Os novos (e antigos) desafios do câncer no SUS

Maior parte dos casos da doença são relacionados a fatores ambientais – de alimentação a mudanças climáticas. Sistema de saúde brasileiro está pronto para fazer prevenção e controle, mas precisa de mais recursos. Seminário na Fiocruz debate as soluções

Créditos: Reprodução/TV Brasil
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Seminário Controle do Câncer nos século XXI: desafios globais e soluções locais
Data: 
27 e 28 de novembro
Horário: 
8h às 18h30 (dia 27)8h30 às 16h30 (dia 28)
Local:
 Hotel Windsor Flórida – Rua Ferreira Viana, 81, Catete, Rio de Janeiro, RJ
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Nesta semana, entre os dias 27 e 28, a Fiocruz recebe o seminário Controle do Câncer no Século XXI: desafios locais e globais. Promovido pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da instituição do Rio de Janeiro, o evento reúne importantes especialistas brasileiros e estrangeiros e visa jogar luz sobre uma das principais causas de morte do mundo contemporâneo.

Para analisar esse quadro epidemiológico, cuja alta incidência já faz parte do cotidiano dos países desenvolvidos e se ampliará nos chamados em desenvolvimento, Outra Saúde entrevistou Luiz Santini, ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e um dos principais palestrantes do evento.

“Os países do chamado Sul Global atuam muito em função da demanda, isto é, na medida em que aumenta o número de casos. E, isso também é importante, atuam de acordo com uma pressão da indústria e de lobbies para incorporação de medicamentos, o que custa muito dinheiro. Mas o acesso da população à política de saúde pública é muito ruim, muito precário”, contextualizou.

Nesse sentido, Santini, autor do livro SUS: uma biografia – lutas e conquistas da sociedade brasileira (2024), elogia o atual estágio brasileiro na formulação de estratégias de controle e oferta de tratamento da doença, o que se condensou mais recentemente na Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC), promulgada em 2023.

Em sua visão, apesar das limitações orçamentárias, o SUS aparece como uma vantagem imensa do país no controle das variadas neoplasias, uma vez que seu caráter universal e integrado entre os diversos níveis de atenção apresenta melhores condições de enfrentamento da doença.

“A política vem sendo construída há mais de 20 anos. O câncer se explica pelos componentes genéticos em menos de 10% dos casos. A maior parte dos casos tem fatores ambientais envolvidos, não só ecológicos como também alimentação adequada, falta de atividade física, enfim, o modo como as pessoas vivem”, pontuou.

Dessa forma, o entendimento da saúde como socialmente determinada, conforme princípios da Reforma Sanitária Brasileira, é um aliado importante para a organização de ações que visem atacar a doença antes mesmo de sua possível manifestação.

E, diante da crônica limitação de investimentos públicos no SUS, sua estrutura de acompanhamento do paciente desde a atenção básica é fundamental para o sucesso da prevenção do câncer, que tende a aumentar não só pelo envelhecimento progressivo da população como também pela crise climática que já incide na vida social.

“A cada dia, fica mais evidente que a saúde não é simplesmente a ausência de doença. Ela depende de condições sociais e econômicas de vida das populações. Para não ir muito além de exemplos objetivos, os desastres climáticos que têm acontecido no Brasil recentemente têm uma repercussão na saúde que muitas vezes é ignorada”, explicou.

Na entrevista, Santini também aborda questões como educação dos profissionais de saúde, que devem ser preparados para entender a relação de sua especialidade com os fatores externos, e da própria comunicação, em tempos onde a má fé e a falta de critérios na definição de temas relevantes influenciam no entendimento do público de uma política pública relevante.

“Há um longo caminho de possibilidades e oportunidades que o Brasil tem para fazer frente a esse grande problema de saúde pública da atualidade. Mais de 700 municípios brasileiros já têm câncer como primeira causa de morte. É uma coisa muito significativa”, sintetizou.

Leia a entrevista completa com Luiz Santini.

