Os negacionistas se aliam… às cáries
Nos EUA, Kennedy Jr. ordena fim da fluoretação da água, medida com décadas de comprovação. Sanitarista de larga trajetória na saúde bucal expõe ridículo da proposta do norte-americano e lembra: flúor reduziu em 72% as cáries entre crianças paulistas
Publicado 11/06/2025 às 06:00 - Atualizado 11/06/2025 às 14:52

Por Paulo Capel Narvai, em A Terra É Redonda
Título original: Fluoretação da água – Franco Montoro contra Kennedy Jr.
Washington, 2025. Kennedy Jr, o “ministro da Saúde” de Donald Trump, mandou o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) recomendar aos governos locais que interrompam a fluoretação das águas de abastecimento público. Em 1999, o CDC considerou a fluoretação uma das dez mais importantes conquistas da saúde pública no século XX, nos Estados Unidos (EUA).
Aquele país, pioneiro no uso dessa tecnologia, iniciada em 1945 em Grand Rapids, Michigan (ver Fig. 1) é líder mundial em número de pessoas beneficiadas por essa tecnologia de saúde pública, recomendada não apenas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mas pelas principais entidades de profissionais de odontologia e saúde pública, e institutos renomados de pesquisa científica na área da saúde. A meta oficial, antes de Donald Trump assumir, era avançar a cobertura da fluoretação de 72,3% em 2022 para 77,1% da população em 2030. Em 2000 a fluoretação beneficiava cerca de 65% dos estadunidenses.

A fluoretação da água é uma tecnologia que preconiza o ajuste da concentração de flúor, que sob a forma química de fluoreto está naturalmente presente em todas as águas, para níveis adequados, ou seja, para uma concentração segura para a saúde humana, animal e ambiental, e que contribua para prevenir cárie dentária.
Como a concentração desse elemento químico na água bruta (pré-tratamento) varia naturalmente de menos 0,5 mgF/L a mais de 10mgF/L, a fluoretação consiste em impedir que águas brutas com concentrações superiores a 1,5 mgF/L sejam distribuídas à população e, se houver necessidade, adicionar fluoretos em quantidades tais que sua concentração na água se situe em torno de 0,7 mgF/L. São aceitáveis pequenas variações em torno desse valor ideal, pois não afetam nem a segurança nem a eficácia, em termos preventivos.
Na estação de tratamento de água (ETA) o processo é, tecnicamente, similar ao utilizado para adicionar cloro à água. Atualmente é simples, prático, seguro e geralmente controlado por computação eletrônica, nas ETA em que esse controle é indispensável. Há evidência científica robusta sobre sua segurança sanitária, eficiência e eficácia para prevenir cárie dentária.
Porém a maior autoridade sanitária dos EUA no atual governo é negacionista. Assim como no caso das vacinas, Kennedy Jr supõe que fluoretos são venenos e que “devem ser retirados de todas as águas”. Nas águas dos mares e oceanos, onde surgiu a vida na Terra, as concentrações de fluoretos são da ordem de 1,0 mgF/L, um pouco acima da concentração considerada ótima para as águas de abastecimento público.
Kennedy Jr não sabe sobre o que fala. Sua ignorância não deveria ser levada a sério. Entre tantos disparates que vem cometendo há anos, inclui-se a afirmação de maio de 2025 de que as revistas científicas, The Lancet, The New England Journal of Medicine e JAMA, dentre as mais respeitadas na área da saúde, seriam “corruptas”. Com base nesse, por assim dizer, “diagnóstico”, o secretário de Saúde de Donald Trump proibiu pesquisadores ligados a órgãos do governo dos EUA de publicarem seus artigos nesses periódicos.
Pior: as ideias de Kennedy Jr têm sido levadas muito a sério. Salt Lake City, dentre outras cidades menores, está seguindo a recomendação do “ministro” de Donald Trump. O Estado de Utah interrompeu a fluoretação da água em sua capital em 7 de maio de 2025. Se as adesões à insensatez prosseguirem, o retrocesso terá consequências funestas para a saúde nos EUA, pois serão excluídas do benefício da medida as principais cidades do país, inclusive aquelas que, como Tucson, El Paso, Jacksonville e Colorado Springs, contam com águas naturalmente fluoretadas em níveis ótimos. Remover fluoretos das águas dessas cidades seria um notório crime contra a saúde pública (ver Fig.2).

