Encarar o perverso ciclo desigualdade-pandemia
ONU lança hoje, em Joanesburgo, documento que ajuda a compreender crises sanitárias globais e propõe novas bases para enfrentá-las. Entre as saídas está o fim da sangria provocada, no Sul Global, pelo rentismo. Na mesa, a ex-ministra brasileira Nísia Trindade
Publicado 03/11/2025 às 10:05 - Atualizado 03/11/2025 às 11:11

Lançamento do relatório “Quebrar o ciclo desigualdade-pandemia – construir verdadeira segurança sanitária numa era global”.
Segunda-feira, 3/11, a partir das 10h de Brasília
Transmissão ao vivo pelo jornal Mail & Guardian. Confira aqui.
Numa época de enormes avanços científicos, como as vacinas produzidas a partir do mRNA, as pandemias continuam a assolar a humanidade. Pior: fazem parte de um ciclo perverso, em que a pobreza gera insegurança sanitária e doenças; e estas, por sua vez, produzem ainda mais desigualdade e miséria. Decisões políticas, a exemplo do desfinanciamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) e seus programas pelos Estados Unidos, agravam o desastre.
Uma comissão especial da ONU – o Conselho Global sobre Desigualdades, AIDS e Pandemias – apresenta hoje (3/11), a partir das 10h de Brasília, um documento em que descreve em detalhes o processo e propõe alternativas concretas. O relatório intitula-se “Quebrar o ciclo desigualdade-pandemia – construir verdadeira segurança sanitária numa era global”. Na mesa que o torna público, ao lado de outras personalidades internacionais ligadas à Saúde, está a ex-ministra brasileira Nísia Trindade, também membro do Conselho Global.
Presidido por Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, o Conselho Global conduziu, nos últimos dois anos, pesquisa que expôs o ciclo de potencialização da disseminação de doenças e, em particular, o papel central da desigualdade. Observando os desequilíbrios sociais internos em diversos países, o estudo apontou que “em nações mais desiguais, houve taxas significativamente mais altas de mortalidade por COVID-19, maior incidência de infecção por HIV/AIDS e mais mortes pela doença”.
O cenário explica-se pela dificuldade de essas nações agirem com eficiência em momentos de crise. Os países com menores índices de desigualdade, por sua vez, demonstraram maior resiliência. O relatório destaca o cenário africano, em que países que tiveram sucesso em equilibrar as taxas de HIV/AIDS também registraram queda nos níveis de desigualdade.
Leia aqui o relatório “Quebrar o ciclo desigualdade-pandemia – construir verdadeira segurança sanitária numa era global”.
Além da desigualdade interna, as diferenças entre os países também têm enorme relevância. O relatório aponta como exemplo o acesso desigual a vacinas e outros medicamentos – o que resultou em infecções evitáveis por HIV/AIDS, Covid-19 e Mpox. O fenômeno tem sido, por sinal, associado ao surgimento de variantes e cepas mais resistentes. Por isso, o debate sobre as responsabilidades comuns, mas diferenciadas, retorna à ordem do dia. As dificuldades, que o relatório a ser lançado hoje evidencia, tornaram-se claras durante a recente pandemia de Covid-19. As vacinas foram desenvolvidas em grande medida graças a financiamento público; mas suas patentes terminaram entregues a corporações transnacionais. Estas exigiram, pelas doses que produziam, preços impagáveis pela maioria dos países.
Os obstáculos persistem. A longa negociação acerca do Acordo de Pandemias é sintoma. Um dos pontos centrais de discordância, descrita em diversos textos de Outra Saúde, é a recusa dos países ricos a participar de esforços internacionais para enfrentamento às crises sanitárias locais. A eleição de Donald Trump, nos EUA, pode frustrar os pequenos avanços registrados nos últimos anos. O relatório mostra que o número de infecções por HIV caiu, em 2024, ao patamar mais baixo em três décadas. Em 2025, contudo, a Casa Branca anunciou cortes nos programas de combate à doença, pondo em xeque a continuidade do UNAIDS, o programa da ONU contra HIV e AIDS.

Novas estratégias
O documento, publicado às vésperas de nova reunião do G-20 (22 e 23/11, também em Joannesburgo) vai muito além das denúncias. Uma nova estratégia de enfrentamento das pandemias, proposta por ele, vai às causas do problema. É preciso, afirma, estancar os processos que ampliam a sangria de recursos do Sul Global.
Um deles é o rentismo, expresso pelo pagamento de juros a instituições financeiras privadas e públicas. A Covid-19 empurrou 165 milhões de pessoas para a pobreza, enquanto os mais ricos multiplicavam suas fortunas. Os países em desenvolvimento, acumularam 3 trilhões de dólares em dívidas, que os impede de investir no combate às desigualdades e às possíveis futuras pandemias.
Diante deste cenário, o relatório propõe uma nova estratégia de segurança sanitária global. Ela poderia quebrar o ciclo perverso por meio de ações práticas e factíveis sobre os determinantes sociais e econômicos das pandemias — tanto no âmbito nacional quanto internacional. O conselho aponta uma estratégia chamada PPR, Prevenção, Preparação e Resposta.
As recomendações passam pela renegociação da dívida dos países até 2030. É um caminho para derrubar barreiras financeiras e permitir que todas as nações tenham capacidade de enfrentar suas desigualdades, o fortalecimento da pesquisa e do desenvolvimento local. Defende-se também o investindo em infraestrutura multissetorial e em iniciativas lideradas pelas comunidades, em parceria com os governos.
O Conselho Global sobre Desigualdades, AIDS e Pandemias anuncia, no relatório, que utilizará as conclusões do documento para orientar seu diálogo com o G20, instituições financeiras internacionais e líderes da área de saúde. “Ignorar esse chamado pode gerar consequências devastadoras. Ações concretas para enfrentar as desigualdades podem proteger o mundo da próxima crise global de saúde e, ao mesmo tempo, ajudar a encerrar as que ainda persistem”, diz o texto de cujo lançamento Nísia Trindade participará.
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