Para permitir que quilombos alimentem escolas
Embora o Programa Nacional de Alimentação Escolar tenha como eixo central a aquisição de produtos de comunidades tradicionais, há muitos entraves que dificultam essa inclusão. O que fazer para reduzir os efeitos do racismo e das desigualdades nessas políticas públicas?
Publicado 15/09/2025 às 10:02 - Atualizado 15/09/2025 às 10:38

Título original: Da terra para a escola: a participação das comunidades tradicionais na alimentação escolar
As Comunidades Quilombolas brasileiras representam um legado histórico e cultural ímpar no país. São reconhecidas como grupos sociais distintos do restante da sociedade devido à sua identidade étnica, marcada pela ocupação e uso de territórios e recursos naturais como condição essencial para a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica. Embora reconhecidas e consideradas patrimônio cultural brasileiro, esses povos, outrora submetidos às injustiças da escravização, continuam enfrentando situações de invisibilidade, desigualdade social e étnico-racial, bem como dificuldades de acesso a serviços básicos, programas e direitos sociais e políticos.
Esse cenário evidencia a necessidade de fortalecimento das políticas públicas, a exemplo da efetivação dos princípios definidos pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que defende o acesso equânime aos bens e serviços públicos em todos os níveis de assistência e a redução das iniquidades. Essa política resulta da participação social, sobretudo dos Movimentos Negros e de Mulheres Negras, no contexto da luta pela democratização da saúde, e tem como marca central o “reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde”¹.
No campo das políticas públicas que tangem à questão da segurança alimentar e nutricional, destaca-se o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), inserido em diversas estratégias intersetoriais do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN 2025-2027), compondo uma política promotora da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN)². O programa consolidou-se como um dos pilares da promoção da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e da garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) no Brasil. Seu objetivo é contribuir para o desenvolvimento biopsicossocial, o rendimento escolar, a aprendizagem, a redução da evasão e da vulnerabilidade social, além de favorecer a formação de hábitos alimentares saudáveis desde a infância, respeitando a cultura alimentar local e regional³.
Um dos maiores avanços do PNAE foi a inclusão da Agricultura Familiar (AF) como eixo central de abastecimento. A Lei nº 11.947/2009, que regulamenta o programa e dispõe sobre o atendimento da Alimentação Escolar (AE) aos estudantes da educação básica, estabelece, entre suas diretrizes, a obrigatoriedade da aquisição de produtos oriundos da AF, com o propósito de incentivar a organização produtiva e estimular investimentos voltados ao atendimento da demanda das Entidades Executoras (EEx) e Unidades de Ensino (EU). Além disso, a legislação promove a conexão direta entre a oferta da AF e a demanda do programa, contribuindo para a preservação da cultura alimentar e das tradições locais, bem como para o enfrentamento das desigualdades sociais que atingem grupos populacionais como as comunidades quilombolas.
De acordo com as diretrizes do PNAE, a agricultura familiar exerce papel fundamental na aquisição de gêneros alimentícios. O art. 14 da Lei nº 11.947/2009 determina que, no mínimo, 30% dos recursos repassados pelo FNDE sejam destinados à compra de alimentos provenientes da AF. Essas conexões devem respeitar a vocação agrícola local, priorizando assentados da reforma agrária, comunidades quilombolas e indígenas, o que contribui para a adequação dos cardápios à cultura alimentar e para o fortalecimento socioeconômico dos territórios rurais tradicionais.
As comunidades quilombolas, indígenas e os assentamentos de reforma agrária têm papel estratégico no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), pois fortalecem a soberania alimentar, promovem a valorização da sociobiodiversidade e garantem a circulação de alimentos saudáveis, produzidos de forma sustentável e enraizados em saberes tradicionais. A inclusão desses grupos na política de compras públicas contribui para a geração de renda, a permanência no território e a preservação cultural, ao mesmo tempo em que amplia a diversidade nutricional da alimentação escolar. O art. 14 da Lei nº 11.947/2009 ainda estabelece que a prioridade na aquisição desses gêneros alimentícios da agricultura familiar é dos grupos de assentados da reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas, reforçando a centralidade desses povos na promoção do direito humano à alimentação adequada e no fortalecimento da economia solidária no campo.
Apesar dessas garantias, a população negra, em especial os povos quilombolas, enfrentam barreiras históricas que resultam em violações cotidianas de seus direitos e em processos de invisibilidade. Essas barreiras afetam diretamente o acesso às políticas e programas governamentais. Além disso, os sistemas alimentares tradicionais encontram-se ameaçados por fatores como perda de terras, desmatamento e contaminação de solos e nascentes, o que impacta os hábitos alimentares e as condições de vida e saúde dessas populações. Soma-se a esse quadro o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, associado à maior prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como diabetes, hipertensão arterial e câncer.
Persistem também desafios estruturais que limitam a efetivação da soberania e da segurança alimentar como conflitos partidários e políticos locais, ausência de documentação e conhecimento do processo por parte dos/as agricultores/as familiares, problemas vinculados às etapas de operacionalização do programa, que abrange os processos associados à elaboração, divulgação da Chamada Pública e suas etapas subsequentes; a comercialização/escoamento e distribuição da produção, além das regulamentações sanitárias. Torna-se, portanto, urgente uma política de reforma agrária mais efetiva, que garanta não apenas o acesso à terra, mas também condições para a manutenção produtiva sustentável com a participação da Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) e a regularização fundiária das terras de povos tradicionais indígenas e quilombolas.