Qual sua expectativa para o Seminário Controle do Câncer no século XXI: desafios globais e soluções locais e por que este mote no título do evento?

A expectativa é bastante positiva, estamos alinhados com pessoas que participam da discussão em plano nacional e internacional. Temos observado um crescimento bastante significativo da incidência de câncer na maior parte dos países do mundo, sobretudo um aumento nos países mais desenvolvidos. A diferença é que, embora a incidência esteja aumentando mais lentamente nos países menos desenvolvidos, de média e baixa renda, a mortalidade aumenta, enquanto diminui nos desenvolvidos.

Por isso o câncer é um desafio global de saúde pública: atinge a todos os países, mas há uma diferença do ponto de vista do enfrentamento. Nós precisamos de acesso ao tratamento e controle, além das medidas de prevenção, que são até mais desafiadoras.

No Brasil, isso envolve a dimensão do país e da população. Com a desigualdade social, esse desafio é ainda mais significativo.

Recentemente, o Ministério da Saúde anunciou investimentos em cirurgia robótica no Inca, um hospital inteligente que pode monitorar consultas e exames em escala nacional a partir de um hub no Hospital das Clínicas de São Paulo. Institutos nacionais de pesquisa têm conseguido avanços em vacinas de RNA mensageiro para câncer. Essas ações mostram que a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC) lançada em 2023 já se materializa em avanços na área?

A própria pergunta percorre uma trajetória, que antes contou com as ações de prevenção básica, como educação alimentar e tabagismo, agora com adoção de novas soluções tecnológicas, como, por exemplo, a construção de hospitais inteligentes, o uso de telemedicina, não só para teleatendimento, mas também para tele-educação, capacitação etc.

Há um longo caminho de possibilidades e oportunidades que o Brasil tem para fazer frente a esse grande problema de saúde pública da atualidade. Mais de 700 municípios brasileiros já têm câncer como primeira causa de morte. É uma coisa muito significativa.

Já a PNPCC passa por um processo que vem se desenvolvendo ao longo dos anos. Não é propriamente uma novidade. A novidade é a aprovação pelo Congresso Nacional. Isso é muito importante porque o Brasil talvez seja um dos poucos países do mundo que tenha uma política nacional aprovada como lei.

Mas essa política vem sendo construída há mais de 20 anos, ao longo de toda a história natural da doença. E o que é a história natural da doença? O câncer é uma doença que se explica pelos componentes genéticos em menos de 10% dos casos. A maior parte dos casos tem fatores ambientais envolvidos, não só ecológicos como também alimentação adequada, falta de atividade física, enfim, o modo como as pessoas vivem, seu dia a dia, os fatores de risco envolvidos.

Desde as atividades de saúde pública geral até a incorporação de novas tecnologias, novos avanços na área de biotecnologia, de genética, de imunologia, tudo faz parte dos desafios que estão envolvidos na questão do controle do câncer. Porque não se trata de uma coisa que se possa resolver de uma hora para outra, mas de uma política de Estado, que tem início, mas não tem fim.

A Política Nacional de Controle do Câncer é uma estratégia de encaminhar essa ação, que envolve prevenção primária e se adequa a modificações eventuais da reprodução da doença. Aqui, insisto na questão do tabaco, pois temos a maior experiência do mundo de resultado de controle do tabaco, conseguimos reduzir a incidência de câncer de pulmão no país por conta de uma ação efetiva de controle, até a incorporação de novas tecnologias.

A lei é um novo suporte que determina ações, e nós temos várias estratégias que estão sendo implementadas para ser efetivas. É um grande desafio, precisa de muito dinheiro, a quantidade de recursos aplicados ainda não é suficiente, e eu acredito até que nunca vai ser, porque as necessidades vão sempre aumentar, mas é necessária uma participação dos cientistas, dos profissionais e da sociedade no acompanhamento.

Qual a importância do debate à luz do contexto epidemiológico que marcará o país nos próximos anos? O SUS estará preparado com o atual nível de investimentos e demanda social sobre seus serviços?

