessibilidade e a disponibilidade para todos os países, independentemente de seu nível de desenvolvimento. Estamos pilotando um modelo para garantir o acesso global com base em uma abordagem de licenciamento aberto de patentes. Usamos patentes para criar as melhores condições possíveis para o acesso equitativo.
A realização do pleno potencial do ASAP-0017445 depende de obter o financiamento necessário para avançar seu desenvolvimento em estudos clínicos. Mais do que uma oportunidade, é um imperativo — precisamos de antivirais de amplo espectro em nosso arsenal antes que a próxima pandemia apareça. Mais do que isso, é uma oportunidade de demonstrar que patentes, quando bem aproveitadas, não só estimulam a inovação como também servem ao bem comum.
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