Patentes e saúde: vitória da Índia contra a Roche
Farmacêutica buscava perpetuar propriedade intelectual de remédio para doença rara com preço abusivo. Foi barrada pela justiça indiana – e agora país produzirá genérico por preço 40 vezes menor. O que isso ensina ao Brasil, que tem leis exageradamente pró-Big Pharma?
Publicado 15/10/2025 às 10:56 - Atualizado 15/10/2025 às 11:02

Na Índia, pacientes com atrofia muscular espinhal (AME) travaram uma batalha jurídica de dois anos e podem finalmente ter acesso ao genérico para essa doença rara, segundo decisão do Tribunal de Justiça de Delhi. “Somos profundamente gratos ao judiciário por um veredito que prioriza a vida, a compaixão e a justiça. Essa decisão vai salvar a vida de inúmeros pacientes com AME como eu e traz esperança para quem ela é mais necessária”, disse Purva Mittal, de 24 anos.
Na última quinta-feira, 9 de outubro, uma bancada de dois juízes do Tribunal reiterou uma decisão emitida em março. As decisões negam a liminar que a empresa suíça Roche havia pedido pela suspensão de uma versão genérica do Evrysdi (risdiplam) por infração de propriedade intelectual pela empresa de genéricos Natco. O juiz afirmou que havia motivos legais para acreditar que a patente da Roche poderia ser revogada por não ser considerada inovadora.
Além do caráter inovador do medicamento ter sido posto em cheque, esse é também o caso mais recente nos tribunais indianos em que fabricantes de genéricos enfrentam os fabricantes originais e em que os altos preços e a saúde pública são argumentos para que a justiça disponibilize um medicamento aos pacientes.
Durante o julgamento, o juiz Hari Shankar disse que a contestação feita pela Natco, em relação à antecipação e à obviedade da patente, tinha embasamento e se recusou a divergir da decisão anterior da Corte em março, como informou o jornal local The Mint. Na lei de patentes indiana, uma invenção é considerada “antecipada” se já tiver sido divulgada em uma patente ou publicação anterior e é “óbvia” se as mudanças em relação a uma patente anterior forem tão pequenas ou previsíveis que não representem uma inovação genuína.
A organização da sociedade civil Third World Network (TWN), com escritório na Índia, tem apoiado os pacientes com AME em suas representações legais perante a Corte Indiana. Para Chetali Rao, pesquisadora da TWN, a decisão do Tribunal envia uma mensagem direta às empresas farmacêuticas. “A decisão de hoje ressalta uma verdade simples: evergreening não é inovação. Quando se permite que as patentes de medicamentos que salvam vidas sejam mantidas por meio de pequenas modificações para emular uma nova invenção, quando claramente não há nenhuma, isso mantém os preços altos e força os pacientes a tratamentos inacessíveis”, disse ela.
INDÚSTRIA FARMACÊUTICA INDIANA – leia a série:
– Parte 1: Como a Índia se tornou a “farmácia do Terceiro Mundo”
– Parte 2: A Índia desafia as farmacêuticas do Norte
– Parte 3: A indústria de genéricos da Índia em risco?
A primeira decisão do Tribunal em março também enfatizou o entendimento de que a disponibilização do risdiplam genérico tinha o objetivo de promover a saúde pública, uma vez que é o único medicamento para AME no mercado indiano. Atualmente, na Índia, o risdiplam custa 81 mil dólares por ano para um paciente adulto. Nesse preço, pacientes não conseguem comprar o medicamento por conta própria e nem o governo consegue oferecer o suficiente para os mais de cinco mil indianos que vivem atualmente com AME e para as mais de 3 mil crianças que nascem a cada ano com a doença. A título de exemplo, no Brasil, somente um frasco de Evrysdi custa mais de 69 mil reais e um paciente adulto precisa consumir 30 frascos por ano dependendo da posologia.
Com a decisão, a versão genérica da Natco poderá estar disponível em pouco tempo e pode custar uma fração do preço: 179 dólares por frasco em vez de 6.982 dólares cobrados pela Roche. “Isso é de fato um grande alívio para mim e para meus amigos com AME. Agora o governo vai poder comprar e fornecer o medicamento aos pacientes por vários anos usando as 5 milhões de rúpias indianas do fundo da Política Nacional para Doenças Raras”, disse a paciente Seba P. A., de 26 anos, uma das requerentes do caso.
Em outubro de 2024, apenas 168 pacientes na Índia tinham acesso ao risdiplam por meio dos programas de caridade do governo indiano e da Roche. Agora, as crianças que tiverem acesso desde pequenas poderão interromper a progressão da doença e levar uma vida normal. Adultos poderão ter uma melhor qualidade de vida e aliviar os sintomas debilitantes da doença, que incluem enfraquecimento muscular, dificuldade para respirar, entre outros.
No futuro, a Roche prometeu buscar opções legais contra a decisão, o que pode levar o caso à Suprema Corte. No entanto, a decisão pode ter implicações maiores. Para o pesquisador da TWN, K.M. Gopakumar, outros países devem aproveitar essa oportunidade e promover o acesso para os muitos pacientes com AME em todo o mundo. “Eles podem obter o risdiplam genérico da Índia se as patentes do risdiplam não forem válidas em seus países ou considerar a emissão de uma licença compulsória”, disse ele.
Há também um aprendizado importante nessa última decisão para todos os países sobre como a saúde pública deve sempre ser priorizada em relação aos interesses corporativos. A Lei de Patentes indiana possui uma cláusula (seção 3(d)) que estipula que “a mera descoberta de uma nova forma de uma substância conhecida que não resulte no aumento da eficácia conhecida dessa substância” não é patenteável. Essa cláusula foi adicionada em 2005 após a entrada do país no Tratado de Propriedade Intelectual da OMC (TRIPS) a fim de criar um mecanismo para evitar o abuso corporativo.
Em contraste, no Brasil, a Lei de Propriedade Industrial de 1996, assinada durante o governo FHC, foi redigida tendo em consideração os interesses dos EUA e da indústria farmacêutica, segundo pesquisadores. A lei aumentou o escopo de patenteabilidade, concedendo patentes a medicamentos com pequenas modificações. Somente com a criação da Anvisa e o estabelecimento da anuência prévia em 2001, criou-se um mecanismo que interpretava os pedidos de patente sob a ótica da saúde pública. Segundo estudo, entre 2001 e 2006, a Anvisa indeferiu uma pequena parcela dos pedidos (3,4%), mas impôs restrições em quase metade deles (42%). Esse mecanismo foi extinto em 2021 durante o governo Bolsonaro.
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