De certa maneira, sempre disputaremos espaço com várias prioridades. Do ponto de vista epidemiológico, convivemos com uma situação de transição, nós temos ainda doenças que são preveníveis por imunização e ainda não alcançaram a necessária cobertura de vacina. Portanto, temos consequências dessas doenças na vida adulta das pessoas, como, por exemplo, a tuberculose. É incrível que ainda tenhamos de conviver com complicações de tuberculose por falta de aplicação da vacina BCG na infância.

Isso é para dizer que disputamos o controle de todas as doenças dentro das prioridades do sistema de saúde. É necessário fazer ações cooperativas e não de disputa. É um grande desafio, mas a vantagem de ter o SUS é justamente essa. Como o sistema tem uma concepção global de atuação, dá a possibilidade de não ser competitivo internamente, mas cooperativo.

Devemos buscar, através dos mecanismos de atuação do próprio Sistema Único de Saúde, a cooperação nas diversas áreas de atuação, de atenção referenciada de ambulatório, de especialidades, de nível terciário e quaternário, que já envolve tratamentos mais complexos, mais sofisticados e muito mais caros.

Em relação aos países do chamado Sul Global, como você enxerga este cenário epidemiológico? Podemos dizer que o Brasil conta com alguma vantagem estrutural?

Sim. Pelos dados que são apresentados, temos alguma vantagem. Temos trabalhos recentes publicados na revista Lancet, em estudos feitos pelo IARC (Agência Internacional da Pesquisa em Câncer, da Organização Mundial de Saúde), que mostram que a maioria dos países deste eixo não tem uma política estruturada de controle de câncer.

Esses países atuam muito em função da demanda, isto é, na medida em que aumenta o número de casos. E, isso também é importante, atuam de acordo com uma pressão da indústria e de lobbies para incorporação de medicamentos, o que custa muito dinheiro. Mas o acesso da população à política de saúde pública é muito ruim, muito precário.

Nesse sentido, apesar das nossas dificuldades, temos uma legislação apropriada, uma política adequada e uma estratégia definida. Porém, falta mais recurso.

O epidemiologista e sanitarista Jaime Breilh lançou recentemente a obra Epidemiologia Crítica e a saúde dos povos – ciência ética e corajosa em uma civilização doentia. Enquanto isso, tivemos uma COP30 esvaziada, que apesar das boas intenções mostram a estagnação global em se conseguir acordos para uma efetiva transição ecológica. Numa reflexão mais ampla, uma política de prevenção a doenças crônicas como o câncer não teria chance de sucesso apenas se conectada a avanços em questões externas à saúde e seus serviços?

Não tenho a menor dúvida. A cada dia fica mais evidente que a saúde, como o Sérgio Arouca já defendia lá desde a 8ª Conferência Nacional de Saúde, não é simplesmente a ausência de doença.

A saúde tem determinantes sociais, econômicos e políticos que são muito mais amplos do que propriamente o aparecimento de uma doença em função de um desarranjo biológico qualquer. Seja esse desarranjo provocado por um agente externo ou genético, autóctone. A saúde é muito mais do que isso. A saúde depende de condições sociais e econômicas de vida das populações.

E agora, cada vez mais claramente, depende também das condições ambientais, no sentido do meio ambiente, da preservação da possibilidade da vida do planeta, que está ameaçada para além da saúde das pessoas individualmente.

Tudo que se alcançou de longevidade e possibilidade de as pessoas viverem mais, pode estar ameaçado por essa grande crise sistêmica da sobrevivência do próprio planeta. Para não ir muito além de exemplos objetivos, os desastres climáticos que têm acontecido no Brasil recentemente, como as chuvas do Rio Grande do Sul em 2024 e, neste ano, o ciclone no Paraná, chuvas na região Sul, eventos de enchentes e desabamentos, têm uma repercussão na saúde que muitas vezes é ignorada.