São Paulo, 1985
Há 40 anos, em junho de 1985, o governador André Franco Montoro (1916-1999) saiu do Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, e foi à sede da Associação Paulista de Saúde Pública (APCD), à época localizada no bairro da Bela Vista.
Lá, na presença de cirurgiões-dentistas, engenheiros, médicos, políticos e autoridades públicas, assinou o documento que determinava à Secretaria de Obras e Meio Ambiente, cujo titular era João Oswaldo Leiva (1935-2000), autorizar a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) a “fluoretar as águas da capital paulista”. A Sabesp vinha, já há vários anos, fazendo isso, com sucesso, em municípios do interior do Estado, nos quais era a concessionária do sistema de tratamento da água (ver Fig.3).

Desde o início de 1985, porém, a empresa começara a ampliar o uso dessa tecnologia de saúde pública nos municípios do ABCD, na região metropolitana de São Paulo (RMSP).
A decisão de Montoro punha ponto final em um longo processo de idas e vindas sobre o assunto, que se iniciara ainda no governo estadual (1955-1959) de Jânio Quadros (1917-1992). As idas e vindas decorriam de suposta insegurança sanitária, que havia sobretudo nos anos 1950 e 1960, sobre o uso da fluoretação. Mas nos anos 1970 e 1980, havia outro aspecto que causava dificuldades à adoção da medida: o suprimento de flúor, que não poderia ser interrompido, uma vez iniciada a fluoretação, pois a eficácia da tecnologia depende da continuidade de sua aplicação.
Na campanha eleitoral de Franco Montoro ao governo paulista, em 1982, o médico pediatra e professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), João Yunes, fora designado pelo candidato para coordenar a comissão de saúde, na estrutura organizativa da campanha. Yunes conhecia a fluoretação e seu potencial preventivo. Pediu então a um grupo de trabalho (GT) que se ocupava de assuntos odontológicos e saúde bucal, que avaliasse a oportunidade de incluir algo sobre fluoretação no programa eleitoral de Montoro.
Após as costumeiras e acaloradas discussões nesses casos, o GT e a comissão de saúde aprovaram a fluoretação. O programa apresentado aos eleitores durante a campanha eleitoral previa que na área da Saúde seria dada “prioridade para a odontologia preventiva” e incluía nas ações a desenvolver a “fluoretação das águas de consumo público”.
Eleito governador, Franco Montoro nomeou João Yunes, seu Secretário de Estado da Saúde. Em meu ‘Memorial’ para o concurso de Livre-Docência na USP (2001), disponível na Biblioteca da FSP/USP conto que “convidado pelo professor Yunes fui assessorá-lo na SES-SP, com a responsabilidade de coordenar as ações de saúde bucal e fazer cumprir o programa de saúde que constava do Programa de Governo de André Franco Montoro.” Assim foi feito.
Prossigo no Memorial: “nos anos 1980 houve uma grande expansão da fluoretação das águas no Brasil, decorrente de decisão governamental federal de apoiar financeiramente iniciativas nessa área e consequência também da eleição direta de governadores. No Estado de São Paulo, apesar da oposição de alguns setores desinformados, teve início a fluoretação dos municípios da região metropolitana de São Paulo e, no dia 31 de outubro de 1985, a capital iniciou oficialmente a fluoretação. Sendo na época o coordenador estadual de saúde bucal estive à frente dos embates para dar continuidade à fluoretação no Estado, expandindo a medida em dezenas de municípios do interior, e iniciar e não interromper o processo na região metropolitana e na capital paulista. Quase duas décadas depois é enorme a satisfação de constatar o impacto dessa medida nos níveis de cárie, sobretudo em crianças, conforme se vem demonstrando em várias pesquisas sobre o tema”.