A certificação quilombola, emitida pela Fundação Cultural Palmares, representa o primeiro passo, em consonância com a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na Bahia, até 2024, foram registradas 865 comunidades certificadas. Entretanto, a titulação dos territórios permanece como entrave crucial, cuja ausência inviabiliza a participação plena em programas institucionais, dificulta a organização em cooperativas e associações e compromete a reprodução física, social, econômica e cultural das comunidades. A disputa pelo território, além disso, tem gerado violência e mortes em várias comunidades quilombolas. A política de regularização fundiária, portanto, deve ser compreendida como parte de um processo de reparação histórica, imprescindível para a dignidade e a garantia de direitos, o que torna urgente a adoção de medidas que assegurem maior efetividade.
Além da questão fundiária, agricultores/as familiares quilombolas enfrentam desigualdades estruturais marcadas pelo racismo institucional, manifesta inclusive no acesso aos mercados institucionais como o PNAE. Esse contexto deve ser analisado à luz da concepção de racismo estrutural, o qual perpetua-se nas práticas institucionais que negam direitos historicamente constituídos como o acesso à terra, à certificação, à titulação, à alimentação adequada e à participação em políticas públicas e programas institucionais.
A luta dos povos tradicionais, nesse sentido, ultrapassa a dimensão fenotípica do racismo, pois envolve também a etnicidade, vinculada historicamente à escravização e ao genocídio da população negra e indígena. Isso resulta em múltiplas formas de desigualdades étnico-raciais e sociais e violências que moldam a vida social contemporânea destes grupos sociais. Essas comunidades enfrentam uma dupla via de discriminação estrutural e institucional expressa, por exemplo, na negação de direitos territoriais e culturais. Reconhecer essa realidade é fundamental para formular ações que reduzam as dificuldades enfrentadas por esses grupos na obtenção da documentação necessária para acessar aos Programas institucionais como o PNAE e o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), garantindo, assim, a efetivação de seus direitos e a inclusão nos mercados institucionais.
Nesse cenário, é possível inferir que a aquisição de alimentos da agricultura familiar quilombola pelas Entidades Executoras, não vem ocorrendo de forma efetiva, o que limita a compreensão real do alcance do PNAE junto a essas comunidades e compromete a avaliação de sua efetividade. A ausência de registro oficiais de agricultores/as quilombolas participando do programa evidencia uma lacuna importante, que expressa não apenas a fragilidade dos mecanismos de monitoramento e avaliação, mas também a continuidade de processos de invisibilização a que esses povos estão historicamente submetidos. Isso só reforça o racismo institucional presente nas políticas públicas e dificulta a análise de equidade na execução do PNAE, perpetuando assim um ciclo de exclusão.
Esse quadro aponta para a necessidade de maior investimento em políticas públicas específicas para as populações tradicionais. A implementação de ações que favoreçam a compra de alimentos desses pequenos/as produtores/as, além de fortalecer a preservação da cultura alimentar, contribui para a promoção da segurança alimentar e nutricional, o fortalecimento dos sistemas locais de abastecimento e consumo, a oferta de alimentos adequados e saudáveis, a retirada de produtos ultraprocessados e processados da alimentação escolar e o combate às desigualdades sociais.
Em suma, compreender a configuração das políticas públicas voltadas às comunidades quilombolas e indígenas é fundamental para avaliar a sua implementação, o alcance e a sua efetividade. Contudo, a realidade social brasileira revela uma resistência histórica em escutar as reivindicações desses povos e em considerar suas demandas no território nacional. Tal resistência é alimentada, entre outros fatores, pela concepção equivocada de uma suposta “democracia racial”, que busca encobrir as desigualdades socioeconômicas e étnico-raciais e demais vulnerabilidades vivenciadas pelas comunidades quilombolas, dificultando a formulação e a efetivação de políticas públicas destinadas a reparar uma realidade estruturalmente racista.
Referências
Brasil, Decreto nº 7.272, de 25 de agosto de 2010. Regulamenta a Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada, institui a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PNSAN, estabelece os parâmetros para a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7272.htm Acesso em: 12 de maio de 2024.
Brasil. Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília, DF: Casa Civil da Presidência da República, 2007a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm Acesso em: 30 de julho de 2024.
Brasil. Fundação Cultural Palmares. Certificação Quilombola [Internet]. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/palmares/pt-br/departamentos/protecao-preservacao-e-articulacao/QUADROGERALPDF.pdf Acesso em: 10 de outubro de 2024.
Brasil. Resolução nº 2, de 10 de março de 2023. Altera a Resolução CD/FNDE nº 6, de 8 de maio de 2020, que dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE. Ministério da Educação, 2023.
Brasil. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Nota técnica nº 3744623/2023/DIDAF/COSAN/CGPAE/DIRAE: Participação de povos e comunidades tradicionais no Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE. Brasília, DF: FNDE, 18 out. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/pnae/media-pnae/NTParticipaodePovoseComunidadesTradicionaisnoPNAE.pdf. Acesso em: 18 jun. 2025.
Brasil. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Resolução CD/FNDE nº 21, de 16 de novembro de 2021: altera a Resolução CD/FNDE nº 6, de 8 de maio de 2020, que dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Diário Oficial da União, Seção 1, Brasília, DF, 16 nov. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/resolucoes/2021/resolucao-no-21-de-16-de-novembro-de-2021. Acesso em: 20 de abril de 2024.
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