O caso tipicamente estudado de Gaza mostra uma redução importante da expectativa de vida da população. Vai viver menos porque morreu mais gente, porque se adoece mais, sem contar os fatores emocionais, psicológicos, envolvidos em toda essa crise. A questão da comunicação hoje é um elemento crítico da crise da saúde. O adoecimento mental hoje, em função, por exemplo, das fake news, é uma coisa absolutamente comprovada e demonstrada.

Quando fazemos abordagens temáticas, olhamos questões específicas. Mas quando se insere no ambiente da crise global, sanitária e socioeconômica, realmente entra uma dimensão que a questão setorial não consegue resolver.

Para a saúde pública e um sistema como o SUS, que tem o compromisso da atenção universal e integral, a estratégia de implementação é extremamente complexa e envolve todos os setores, quer dizer, os níveis de organização do sistema, mas também muito fortemente a sociedade, cuja participação é fundamental, não só na reivindicação como também compreensão do problema as estratégias de enfrentá-lo.

Uma das críticas que eu costumo fazer sobre a educação médica e dos profissionais da saúde é sobre não contemplar de forma adequada, do meu ponto de vista, as questões que estamos falando aqui. Quer dizer, a educação é muito mais voltada para tecnologias sofisticadas, complexas, mas não leva em conta os determinantes sociais e econômicos da saúde. A meu ver, isso gera uma deformação no profissional. Ele corre risco de aparecer apenas como um demandante de tecnologia e não um profissional que está ali para resolver problemas mais complexos.

Há, inclusive, um conflito permanente entre a expectativa dos médicos e as reais possibilidades e até necessidades do sistema. E como o médico geralmente é um grande formador de opinião, a sociedade se influencia muito mais por sua expectativa que pela sua real necessidade. É um ambiente muito complexo.

Outro tema externo ao qual tem se dado mais importância nos últimos tempos é a comunicação. Como, em seus diversos matizes, ela pode contribuir para a prevenção e combate ao câncer no Brasil?

A programação do nosso seminário tem uma sessão inteiramente dedicada à comunicação, inclusive com a participação de jornalistas, especialistas em comunicação da própria Fiocruz e também de fora. Isso mostra a importância que nós temos dado ao tema de uma maneira geral. Temos exemplos absolutamente eloquentes, como agora, novamente, um grupo de médicos começou a divulgar que a vacina com a proteína Spike poderia estar provocando algumas outras doenças. Uma coisa falsa.

E, além das notícias falsas, existem as notícias verdadeiras, mas mal colocadas. Por exemplo, às vezes lemos coisas como “surgiu uma nova droga que cura câncer na maioria dos casos”. E essa informação, muitas vezes, não é verdadeira. Significa, hipoteticamente, mas é frequente, que algum estudo em fase 1, experimental, às vezes feito só em animais, demonstrou uma sobrevida atribuída de 30%. Mas a sobrevida anterior era de 6 meses. Não significa nada, portanto. Mas, como a notícia é que a sobrevida aumentou em 30%, as pessoas vão querer aquela droga. Isso é um problema da comunicação – não dos meios de comunicação.

Por isso, nós incluímos no seminário uma mesa específica para abordar os aspectos complexos da comunicação humana. A emissão de uma ideia pode ser totalmente deturpada na hora em que o leitor recebe aquela informação e precisa interpretá-la com seu próprio ferramental. E se isso for feito de forma distorcida, pior ainda. A comunicação tem uma grande responsabilidade nas discussões de saúde e, sem dúvida, na política de controle do câncer.

Aproveito a entrada neste tema para tentar modificar uma certa mensagem: precisamos acabar com a ideia da “guerra contra o câncer”. O controle do câncer é o controle do câncer. São mais de 200 doenças que têm uma coisa em comum: a multiplicação desordenada de células. Mas a abordagem, o tratamento, o controle, a forma de encaminhamento, é muito diferente para cada uma delas. Não estamos falando de combate com a ideia de que aquilo é uma guerra e vamos acabar com o câncer. Não é assim. Estamos falando de controle. Ou seja, a ideia é que a pessoa, mesmo que não tenha cura para aquela doença específica, possa controlá-la e ter uma sobrevida de qualidade.

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