Em 2025, são já quatro décadas depois. E várias dúvidas ou falsas questões sobre a fluoretação da água estão respondidas pela situação epidemiológica da cárie dentária na cidade de São Paulo.
São Paulo, 1999
Em 1999, quando Montoro faleceu, publiquei no extinto Jornal do Site Odonto, um artigo em que comentava a decisão tomada em 1982 e suas consequências.
Em “Montoro e a saúde bucal”, lamentei sua morte e escrevi que “além de republicano dos bons, Montoro foi um democrata que jogou papel decisivo na reconquista das liberdades democráticas no processo da abertura política dos anos 1980. Se hoje vivemos num país democrático (injusto e iníquo, ainda, mas democrático…) devemos isso a muitos brasileiros – entre os quais, sem dúvida, Montoro. Em 1982 ajudei a elegê-lo governador do Estado de São Paulo: votando nele, fazendo sua campanha e auxiliando a definir seu programa de governo para a área da saúde – mais especificamente para a área de saúde bucal.
Posteriormente, assumi a função de coordenador estadual de saúde bucal (1983-1985). Nas poucas vezes em que participei de reuniões amplas, nas quais também estava Franco Montoro, pude testemunhar a ação de um homem público lúcido e sensível aos problemas do povo. Foi muitas vezes injustiçado como alguém que “demorava para decidir”. Pode ser. O que sei é que o que decidimos como programa de campanha para a área de saúde bucal foi implementado item por item, com total apoio do governador. Nada ficou sem implementar. A meu ver duas ações do mais alto significado foram desenvolvidas no governo Montoro: a fluoretação das águas de abastecimento público da região metropolitana de São Paulo, incluindo a Capital, e a ‘fixação de dentistas no interior’.
Havia em 1983 mais de 200 municípios paulistas sem um único cirurgião-dentista residente. A ação de Montoro foi decisiva para alterar esse quadro. A fluoretação das águas não se limitou à Grande São Paulo, mas nessa região o desafio operacional era maior e as resistências políticas também. Recebíamos na Secretaria de Estado da Saúde várias manifestações contrárias ao início da fluoração. Alegava-se de tudo: ineficácia, engodo científico, medicação em massa, custo elevado, insegurança sanitária da medida, demagogia de políticos, desatualização científica dos técnicos da área. As pressões iam até o Palácio dos Bandeirantes. Montoro resistia.
As pressões, de cirurgiões-dentistas, médicos e entidades [que se autodenominavam] ‘ambientalistas’ aumentavam. Montoro resistia. Convidado, foi à sede da Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas falar do projeto de fluoretar a Grande São Paulo e ouvir os dirigentes das entidades odontológicas. Obtido o “sim” dos dentistas, confirmando o que estava em seu programa de governo foi em frente: em 31 de outubro de 1985 iniciou-se oficialmente a fluoretação das águas da Capital. (…) Centenas, provavelmente alguns milhares de pessoas, são responsáveis por esta importante conquista da saúde pública em São Paulo. Montoro foi uma dessas pessoas. Suas ações e decisões produziram esses efeitos. Pode-se até argumentar que isso é pouco e que tais decisões não foram assim tão difíceis de tomar. Pode ser: só que antes dele, ninguém as tomou. Essa, a diferença”.
São Paulo, 2025
Por que se considera, afinal, a fluoretação da água na capital paulista uma “importante conquista da saúde pública”? Por que deveríamos comemorar essa efeméride? Por que é correto afirmar que Franco Montoro estava corretíssimo em 1985 e Kennedy Jr está completamente equivocado em 2025?
Simples: o cenário epidemiológico da cárie dentária mudou completamente na população paulistana, notadamente entre crianças, suas principais vítimas, nos 40 anos que separam 2025 de 1985.
Em artigo científico em fase de publicação, no qual trabalhei com colegas pesquisadores da USP, apresentamos, dentre outros os seguintes dados, para a idade-índice de 12 anos, preconizada pela OMS para essa finalidade: “Em 1986, a cárie dentária acometia 94,9% das crianças paulistanas, nessa idade. Após os primeiros dez anos de fluoretação da água a prevalência da doença declinou para 68,1% em 1996. Uma expressiva redução de 72%”. (ver Fig. 4).

Em 1986, cada criança paulistana estava com cárie, em média, em 6,47 dentes permanentes. Dez anos depois, em 1996, essa média havia diminuído para 2,37 dentes. No mais recente inquérito epidemiológico de base populacional realizado na capital paulista em 2023, a prevalência de cárie havia diminuído ainda mais, registrando 46,3%. Diminuiu também o número médio de dentes atingidos pela doença: 1,51.
Meus colegas e eu analisamos também, no referido artigo científico, dados disponibilizados pela Sabesp, para o período de 1990 a 2021, para conferir se havia mesmo flúor na água, na quantidade certa. Analisamos 49.515 amostras da água de abastecimento público e constatamos que 98% dos valores observados estavam situados dentro dos limites de concentração ideal de fluoretos na água para a cidade de São Paulo: entre 0,545 mgF/L e 0,944 mgF/L de água, com o valor médio dessas amostras registrando 0,663 mgF/L.
Como a cárie é uma doença multifatorial, e o fluoreto na água não equivale a uma vacina contra a doença, nós ressalvamos que esses resultados podem ter sido afetados por outros fatores de proteção, que atuaram conjuntamente para melhorar a situação, como os cremes dentais contendo flúor, a ênfase que passou a ser dada às ações educativas nas últimas décadas, relacionadas com melhorias nos padrões de higiene bucal e diminuição da frequência da ingestão de produtos açucarados, e também com fatores socioeconômicos, como melhores níveis de escolaridade e renda, reconhecidamente associados inversamente com cárie: melhores níveis, menos doença.
Porém, o consenso entre os pesquisadores de odontologia preventiva e saúde pública é que a principal medida preventiva é a fluoretação da água.
É por essas razões que Montoro estava corretíssimo em 1985 e Kennedy Jr está completamente equivocado em 2025. Quase meio século de atraso. Mas a opção pela ignorância é mesmo assim: atemporal. Acomete e abate até mesmo um Kennedy, em pleno século XXI. A marcha da insensatez nos EUA implicará importante diminuição, em larga escala, da cobertura em nível nacional (ver Fig.5). Já se fala em excluir fluoretos até mesmo de cremes dentais, o que daria contornos sanitários trágicos à estupidez.

E não adianta tentar “colocar panos quentes”, como fez Leana S. Wen, uma espécie de ex-secretária municipal de saúde de Baltimore e professora de emergência médica da George Washington University, em artigo no Washington Post. “Remover o flúor não é uma ideia totalmente maluca”, escreveu em novembro do ano passado. Não é mesmo uma ideia totalmente “maluca”. Não há qualquer loucura na insensatez de Kennedy Jr. Não há doença mental, há método. Há objetivos claros e interesses obscuros. Não é mesmo maluquice, é ignorância. Da médica, também.
Mas a ignorância custa caro. Em artigo publicado em 30 de maio de 2025 na revista JAMA Health Forum, Sung Choi, do Departamento de Epidemiologia, Política e Gestão de Saúde Bucal da Harvard School of Dental Medicine, e Lisa Simon, da Divisão de Medicina Interna do Brigham and Women’s Hospital de Boston, analisaram dados de 8.484 crianças, provenientes de todo o país (Estudo NHANES) e afirmaram que a interrupção da fluoretação da água nos EUA implicaria aumento de 7,5 pontos percentuais no número médio de dentes cariados. Tratar essas crianças custaria aproximadamente US$ 9,8 bilhões, ao longo de 5 anos.
Mas não se trata apenas de saber quanto custa.
A questão que importa é saber se há alguma base ética para a infâmia de, podendo prevenir o adoecimento, um governo, por meio de suas autoridades, permita que a doença se instale em alguns milhões de pessoas, entre as quais crianças, e se desenvolva, causando infecções, dores, sofrimentos e, sob certas condições, agravando comorbidades que podem matar. Que ética é essa que autoriza governos a, em tempos de paz, deliberadamente, mandar matar – ainda que indiretamente?
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras